I Concurso Literário Benfazeja

Literatura, história e pós-modernidade: trilhas possíveis?

Artigo acadêmico: "Literatura, história e pós-modernidade: trilhas possíveis?'', por Marcello de Oliveira Pinto (UERJ)


É possível pensar em uma história pós-moderna da literatura?

Neste artigo tentarei debater as idéias que surgem quando a pergunta acima martela os ouvidos. Para este mister, tentarei articular elementos que, se não objetivam uma resposta, contribuam para este artigo ao tentará pensar no significado do conceito de pós-modernidade. Tentarei estabelecer também um conceito de modelo historiográfico que esteja de acordo com os pressupostos de uma pós-modernidade, a partir da observação de alguns exemplos. E por fim, minha intenção e contar com o meu leitor para argumentar os direcionamentos de uma produção historiográfica pós-moderna.

    Pós-modernidade

Poucos temas foram alvo de tanta atenção, tanto debate e tantas tentativas de definição quanto o termo “pós-modernismo”. Na área das produções culturais, por exemplo, pode-se distinguir dois usos correntes do termo: o primeiro, corresponde à produção de arte não-realista e antitradicional do período pós-segunda guerra mundial, em especial nos Estados Unidos da América; o segundo corresponderia à produção da arte e da literatura que leva ao extremo algumas características do modernismo, assim como sugerido por John Barth (1984, 1984b). Uma outra idéia comum do que poderia o termo é aquela que identifica a pós-modernismo como uma condição geral da sociedade do capitalismo tardio. É o momento no qual as grandes meta-narrativas se esgotam. A Democracia, o Comunismo, o Progresso, A Ciência, neste contexto, não têm mais legitimidade para serem sustentáculos inquestionáveis de projetos políticos (Lyotard, 1991). Isto não quer dizer, porém, que a “verdade” contida em tais termos capitalizados tenha perdido seu lugar na organização social. A questão é que os debatedores dos fenômenos culturais reconhecem a construtividade destes conceitos e procuram expor os mecanismos desta construção, atentando para a idéia de simultaneidade inerente a experiências que são nominalizadas de forma única.

Pensar a idéia de pós-modernismo (e a pós-modernidade) significaria, então, mergulhar num mar com várias correntes e correntezas. O quadro acima descrito somado as estratégias multidisciplinares adotadas pelos pensadores atuais para abordar o assunto podem levar um crítico tradicional da cultura a se afogar na sensação de que tudo é possível. Entretanto, nas idéias acima expostas, um fator é de extrema relevância: o reconhecimento de uma ‘verdadeira pluralidade’, no sentido atribuído por Welsch (Olinto,1996: 40), que aponta também para o processo de pluralização e descapitalização dos conceitos (Olinto, 1996:41) e ao mesmo tempo pressupõe uma dimensão maior do que a estruturação hifenizada de um novo conceito, de uma ‘nova substituição’.

Parece tangível dizer que os processos múltiplos de construção de sentidos nos contextos frouxos da sociedade são particularizantes de uma vivência do pós-moderno. Ao mesmo tempo, esta característica confronta-se como um espírito ‘moderno’ que, se pensado sob a ótica do Zeitgeist, não oferece argumentos para uma oposição radical. A própria idéia de multiplicidade (e não de fragmentação) e pluralização (e não de anulação) antepõe-se a idéia de transcendência e lança as características peculiares de uma pós-modernidade não na relação da seqüencialidade temporal, mas como uma forma de ações em certos domínios da realidade. Uma ‘consciência’ pós-moderna em contraste com um projeto ‘anti-‘, que resvalaria na manutenção do discurso das grandes utopias e das suas superações.

Uma conseqüência deste relativismo é a re-estruturação dos engajamentos éticos e da relação dos atores sociais em suas esferas de ação. O pluralismo ‘tematiza’ a possibilidade de atenuação de discursos dogmáticos e mobiliza as sociedades em torno da legitimidade de certos modelos de convivência. O lado positivo desta tematização seria a possibilidade de se estabelecer links entre as diferentes manifestações de racionalidade, baseados em estruturações ético-discursivas simétricas, estimulando o jogo da interação/linguagem. O lado negativo desta ‘razão transversal’ (Olinto, 1996: 59) seria a possibilidade de se criar hiatos e rupturas que elevariam as chances de aproximação das heterogeneidades cognitivas.

