I Concurso Literário Benfazeja

Re-Cordis



Conto de Daniela Diana.

— Um chope, por favor. — Pediu ao garçom com a voz trêmula e emocionada.

— Dois. — Completou o pedido

Começaram a conversar com a euforia rósea de anos de distância, lembrança, esperança. O silêncio. Hora de dar um gole, pensar, fumar, se ajeitar na cadeira. Calor...

— Grande surpresa te reencontrar. Então, me conta o que fez nesses anos? E agora, o que está fazendo? Uau! Quanto tempo passou desde a última vez que lhe vi. Foram dez anos. Você continua a mesma.

— Só na aparência. — Sorriu desconsertada.

Gostava como ela rebatava meus enunciados laconicamente. Ficava encantado!

—Então, estava no aeroporto, pois acabo de voltar de uma viagem. Estive na Espanha durante dois anos, fazendo uma especialização.

— Uau! Que espetacular. Educação?

— Nunca! Literatura e Patrimônio.

— Claro! Que ingenuidade a minha. Muito interessante essa temática.

— E você? Continua com o Estúdio?

— Com certeza. Aquilo é minha vida. Adoro meu trabalho. Estamos com muitos projetos, agenda lotada. E, além do mais, o estúdio mudou de lugar. Agora estamos muito bem instalados. Precisa conhecer. Lembra o “perrengue” que era nos tempos da Facú? - Calor...

— Bem me lembro. (risos)

O bar, situado numa estreita rua de paralelepípedos, despontava no alto de um antigo bairro da cidade. Próximo a serra. Amplexo era seu nome. As mesas vermelhas de plástico preenchiam o espaço quadrangular dos fundos. Na entrada, tudo continuava o mesmo. Na calçada, a placa móvel parecia imóvel. Fixada no chão de cimento durante anos. Dez anos. Os ovos de codorna tinham a mesma tonalidade alaranjada flutuante no pote de vidro com tampa verde água. O corredor central acompanhava o longo bar de azulejos azuis. O eterno aroma adocicado do tabaco misturado à cevada, cachaça e fritura. O quadro Pop Art na porta do W.C.. A Placa de madeira pirografada: “Bar é Cultura! Frequente-o!” A amarelada propaganda de cerveja com dobras descolavam das paredes desgastadas pelo tempo. Tudo estava igual. Nostalgia, deja vù, borboletas, respiração, recordação.

— Pois é se estiver por aí, na próxima semana faremos uma apresentação no Festival da cidade. Quinta-feira. Dia 11. Aliás, estava no aeroporto, pois fiquei de encontrar um dos artistas que também fará uma apresentação no festival. No fim, me ligaram dizendo que ele perdeu o vôo e só chegará amanhã.

— Nossa, que legal! Estarei por aqui com certeza. Agora ficarei um tempo no Brasil.

De imediato, senti a cabeça esquentar, meus olhos sorrirem, meus músculos faciais relaxarem. A aceleração cardíaca instantânea fez balançar levemente o esbranquiçado líquido restante no fundo dos copos. Calor...

Acenou com a mão para o garçom:

— Mais dois chopes, por favor.

No fundo do bar, através das imensas janelas de vidro avistava-se uma singela igreja. Lembrou-se das promessas juvenis. Abraços. Enlaços. Embaraços. Não queria perguntar. Evitou. Na realidade não queria saber. Ela estava linda. Bebeu um grande gole. Calor...

— E a Lisa? Tem visto?

— Nunca mais encontrei aquela doida. Deve estar com o Carlos ainda. Amor doido né? — Sorriu timidamente sem mostrar os dentes.

— Pois é. Aqueles dois sempre tiveram uma relação instável. (risos) É amor mesmo... — Calor... (Pausa) E a especialização na Espanha. Como foi essa experiência?

— Extraordinária! Adorei o país, a faculdade, os grandes amigos que cultivei e os lugares que conheci. Agora, me resta muita saudade. Voltarei, com certeza, mais ainda não tenho nenhuma previsão. A especialização foi em Literatura e Patrimônio latino americano. Adorei a Universidade, o curso, os professores, a biblioteca.

— Nossa! Que interessante. Fico muito contente por você. O tema da especialização me fez lembrar aquele trabalho que realizamos para a disciplina do professor Celso Ferreira: Patrimônio Cultural. Passamos dias, noites, madrugadas, semanas para fazê-lo. No final, realmente valeu a pena. A apresentação do grupo ficou ótima. Até o professor se emocionou. Lembro que você citou uma frase no final. Qual era mesmo?

“O que lembro, tenho”. João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. Adoro!

— Também adoro, mas dessa vez terei de discordar do mestre Guimarães Rosa. Afinal há coisas que lembramos e não temos. — Calor...

A reação constrangedora foi imediata. A atmosfera plúmbea e inquietante foi potencializada pela fumaça dos dois cigarros acesos e os últimos goles de cevada presentes nas tulipas. Acenou novamente para o garçom.

— Mais dois chopes, por favor. — Tossiu, talvez para disfarçar a afasia presente nas últimas letras pronunciadas.

— Aproveito para ir ao banheiro enquanto não chegam os chopes. Pede algo para petiscar. Pode ser ovos de codorna mesmo. Pra recordar. (sorriso)

Ela saiu a passos lentos em direção ao banheiro. Extasiado, emocionado, não consegui deixar de admirar seu belo caminhar felino, seus cabelos longos e cacheados. A simplicidade e a beleza de se vestir. Estava de calça jeans e camisa branca. Brincos estampados. Calor... Somente no instante em que ela saiu completamente do meu campo de visão, comecei a observar as paredes do bar. Cada detalhe. Capas de vinis antigos colados no teto, propagandas de loiras e morenas abraçadas com cervejas. Quadros de grandes personalidades: Elvis, Marlin Monroe, Charles Chaplin, Michael Jackson, Tina Turner, Che Guevara, Galeano. Eduardo Galeano? Nunca tinha reparado neste quadro. Existia algo diferente no bar. Em dez anos de ausência, havia algo novo. Levantou da cadeira e aproximou-se do quadro para ler a mensagem. Foi aí que notou o efeito do álcool a percorrer suas veias. Sentiu-se levemente embriagado. Abaixo da foto preto e branco do escritor uruguaio as letras coloridas em alto-relevo: “Recordar: do latim re-cordis, volver a pasar por el corazón” El Libro de los Abrazos (1991). – Suspirou...

Toca o celular. Ainda estava na cama enrolado no lençol, abraçado ao travesseiro.

— Alô?

— Bom dia camarada! Preciso falar rápido; a bateria do celular está acabando. O artista não chegará hoje no aeroporto. Ele perdeu o vôo e por isso só chegará amanhã à noite. Aproveita pra dormir mais. Ainda é muito cedo. São 06h30. Mais tarde te ligo pra gente combinar alguma coisa. Abraço.

Levantou rapidamente da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou. Lavou o rosto, escovou os dentes. Pegou as chaves do carro e no caminho ao aeroporto recordou a frase dita por um amigo no dia anterior: Sonhos são lembranças do futuro.


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Créditos da imagem: Olhares.com
Bar em Chicago, por Mauricio Cano Fernandes

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