I Concurso Literário Benfazeja

País das saudades


Conto da escritora convidada Rayssa Coelho.


Um dia, Alice não acordou. Desculpe por desmanchar o ápice da história de forma tão grosseira, mas precisava desabafar.

Não sei se houve, algum dia, esse tal de tempo. Só sei que nosso afastamento foi minha culpa: Enquanto Alice estava eternamente estagnada, eu mudei tanto quanto pude.

Foi no mesmo dia que acabou o café e que as palavras esfriaram. Elas não mais me abraçavam com ânsia de compreensão. Apenas viravam de lado, arrogantes, deixando juntar as sílabas e dane-se o sentido que for empregado.

Alice não gostava de palavras: ela as amava. E eu via nelas apenas um obstáculo a ser ultrapassado.

Devo confessar que, há algum tempo, eu e ela já não nos entendemos muito bem. Embora no princípio… Nós duas éramos praticamente a mesma pessoa: conversávamos por horas, idealizando toda uma vida que sequer tínhamos consciência de desconhecer. Ajudava-me a escrever poemas quando me via só.
Nossos cabelos quase se misturavam ao sol, dourados e finos… Falávamos do que gostávamos, mesmo sabendo ser uma enorme perda de tempo: eram gostos praticamente idênticos.

Juntas, ignorávamos os olhares de estranheza e gargalhávamos. Eu cantava “Não ligue pra essas caras tristes / Fingindo que a gente não existe” em seu ouvido. No fim da tarde, famintas, aspirávamos o cheiro de café com leite e bolo de cenoura.

Não nos afastamos de repente. Na verdade, para mim, foi tão surpreendentemente sutil que quase não percebi.

Mas não para ela: doeu por dentro. Seus cílios iam catando as gotinhas que queriam saltar dos olhos, sussurrando que “já não há mais tempo”.

Não sei se houve, algum dia, esse tal de tempo. Só sei que nosso afastamento foi minha culpa: Enquanto Alice estava eternamente estagnada, eu mudei tanto quanto pude.

Começou com algumas desilusões e menos leite no café. Enquanto meu cabelo acobreava levemente, eu me distraía com tudo o que havia lá fora. Desde o cheiro de cigarro (que era a única coisa que a vi odiar) até pessoas, flores e remédios desconhecidos.

Ela, depois de algum tempo, não podia mais me ajudar. A única dor que ela conhecia, era a que via em filmes. E eu, buscando compreensão em outro alguém. Qualquer alguém. Mas me sentia tão só quanto ela. Nossos abraços iam morrendo.

Num dia qualquer, em uma tentativa mútua de aproximação, peguei a navalha e cortei seu antebraço. Ela, minha coxa. Surpreendi-me com a ousadia do local escolhido. Cortei a área logo acima de sua orelha. Ela riu, dizendo que seu cabelo agora estava vermelho como o meu.

Corri até o espelho e surpreendi-me ao constatar que meu cabelo estava completamente vermelho. E era de um vermelho muito vivo.

Toquei-a debaixo dos lençóis, mas era estranho. Se fosse com qualquer outro… Mas era ela. Fiquei ali, deitada, sugando minha própria língua para aproveitar melhor o gosto de seu sangue. Não há café puro que sacie a sede daquele sabor.

Abri meu jornal e as palavras estavam grosseiras e jogadas de qualquer forma. Tão frias que dava saudade.

Vivemos distantes desde então. Mas ela ainda mantinha-se bastante otimista. Ficava lendo “O caso da borboleta atíria” em cima do sofá e, de vez em quando, comentava alguma coisa com o gato. Quando, de vez em quando, eu a trazia alguma flor exótica que descobri no caminho, ela colhia de minha mão com uma enorme doçura e saia jogando as pétalas pela casa.

Alice não cansava de repetir que eu tinha que me tratar, porque estava sempre ocupada com problemas e realidade excessivas. Nunca respondi que era o contrário. Ela que acreditava e esperava por tudo. E ninguém pode viver com tamanha inocência.

Ela era boba. Queria que a vida se encaixasse num conto de fadas sem madrasta malvada.

Nunca disse, mas sempre pensei: “Ela é boba. Que bobinha”.

Quando eu chegava em casa tropeçando em todos os móveis e tentando dançar balé para ser um pouco como ela de novo, nós duas chorávamos. E eu a xingava, engasgando no “eu te amo pra caralho”

Mas eu não era um monstro. Sempre a defendi dos outros, quando mentiam descaradamente ou a machucavam e insultavam. Mas nunca tentei defendê-la de mim mesma.

Encontrei-a grogue no chuveiro. Ela começou a atirar água gelada em mim e dizer que eu tinha que ir embora. Recuei. Saí para comprar café, mas só voltei no dia seguinte.

Já era tarde, mas Alice não estava regando as flores ou conversando com o gato. Abri meu jornal e as palavras estavam grosseiras e jogadas de qualquer forma. Tão frias que dava saudade. De repente, depois de tanto tempo, queria dar-lhe um abraço.

E então, ela não acordou.

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* Créditos da imagem: Olhares.pt
Serie-Amigas III, por Manuel Madeira

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