I Concurso Literário Benfazeja

A genialidade em pessoa




Difícil é precisar quem a arte e quem o artista. Quem o criador, quem a criatura, quem o louco ou quem a loucura. Ora um, ora outros, seus feitos, feito verdades inacabadas, encontraram na avidez do tempo o não espaço para recriar o seu mundo. E assim apoderou-se de uma pena que, tendo pena de seus prantos, atendeu-lhe os delírios: haja vida! E a vida se fez. Nascia um amigo sem rosto e sem alma, porém à sua neurastênica imagem e semelhança psíquica, com quem trocou ingênuas confidências de um menino prodígio.

Como criatura, experimentou a dor da perda, do medo, do exílio e da solidão. Como criador a si mesmo devorou o estro e, com a irreprimível benevolência dos iniciados, poupou a costela do ser criado, retirando das próprias entranhas outros, e tantos que os sucederam, para que se cumprisse o profético: crescei e multiplicai-vos! Sendo o criador, nada ordenou, nada pediu, apenas sugeriu que salpicassem de sonhos a terra e que todas as artes se submetessem a uma reverificação.

Para que se cumprissem os desígnios de uma inverdade artística, deu às suas criaturas as próprias mãos. E, numa demonstração de desapego às glórias efêmeras, delegou ao mais simples dos criados o atributo de mestre a quem se submeteu, bem como o fizeram Campos, Reis e outros inexistentes seres.

Não estamos diante de um ser incriado. Seu surgimento se deu no fim do século dezenove. O pai, funcionário público e crítico musical nas horas de ócio, de quem herdara o gene da arte, o deixou muito cedo, uma perda que, por toda a vida, lacunaria sua inocente alma. A mãe, em seguida, desposada, vai dividir o afeto com membros de uma nova estirpe, deixando ao pequeno gênio sobrados motivos para quedar-se cismativo e absorto ante a voluptuosidade do delírio que lhe perturbava o espírito.

Uns o tinham como louco. Outros o concebiam como um gênio, daqueles que surge a cada mil anos. Quanto a ele por si mesmo, apenas um “fingir dor.” Se ninguém é profeta em sua terra, compreende-se o não reconhecimento de sua MENSAGEM, a perseguição aos seus ideários e a incompreensão de seus ensinamentos. Teria ele vivido à frente do seu tempo? Quanto tempo? Ou teria sido aquele que haveria de destruir todos os clássicos e reedificá-los sob o primor de uma nova estética? Porém, ao vir despido dos convencionalismos que maculavam a intelectualidade vigente, foi rejeitado, injustiçado e oprimido, principalmente por aqueles que necessariamente deveriam compreendê-lo.

Eis o destino dos homens santos. Não bastasse a demonstração de humildade ao servir quando deveria ser servido, precisou também testificar seus milagres. Conta-se que, ao lançar sua verve no translúcido mar de palavras, tantas e diversificadas foram as produções que as folhas de papel tornaram-se escassas e as almas dos seres insuficientes para absorvê-las. Ainda assim, muitos foram os que o subjugaram.

Viveu esse homem privado de todos os confortos que almejam os mortais. Na solidão de seu aposento, teve como companheiros seus desvarios e suas lágrimas e como refúgio “o fundo de uma depressão sem fundo”. Aos quarenta e sete anos, era um velho cansado, tamanho o peso de todas as dores, medos e angústias que jaziam em suas retinas. A causa-morte continua um indelével mistério, como misteriosa também foi sua tenra vida. Sabe-se apenas que, naquela fatídica noite de novembro do ano de mil novecentos e trinta e cinco, seu corpo, ébrio e dorido, entregava-se às agruras da terra, enquanto sua alma, abstêmia e liberta, recebia as glórias do infinito.


João Nery Pestana
Poeta e escritor, João Nery tem um verbete na Enciclopédia da Literatura Brasileira Contemporânea, edição 2006, publicada pela Academia Brasileira de Estudos e Pesquisas Literárias. Premiado em concursos literários em todo o País, tem participação em dezenas de antologias nacionais e internacionais. Obras publicadas: VIAS (1999), REVERSO (2004) e CONTOS EM PALAVRAS CONTADAS (2009).
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Créditos da imagem: (pode deixar que eu preencho isso)
A casa que fica na Saudade, por Tiago Reis

Um comentário:

  1. Nery não encontro adjetivos para descrever o que senti ao ler a sua crônica. É encantador a forma como você desenha a alma humana através da sua sensibilidade poética. Obrigada por esse deleite.

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