I Concurso Literário Benfazeja

Crônica de uma vidinha besta


Por Plinio Giannasi

Segunda-feira, 10:35.

Hoje ele se atrasou, pois todo dia chega antes das oito da manhã. Creio que quando chega cedo, é porque nem dormiu, passou a noite por aí, procurando nem ele sabe o quê, vagando, contando estrelas. Mas, até que se juntem os dez reais cotidianos, vai amargar muitos vidros fechados, impropérios, toda sorte de provações. Dez reais, e lá se vai, até amanhã.

Terça-feira, 08:30.

Este é horário mais comum para ele chegar. Ponho o relógio para despertar as oito, para não perdê-lo de vista entre os passantes. Surge daquela viela atrás do restaurante japonês, sempre só, ninguém o acompanha. Hoje com roupas limpas, o pessoal da Assistência deve tê-lo encontrado dormindo com outros desafortunados, creio que esta indumentária nova faz parte das doações da Campanha do Agasalho, pois são um pouco menores que ele, principalmente nos braços, mas atinge o objetivo de cobrir aquele quase esqueleto. Barba que é bom, nada. Ainda ostenta aquele emaranhado de péssimo aspecto. Remete-me à lembrança de minha juventude, quando barba e bigode eram garantia de masculinidade. Ao menos escondia bem certos enrustidos da alta sociedade. Mas, voltando a ele, se melhorasse o visual, os dez reais viriam em menor tempo. No mesmo cruzamento, quase meio-dia e ele já fechou o expediente com a quantia exata, a mesma de todos os dias. Só dez. Vejo claramente, pois o equipamento é ótimo, às vezes passa um tostão, ou falta. Conto junto com ele, apenas dez reais. É só o que ele quer ali.

Quarta-feira, 08:45.

Acordado desde as oito, nem preciso do despertador. Ele chega com as mesmas roupas de ontem, amarrotadas. Parece que não as tirou nem para dormir, funciona como uma segunda pele, que de tempos em tempos é trocada. Campanhas assistenciais filantrópicas, associações, igrejas, é só passar e pegar, e andar por mais alguns dias de casca nova. Hoje ele vai embora antes das dez horas. Apenas uma doação e a quantia já foi atingida. Uma alma boa... Prefiro acreditar que a nota de dez reais foi pega por engano, era para ser de dois. O sinal abriu e o “mão-aberta” não teve tempo de trocar.

Quinta-feira, 11:00.

Ele ainda não apareceu a estas horas. Preso? Internado? Não, espero mais um pouco, só até meio-dia, e ele está a postos, roupas já precisando de uma troca. Calor escaldante e um sofrimento a mais, pois a falta de um bom banho impede que abram os vidros dos carros, questão lógica, percebo pelo gestual de quem passa. Moedas atiradas até distância segura para olfatos sensíveis, só depois das quatro da tarde, ele consegue os dez para ir embora. Hoje foi cruel.

Sexta-feira, meio-dia.

Ainda não apareceu. Espero mais uma hora, um pouco mais, e ele chega, nem menciono as roupas, pois se do décimo oitavo andar o visual é apocalíptico, imagino para quem está próximo. Está semelhante a um bicho, muito sujo, a barba quase cobrindo o rosto todo, se eu melhorar o foco da câmera posso saber se os olhos dele estão à mostra. Equipamento moderno, regulagem de lentes automática, pronto. Agora posso dizer com certeza que a barba dele não permite que seu rosto seja visto. Amanhã é sábado, será que ele tem folga? Que besteira, folga de quê... (interrogativa) Melhor afastar um pouco o quadro, para melhor nitidez. Assim está escrito no manual de instruções, e assim aprendi no curso de fotografia. E se aquele carro preto não conseguir desviar da bicicleta à direita, nem da motocicleta com baú à esquerda (interrogativa), creio que uma guinada m ais radical põe em risco a arrecadação diária. Não conseguiu a manobra perfeita, eu sabia. A grade dianteira do importado alemão espatifou-se naquele corpo magro, moedas em voo livre, tilintando aqui e ali.

Sábado. Qualquer hora.

Não despertei, porque nem dormi. Aproveitei para testar o equipamento de visão noturna, mas nenhum motivo noctívago se compara a ele. Será que vem hoje? Deve ser folga, ou encontrou algum outro meio de conseguir seus dez reais diários. Ontem ele foi embora de ambulância, tinha muito sangue no chão, na grade cromada do carro, na esquina toda. Pude perceber que os Bombeiros não estavam muito crentes numa sobrevida, depois de tentarem colocar o respirador no meio daquela barba horrenda. Curiosos se aglomeraram e devem ter achado que algum cachorro foi atropelado. Aquilo foi grave. Espero até cinco da tarde, ele não veio hoje.

Domingo. Quem pensa em horas?

Não despertei, porque novamente nem dormi. O trânsito ali no cruzamento é quase nada. Uma feira livre na rua de baixo, outro mundo aos domingos. Ele não vem hoje, pois deve chover à tarde, vi na previsão do tempo, todos os dias eu vejo. Percebo que nem amanhã ele virá, acredito que nunca mais. Se sua luz apagou, espero que alguém tenha cortado aquela barba, pelo menos. E roupas novas, que lhe sirvam melhor do que as últimas. Lá pra semana que vem, o cruzamento deve estar ocupado por outro enquadramento para meu novo equipamento fotográfico. Sair por aí procurando um motivo de imagem, o professor ensinou assim. Mas não consigo sair daqui, compro tudo pela internet, inclusive este equipamento de última geração. Queria que ele surgisse na esquina, farrapo, pedinte, mesmo com chuva. E dividir com ele a minha existência, mesmo a dezoito andares de distância, preciso disto, e não de antidepressivos ou tratamentos em clínicas psiquiátricas.

Vidinha besta...




Um comentário:

  1. muito lindo, escritor. parabéns mesmo pela narrativa envolvente!

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