Um elemento importante nesta discussão, e que parece por várias vezes esquecido, é a questão da inerente condição de heterogenia do ser humano que determina padrões de ação constitutivos das relações sociais. A idéia de um repertório uno e exclusivo nunca foi uma possibilidade empírica. Acreditar nesta idéia era dimensionar a sociedade do seu umbigo para cima. O ‘uno totalizante’ do início da modernidade, por exemplo, presumia uma estrutura burguesa européia pré-capitalista e usurpadora das racionalidades sociais por ela considerada periféricas, inclusive as das suas classes sociais inferiores. Os valores da era vitoriana para a mulher, por exemplo, condiziam com as expectativas da alta aristocracia e da emergente burguesia, mas não poderiam ser aplicadas as mulheres da classe operária que brotava neste contexto. O ‘uno totalizante’ caracterizava-se por uma determinada tentativa de eliminação da tematização de outras esferas acionais.

As autonomias cognitivas teriam as suas impulsividades (tematizadoras, principalmente) reprimidas em função de uma seleção sistemática de ofertas de padrões de comportamento aceitáveis pelas esferas de domínio. Não se pressupõe contudo que as diferenças entre os atores sejam anuladas. O dogmatismo cria um processo de relações hermético, uma casca que regula as relações na esfera pública e não na esfera privada. A questão da virgindade, por exemplo, caiu como padrão de comportamento em algumas camadas sociais, mas continua um preceito importante no imaginário da igreja católica e de outras esferas de ação social. Observa-se nesta descrição a idéia de um espaço público, ou esfera pública, como lugar do ‘uno totalizante’ na modernidade.

Várias teorias sociológicas, como a concepção de sociedade de J. Habermas (1983), tentam defini-la. Para o filósofo da escola de Frankfurt, dois fatos marcam a expansão da importância de se definir um espaço público. O primeiro foi a independência dos órgãos do estado, que tem por conseqüência um crescimento da burocracia no mundo ocidental do século XVII. O segundo é o aparecimento da mídia. Os dois fatos estão intimamente ligados pois indicam o começo da separação dos órgãos do poder da figura do monarca, que representava esta estrutura tematizadora do poder totalizante num momento anterior. Estes órgãos usam os mídia para divulgação de suas ações, criando um espaço de opinião desligado deste poder. No século XVIII, pode-se notar o nascimento de uma associação de pessoas que formam um público entre si, abandonando, num movimento interacional, a esfera privada. Nasce a burguesia e as suas formas de associação como as coffee houses, as bibliotecas, as editoras, indicando a substituição do mecenato pela mercantilização. Este processo cria uma esfera literária e nasce posteriormente o jornalismo político e o jornalismo independente. O reconhecimento institucionalizado da importância destas esferas acontece em dois momentos diferentes na Europa. O primeiro quando surge em 1782, na Alemanha a necessidade de se consultar o povo e, 40 anos depois, na Inglaterra, a publicação do primeiro manifesto partidário, o Tamworth Manifesto. Nota-se que a idéia de publicidade encerra uma necessidade de se demarcar uma área de legitimação de poder. É na esfera pública que se negociam as ordens do sistema, o segmento colonizador da sociedade. Estas ordens visam aprimorar e otimizar os seus processos de controle e automanutenção. No outro extremo encontra-se o lugar onde as ordens se aplicam, o mundo vivo, que é o todo de valores compartilhados por atores sociais com horizontes de expectativas comuns e suas relações. Ambos os pólos medializados pela esfera pública.

Tal idéia, levaria em consideração uma esfera parasítica que, no discurso e pelo discurso, almeja participar das discussões que levam ao consenso como possibilidade de manifestação da sua existência na sociedade.

