I Concurso Literário Benfazeja

Jasmins e alfaces




Catou todas as flores secas que estavam no passeio coberto de brita, juntou também as corolas murchas espalhadas no canteiro onde o pé de jasmim fazia as vezes de cabeceira e formou um pequeno monte para depois carregá-las para a horta, onde virariam adubo – aprendia essas coisas com o irmão mais velho quando ele aparecia para visitar. Demorou um instante gostando do resultado daquela limpeza, olhando para a planta renovada, sem os tons terrosos sujando a folhagem de brilho indeciso. Depois, se pôs de joelhos à borda do canteiro e começou arrancando a grama de folha muito delgada que a mãe chamava de capim-pelo-de-porco. Não entendia aquele nome, afinal nunca vira nenhum porco com pelos tão longos, e menos ainda verdes. Eram difíceis de arrancar, especialmente com a terra tão seca, então resolveu buscar alguma ferramenta que ajudasse a vencer o solo endurecido. Fazendo o menor ruído que pode, pegou uma faca de mesa, daquelas pesadas, de metal grosso. Havia somente duas daquele tipo na gaveta, as outras eram de qualidade muito inferior e certamente não resistiriam ao esforço. A ponta arredondada e o peso ajudaram a enfrentar a resistência do chão ressecado sem maiores riscos de se machucar, mas não era fácil arrancar o capim pela raiz, como era preciso fazer para que não brotasse com força na próxima chuva. Arrancou alguns com sucesso, mas outros foram apenas cortados rente à terra e alguns nem tão rente assim.

Odila queria avançar mais rápido na tarefa e percorrer toda a superfície daquele canteiro para que a mãe tivesse uma surpresa boa ao acordar, mas o calor já começava a deixar marcas de suor na roupa e ela teve medo. Levantou com os joelhos marcados da poeira e do pouco peso que haviam sustentado e buscou a sombra da goiabeira. Dali contemplou o trecho trabalhado e não gostou do resultado. Ao invés da terra limpa, levemente remexida, exibindo apenas as folhagens e flores escolhidas pela mãe, viçosas como quando foram plantadas, ainda via um solo com torrões de tamanho irregular onde despontavam restos de inço com folhas arrancadas pela metade. O aspecto havia melhorado com sua dedicação, mas para oferecer à mãe o presente imaginado, precisaria de melhores ferramentas e de uma força que só alcançaria anos mais tarde; mantinha, entretanto, a esperança de que o esforço fosse percebido.

Quando seu Lúcio comprou o terreno e construiu, com a ajuda dos irmãos, a casa onde mal teve tempo de aproveitar o pôr do sol que se avistava da porta da cozinha, dona Fabiana plantou violetas e cravinas, semeou margaridas e zabumbas e arranjou, com esmero, folhagens sortidas – as folhas matizadas de muitos tons de verde e bordô encantavam as vizinhas. A maior parte das plantas era barganhada ou presenteada por conhecidas das redondezas. O pai preocupava-se mais em cuidar da horta, de onde vinha uma ajuda importante para o colorido da mesa.

Ainda pouco suscetível às teias da memória e da nostalgia, a menina não pensou nisso durante seus afazeres no pátio castigado de sol. Essas associações só aconteceram bem mais tarde, quando o silêncio depois do almoço não era a obrigação de zelar pelo sossego da mãe, mas sim uma imposição de sua ausência e a lembrança das lides de jardinagem desenterrou outras, de quando a família começou a se desmontar. Dos dias logo após o velório ela não tinha nenhum registro porque todos acreditavam que a pequena Odila não tinha idade suficiente para participar daqueles rituais. Ignoraram que a tristeza já havia contaminado suas manhãs quando a doença começou a limitar as tarefas do pai nos canteiros de alfaces e que o primeiro entardecer sem a comemoração de assistir o repouso do sol sentada ao lado do pai na porta da cozinha foi mais pesado que a conversa cheia de eufemismos para lhe comunicar o irrevogável da ausência de seu Lucio.

Faltava pouco para o fim da sesta e o sol ardia na terra. O jardim não ficou bonito como quando sua mãe se empenhava em regar as mudas recém plantadas logo pela manhã – aproveitando o tempo enquanto a roupa esperava no tanque, coberta pela espuma cheirosa do sabão em pó. E o ânimo com que iniciou a catação das flores secas se convertia aos poucos numa decepção doída. Ouviria reprimendas porque sujara a roupa e teria de esconder a faca indevidamente retirada da cozinha, pois apesar da aparente resistência da peça, a ponta fora danificada e o olhar atento de sua mãe não deixaria aquilo passar em branco. E tanto risco para um resultado tão longe do imaginado.

O sol já alcançava a janela do quarto e logo logo a réstia entraria pela fresta da madeira, desenhando aquela lista em diagonal sobre o travesseiro. Dona Fabiana, tendo as pálpebras roçadas pelo calor mais agudo daquela lista de sol, levantaria sem o luxo de um espreguiçamento e retomaria todas as rotinas de limpeza e arrumação da casa, cobrando da criança os temas feitos e a ausência de máculas a se esperar do bom comportamento que ela quase nunca alcançava satisfazer. Mais tarde se prepararia a mesa para o café e Odila teria de vencer a repugnância pela película de nata que se formava na superfície do café com leite sem queixas.


Créditos da imagem:
Gardenia, por gtercero

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