Bodas de Prata
Conto de Maurem Kayna.
A senhora de costas muito eretas e marido calado estava incomodada com o espaço minúsculo entre as mesas do café. Privacidade não lhes fazia falta naquela ocasião, mas era desconfortável a proximidade dos outros clientes. O diálogo seria boa razão para estarem ali, em plena manhã de verão, mas ele não acontecia, e isso tencionava ainda mais os seus gestos naturalmente contidos.
Era amargo ver o silêncio habitual sendo repetido ali na cafeteria. Palavra nenhuma através dos goles curtos. O olhar, percorrendo o caminho entre o pires e a fronte de Otávio, tropeçou no tremor das mãos que sustentavam a xícara e roçou os fios esquálidos sobre a testa. Ele parecia cansado e ela reconheceu-se também exausta, compreendendo que o dissabor não estava no arranjo das mesas.
Saíram dali rumo à escolha dos presentes dos netos, armados de listas e divergências. Graças à organização de Otávio, dois meses antes do natal já estariam com as compras resolvidas. Heloísa não era uma avó típica e desejava para os filhos de suas filhas atividades muito diversas daquelas que o marido incentivava.
O gerente industrial aposentado escolhia parafernálias tecnológicas, sugestões de um mundo desafiador para forjar seus pequenos bravos. Ela, professora de letras, também aposentada, apostava nos livros infantis. Feitas as compras, seguiriam suas rotinas comumente afastadas.
Heloisa driblava as incompatibilidades com o marido cultivando seus interesses e sofrendo o menos possível. Tinha paixão por livros e pelo jardim. Quando havia brechas, tentava mostrar aos herdeiros do brasão familiar as cores além do metalizado das bugigangas movidas a pilha. Raptava-os para lanches à sombra do salseiro e instigava-os a sentir a pelagem lustrosa dos cães. Não fazia isso por provocação, queria mesmo era que fossem homens distintos daquele com quem vivia.
Levavam a vida nesses termos há vinte e quatro anos e no íntimo de cada um persistia a impressão de terem um jeito bom de atravessar os dias, mesmo com os silêncios incomodando, ora um, ora outro. Não raro, encontravam-se apenas no cerrar do dia, quando se esvaíam as distâncias entre o que queriam um do outro e aquilo que poderiam dar-se. Depois do jantar, o licor servido no alpendre fazia a trégua: conversavam sem a hierarquia que Otávio acreditava necessária e Heloísa fingia respeitar. Ali, as conversas eram fluídas como ela desejaria que fossem todos os seus contatos. Na cama, sem culpas ou pudores, os toques sutis de Otávio davam a Heloísa a sensibilidade e afeto que em outras cenas da vida ele negava a si mesmo, mas isso era um bálsamo transitório para suas lacunas. Depois, sorriam uma satisfação espaçosa, aconchegavam-se um pouco e, então, voltavam ao que costumavam ser.
Os amigos em comum, os filhos e os familiares não viam suas incompatibilidades nem seus ávidos apetites – O casal era, em tudo, discreto. Hoje, porém, os cálices chegaram à varanda para encontrar as cadeiras vazias. Ali estavam apenas os óculos de Otávio e nenhum sinal de Heloísa. Nenhum empregado tinha visto a discussão que interrompeu a sobremesa: Otávio reclamou do cardápio e ela se levantou num rompante, renunciando ao pacifismo de sempre. Nenhum dos dois compreendeu bem o cenário que se fez, mas seguiram como quem atua de improviso.
Acomodada em sua escrivaninha, no sótão, seu refúgio usual, buscava o ritmo adequado da respiração. Os olhos ardiam de insatisfação e ela pensou que não faltava nada mais de intolerável: uma grande barata. As patas do inseto faziam um ruído áspero tentando sair da caneca onde ficavam as canetas. Não era o seu tipo fazer escândalo por conta de uma mísera barata, bastava encontrar um objeto para esmagá-la e cessar a movimentação desagradável. Mas aquela era robusta e agressiva, dava náusea. O marrom brilhante das asas! Nojo, paralisação. Havia uma ameaça vaga no existir daquele bicho insalubre e isso a fez recuar até a janela. Na garganta, uma massa mal fermentada parecia querer capturá-la, em conluio com o inseto, elevado à categoria de vilão. Sim, novamente sabia: o caso não era o animal, nem mesmo o descontentamento de Otavio com o menu.
Depois de matar o bicho com uma revista velha, sentiu-se novamente uma senhora cansada. O mesmo cansaço de Otávio. Desviou os olhos da mesa e viu no amarelo das flores no jardim algo de impositivo, como uma sinfonia de notas agudas fazendo-a buscar mais ar, abrir a janela. O amanhã chegaria de qualquer modo, pensou, mas agora fazia falta uma embriaguez salvadora, um cálice extra do licor recusado, talvez. Doeria menos? Flutuaria, quiçá? Pensava também em dormir, mesmo com o risco dos pesadelos.
Quando Otávio intrometeu-se no escritório de Heloísa, encontrou-a trêmula, ao lado da poça escura e densa. Não sabia dos devaneios dela, mas se os tivesse ouvido saberia que, se um dia acontecesse, seria com aquele punhal.
Não havia tempo para lágrima porque não aceitaria a piedade dos conhecidos somada à acusação que viria em cada pergunta sobre as agruras que a teriam levado ao extremo – ele mesmo não resistiria à resposta. Também não era frio como alguns poderiam supor e não desejaria o nome de Heloísa tratado com o horror devotado aos loucos ou assumidamente fracos. Rabiscou falsidades rápidas a respeito da decisão de morrerem juntos e ainda cedo – nas bodas de prata, se já tivessem netos e, depois de acomodar-se ao lado dela lembrando que teve vontade de dizer poesia sobre seus olhos antes de terminarem o café naquela mesma manhã, usou a mesma arma.
* Créditos da imagem: Olhares.pt
Casal de Velhinhos, por Reginaldo Ferrari
Nossa! (de surpresa e contentamento por ter lido um texto tão bom, minha reação ao chegar ao final). Trabalhou muito bem o suspense e as poéticas descrições. Abraços letripulistas, até !
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