A visão de publicidade acima descrita tem como base a idéia da espacialidade da esfera pública que é importante para um processo de globalização, mais exatamente a nova retórica do uno unitário tecno-econômico (Ianni, 1996). Assim como proclamado pelos detentores do discurso desta nova ordem planetária, a sua finalidade é instituir uma cidade global onde "está todo o mundo, os que estão e os que não estão, visíveis e invisíveis, reais e presumíveis e que continuara sendo um todo povoado de províncias e nações" cujas "culturas e tradições podem tanto desaparecer como se transformar e florescer, no âmbito da sociedade global". Esta é uma organização do sistema que comporta a homogeneização e a diversificação. Contudo, a inclusão do invisível, do presumível, dos que não estão, inclui um dado de virtualidade. Desta maneira, a esfera pública perde a sua força de espaço e pode ser também definida como uma ficção, um simulacro, ou ainda como uma autotematização da sociedade burguesa. Esta tematização caracteriza a multiplicidade como a substituição do uno, num movimento de ruptura com o modernismo que pressupõe uma simples substituição, mas com a mesma força dogmática. Ou corresponderia ainda a dizer que a sociedade estaria irrevogavelmente fadada a se desmanchar numa multiplicidade discursiva que levaria ao silêncio.

A resposta de Luhman (1994) a estas indagações está baseada na ambivalência sistema/ambiente, que se constitui pelo e no observador. Este, ao realizar operações de distinção, constrói o conhecimento de suas esferas de ação. Conseqüentemente, o resultado destas operações de distinção é resultado das condições que a própria ambiência gerou. Deste modo, os limites entre as racionalidades tornam-se maleáveis e dependerão da tematização das suas próprias fronteiras e porosidades. Esta construção temática, segundo Luhmann, se dá sempre através da comunicação, que visa sempre marcar uma diferença, um corte, uma manifestação de autonomias cognitivas. As realidades são, portanto, individuais e o que se entende por Realidade é uma construção baseada nas concepções individuais mais comuns e escolhida como modelo. A noção de espacialidade acima mencionada não é por completo abandonada nesta nova conceituação e continua como demarcação de esferas de ação.

Tal debate leva a crer que a estruturação de uma condição pós-moderna é a tematização da sociedade como a força preponderante da sua constituição. Esta força se afasta de um princípio gerador de uma característica de expressões (uma escola de pensamento, uma tendência política, um gênero literário) e aproxima-se de uma força narrativa que constituí um espaço de discussões sobre as possibilidades de construção de realidades. A mudança de foco do plano do agir para o plano da observação, que seria a idéia de uma pós-modernidade, introduz uma nova visão da esfera pública, que seria portanto a reflexão de todos os subsistemas sociais, de todas as interações, organizações, movimentos sociais, etc. A esfera pública é então um medium de reflexão social que registra a observação das observações, um espaço de reflexão para se ver como a sociedade esta sendo observada. Conseqüentemente a função dos mass-media seria a representação desta, criando possibilidades de observação inimagináveis, tornando-a visível.

A base do processo de legitimação do sistema social e do processo de colonização do mundo vivo ai residem. O sistema estimula a ficção do espaço público de debates para através de medializações motivar a aceitação de ofertas de modelos, de padrões, normas, convenções, visando regularizar a impulsividade das autonomias cognitivas. A pós-modernidade, como projeto discursivo tematizador, articula e possibilita a ‘consciência’ da criação destas fronteiras e aberturas.

Uma das aporias comuns da discussão sobre o pós-moderno, a de que a própria idéia de que uma postura de interação discursiva seria

Uma espécie de catálogo de normas e valores fundamentais para as ações, relativos basicamente a idéias e princípios gerais como liberdade, direito ao desenvolvimento individual, eliminação de hierarquias, solidariedade e cooperação... (Olinto, 1996:61)

Este catálogo reavivaria os ideais mais clássicos do discurso moderno. No entanto, à medida que passamos a considerar a pós-modernidade como uma força discursiva que tem no linguagir a sua tensão, esta possibilidade se desmancha. Isto quer dizer que a pós-modernidade seria mais bem entendida como um ‘meio’, um poder discursivo, que possibilitaria a autotematização a partir de valores diretamente relacionados às racionalidades que operam esta autotematização. Isto implica na possibilidade de uma dança em grupo, um baile, uma articulação em conjunto que, não refutaria as possibilidades de um esgotamento de alguns conceitos da modernidade, mas também não a deixaria sentada a vislumbrar a contra-dança. Afinal, a heterogeneidade é algo inerente ao ser humano, enquanto a percepção dela não.


