Na fotografia
Conto de Patricia Maia.
Na fotografia, a minha mãe está com um vestido azul com florzinhas amarelas. Eu estou agarrado a ela com um churro de chocolate na mão. O meu pai é que disparou o obturador. Estávamos os três. A mãe, o pai e eu, na feira popular.
Mal entrámos, as luzes brilhantes, a música ruidosa, a montanha russa, tudo ao mesmo tempo, a encher-me por dentro. Perto dos carrinhos de choque havia uma rapariga que vestia um saia muito curta. E, ao lado dela, um rapaz com camisa de alças pedia-lhe um beijo. Que ela não deu e ele então roubou. Eu quis ser esse rapaz. Ou então a rapariga de saia curta. Quis ser o dono dos carrinhos de choque.
Nesse dia, estávamos felizes. A minha mãe ia de mão dada com o meu pai e eu de mão dada com a minha mãe. Outras famílias como a nossa andavam pelas ruelas com algodão doce na mão. Cheirava a sardinhas assadas e a Verão.
Comemos churros tão cheios que o chocolate escorreu pelos meus dedos e sujou o Mickey estampado na t-shirt. Fomos à montanha russa. A minha mãe tinha medo. Eu também, mas queria ir à mesma. Ela decidiu arriscar, apesar do perigo. As ondas da montanha faziam impressão na barriga. A minha mãe apertava a perna do meu pai, que aproveitou para nos abraçar aos dois. Descemos a curva a uma velocidade vertiginosa. Fizemos um loop e voltámos a aterrar.
“Mais uma voltinha!”, gritava o senhor da montanha russa.
Nesse dia estávamos felizes e a minha mãe parecia mesmo que amava o meu pai. Nesse dia acho que não se lembrou do Artur. Nesse dia todos nos esquecemos do Artur, das discussões, dos ciúmes. Nesse dia éramos só os três. Uma família como as outras, o algodão doce nas mãos.
Semanas mais tarde, quando voltei da escola, lá estava ele outra vez em nossa casa. A minha mãe pediu-me, baixinho ao ouvido, para não contar ao meu pai.
“Sabes que o teu pai é um ciumento...”
Disse isto a sorrir. E fez uma festa na minha direcção. Desviei-me a tempo. Corri para o meu quarto. Percebi nesse momento que as mães também mentem. E os carrinhos, os legos, todos os meus brinquedos estavam ali a mais. Coisas paradas. Estranhas. Ridículas.
Ouvi a porta da rua que se abria para o Artur sair.
“Até amanhã...”, disse a minha mãe.
Depois, um longo silêncio, antes da porta se voltar a fechar. O silêncio de um beijo prolongado, imaginei, enquanto o meu carrinho não estava ali a fazer nada, embora eu o estivesse a empurrar para trás e para a frente, para trás e para a frente.
O meu pai chegou tarde, mesmo em cima do jantar. Vinha contente, trazia com ele as fotografias da feira popular. Estava especialmente orgulhoso desta, que tenho agora na mão: eu e a minha mãe, o churro, o vestido azul com florzinhas amarelas. Comemos qualquer coisa frita que me enjoava.
“Então? Não comes?”, perguntou o meu pai.
“Está sem fome... deixa-o estar!”
No dia seguinte, voltei mais cedo das aulas. O Artur estava lá outra vez. Tinha a camisa mal abotoada. Ele apercebeu-se disso, porque eu olhava fixamente para aqueles botões desencontrados dos buracos. Botões que a minha mãe teria abotoado à pressa, quando me ouviu meter a chave na porta. Olhei para a minha mãe, à procura de vestígios das mãos do Artur no corpo dela. Não encontrei nada. Mas encontrei olhos de culpada. A cara ruborizada. Um sorriso incompleto.
“Encontrei o Artur na mercearia... ele ajudou-me a trazer os sacos para cima. Estavam tão pesados”.
E olhou para ele com um sorriso muito estúpido. Eu senti um peso mais pesado do que qualquer saco. Ficámos os três especados.
“E então? Não dás um beijinho ao Artur?”
Aquele nome. Artur. Os olhos dele, de desafio, pregados em mim enquanto corrigia a ordem dos botões. Nesse dia, o meu pai não veio jantar. A minha mãe ficou preocupada. Comemos os dois sozinhos, sempre à espera de ouvir as chaves na porta. Fui para a cama mas não dormi.
Mais à noitinha, ouvi a porta abrir. Era o meu pai. Não disse nada quando entrou. Apenas um silêncio desconhecido. Do meu quarto, com a porta entreaberta, tentava perceber que peso era aquele que o meu pai trazia. Percebi gritos abafados de quem discute baixinho. A minha mãe só dizia que não não.
Em poucos dias, deixei de ver vestígios do meu pai lá em casa. O prato na mesa, o jornal na sala, os chinelos. Nunca mais voltámos à feira popular. Nem churros, nem algodão doce. O Artur deixou de aparecer.
Hoje voltei a vê-lo na rua. Fiz um esforço para o reconhecer, entre as rugas que lhe deformaram a pele morena e o cabelo quase branco. Mas os olhos de desafio eram os mesmos. Ia com uma miúda rechonchuda, muito nova, agarrado a ela pela anca. Pedia-lhe beijos que ela não dava e ele então roubava.
*
Biografia
Sou portuguesa, natural de Lisboa. Tenho 37 anos, sou coordenadora editorial do portal Boas Noticias e jornalista freelance. Também dou formação a turmas de adultos.
Este conto que envio "Na Fotografia", faz parte do livro de contos "Brilho Vermelho", vencedor da menção honrosa do prémio Alves Redol 2009.
Além desta distinção, o mesmo livro foi menção honrosa no concurso literário da Esfera do Caos em 2010. Também fui vencedora, numa maratona de escrita de argumentos da escola Restart, de um terceiro prémio com o guião da curta metragem "Gostavas de Mim à Mesma?" (co-autoria de Ana Russo).
Crédito de imagem: António Ferra
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