I Concurso Literário Benfazeja

Açúcar, por favor



Conto, por Wellington Souza

Ela para ao meu lado, procurando abrigo contra a chuva debaixo de um toldo de loja. 
“Nossa! achei que eu estava fodido. Mas ver esta tua chapinha tirou um pouco do meu pesar em ter esquecido o guarda-chuva em casa. É, de certa forma, um consolo ver outro igual em situação pior...”



Esboçou ficar brava, mas queria sorrir. A expressão que resultou foi de quase-indignação.

“Sorte sua seu cabelo ser à prova d’água”, respondeu.

“Está certo, um a um. Mas está bem incômodo aqui, vamos ali ao Caffee desempatar isso. Deixe eu te pagar um café, vai!?”

“É claro que não.”

“Tudo bem então, cada um paga o seu.”

“Não deveria aceitar, não. Mas já que tudo está uma merda, vamos lá.”

“É, tudo estava uma merda mesmo.”

Fomos. Sentamos. Deixei que ela pedisse primeiro, depois pedi apenas um expresso e frisei para não adoçarem.

“Sem açúcar?”, perguntou depois que o garçom acabara de anotar o pedido e se foi. Sinal de discrição, notei.

“É. Depois que a diabetes levou meu pai, não me dou mais com açucares...”

“Ah, tem medo de ter isso também...”

“Não. Percebi que o açúcar nada mais é que uma maquiagem para disfarçar o amargo que a existência é. Por isso, nada mais de açucares. Se eu viesse aqui e começasse a falar o quanto eu amo MPB e a voz do Toquinho me fascina, estaria adoçando minha natureza taciturna, avessa a música. E você, certamente, preferiria essa versão caramelizada. Mas enjoa viver na casa de doce. Além do mais, quando teu dedo estiver gordinho, a bruxa vem devorar-te.”

“E é possível suportar tudo sem açúcar? Não sei se gostaria de escutar esse papinho, não gosto de MPB, acho todos uns plagiadores. A começar pelo Chico: as letras dele são todas francesas, pode ver. Aprendeu a fazer poesia ouvindo isso com a família, depois aprendeu a dedilhar... daí copiar um pouco de samba e misturar a isso e pronto, virou gênio. Gosto de música instrumental, Baden Powell... mas ninguém escuta isso hoje em dia...”

“Realmente, ninguém.”

“É dos namorados ali do canto”, um garçom grita para o outro. Chega nosso pedido. Café com chantilly e biscoitos para ela e o meu já descrevi. Antes de ele partir, ela lhe informa que não somos namorados e sorri para mim, procurando confirmar a informação.

Sorvo. “Realmente, ninguém mais ouve música instrumental desse quilate. Mas você conversa sobre isso com todos que conhece? Não é um bom cartão de visitas... a não ser que queira espantar 99% dos homens que consegue atrair.”

“Não. Minha mãe me acha meio estranha. Escuto sozinha no meu quarto, e ela não gosta de ficar sozinha nem de ficar escutando isso e pede para eu ficar na sala vendo tevê com ela. Moramos só nós duas num apê, então levo meu emepetrês e um livro e ficamos assim. Ela não gosta, mas é melhor que a solidão total. Gosto de ler também os clássicos que compro em sebos. Estou te falando porque sei que não me achará estranha. Sei lá.”

“Porque você falou para o garçon que não somos namorados, se não sabemos ainda. Vai que já somos mas estamos por descobrir.”

“Ah, pare! Sei lá, achei por bem esclarecer.”

“Então, quer ser minha namorada?”

“Já estou namorando...”

“E ele sabe disso que você me falou? da companhia à velha mãe e do Baden. Dos sebos...”

“Não.”

“Ah... Você se adoça para ele, então. É normal. Anormal é ser assim, como estamos. Não quer viver sem açúcar?”

“E dá certo? Quer dizer, não sei. Sinto como já te conhecesse há muito tempo. Quase que me lembro de nossa infância compartilhada no escorregador, no trenzinho. Ou nos olhando e sorrindo e gargalhando na gangorra do parquinho.”

“Também sinto isso. Acho que é porque estamos nus. E quanto à pergunta ‘se daria certo’, também não sei. Já tentei isso por duas vezes e nada. Mas prefiro ir tentando a viver disfarçando o gosto... mais cedo ou mais tarde temos que senti-lo verdadeiro, sem maquiagem sem nada. Daí sim será amargo e intragável. Agora estamos apenas sendo nós mesmos e mais nada. Nem de nomes precisamos, nem de nada que é coercitivo. A única coisa que precisamos é tentarmos.”

“Nem percebi que não sei teu nome ainda... nem te disse o meu...”

“Quer me namorar?”

“Já não estamos?” e pega na minha mão. “Agora tenho que voltar para o escritório, já passou meu horário de almoço. Quer almoçar em casa dia desses? Faço lasanha de espinafre, gosta?”

“Nunca provei.”

“Olha Curumim, meu número é esse e minha me chama por esse nome. Ligue-me hoje às oito horas, está bem! O que você vai fazer agora?”

“Está marcado, também gosta de ficar no telefone por horas, é? Agora vou até o meu apartamento e escrever como conheci a mulher... sou escritor, escrevo para colunas e sites de revistas que poucos lêem.”

“Está bem, terá muito tempo para me contar!”

Caminhamos até a porta, a chuva apertou mais. Carros andam de farol aceso. “Engraçado como estava tudo uma merda e agora não está mais.” Nos beijamos. Beijamos mais. Compramos um guarda-chuva. Beijamos. “Agora vou mesmo, não tente me beijar novamente senão não saio daqui.” Beijinhos de peixe.

“Vá pela sombra, Curuminha.”

“Às oito. Não esqueça”, grita e é guardada pela chuva.

“Oito” grito e pisco o olho para ninguém. Se vai. Eu entro, peço uma caneta e arranco um guardanapo. Nada me vem, o espaço que antes achava infinito está todo dela. “Garçom, outro café, por favor.”

“Sem açúcar de novo?”

“Não. Normal. Este ultimo estava horrível.”



*
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5 comentários:

  1. A D O R E I!!!!
    Quase um tango em paris... sem nomes, sem açúcar, sem bordados e já com tanta intimidade.

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  2. Obrigado pelos comentários, jovens!!

    Tenho um apego especial a esse conto quase de fadas!

    Beijos

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  3. Well, adorei seu texto. Ainda não tinha lido nada seu e a surpresa foi ótima. Esses encontros do acaso são sempre um ótimo tema, não precisam de nenhum açúcar, pois os personagens se conduzem sozinhos. Parabéns!

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  4. Bacana, muito bacana...simplesmente!!!

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