   Artes e manifestações culturais


Tendo tanto gerado visões apocalípticas e de crise de representação, como também análises que defendem a validade e o valor das inovações conceituais e tecnológicas da esfera da produção artística, a onda pós-moderna lançou a arte tanto no mar da liberação das suas potencialidades quanto na correnteza da perda de sentido. Os artistas, escritores, e criadores multimídia pertencentes a este último grupo tem poucas dúvidas sobre o potencial criativo da sua era. A teoria, contudo, só recentemente abraça esta visão. Friederic Jameson, em entrevista a revista Flash Art (1986) admitiu que teoria e arte pós-moderna podem explorar "modes of a new space". De acordo com sua opinião, alguns artistas, como Warhol, se destacam na descoberta deste novo espaço.

Warhol é emblemático de uma característica do pós-modernismo e o mesmo serve para Paik. Eles permitem que você analise e especifique algo parcial, e nesse sentido suas atividades são certamente originais; eles identificam uma gama completa de coisas a fazer e então se lançam a colonizar este novo espaço.

Outra opinião a favor desta criatividade é a de John Cage. Ele sustenta que as inovações arquitetônicas e tecnológicas da cultura pós-moderna permitem "um potencial de iluminação global e de desenvolvimento e convidam novos modos de representação e conceitualização". A relação dos dois pontos de vista acima com o processo de globalização é evidente. A potencialidade global de criação de espaços virtuais é correlata dos processos globalizantes, pois a nova possibilidade de representação, que assume teores de revolução, imprime padrões de fazer de acordo com as especificidades da redução de contingência. Ainda relacionada a esta visão, podemos citar Cage (1979) sobre a arquitetura

Eu acho que uma grande parte da nossa experiência vem do largo uso de vidros em nossa arquitetura, de modo que nossa experiência é uma reflexão, colagem, transparência. Eu acho que estes elementos são muito importantes e muito diferentes de uma vida que tem menos vidro...

É equivocada, entretanto, a idéia de Cage de que esta visão totalizadora seja patente da pós-modernidade. O sistema penitenciário baseado no Panopticum de Jeremy Bentham, no qual a visualização total das alas de uma prisão estava ligada a uma organização arquitetônica que procurava a transparência. Além disso, a construção de torres de vidro nos castelos do século XV, onde os representantes do clero visualizavam todos os acontecimentos a sua volta, é mais um exemplo deste equívoco. Cage afirma também que a sociedade atual acredita na imutabilidade das coisas. Esta estase para ele é imaginária, inventada pelo pensamento para simplificar o pensar. Segundo o musico americano, o processo de reflexão é uma atividade complexa e hiperdinâmica, devido à adaptação das mentalidades a uma corajosa visão das coisas em movimento, a vida em revolução. Segundo seu ponto de vista, o resumo deste pensar corajoso se encontra no projeto arquitetônico de Buckminster Fuller, que tem como idéia central triplicar a eficácia e implementar a distribuição dos recursos mundiais para que todos no mundo tenham o que precisam. Este projeto de design-resolução-de-problemas faz parte do conceito de Cage de liderança mundial, que deve ser radical, global, arquitetônica.

A corrente oposta a esta postura positiva afirma a existência de uma crise crítica e criativa e uma condição do seu presente que não oferece futuro. De acordo com Jean Baudrillard, cada fato político, histórico e cultural é imbuído, pelo seu poder de difusão na media, com uma energia que o lança fora do seu próprio espaço para sempre e o impele num hiperespaço onde ele perde todo o seu significado, já que nunca retornará. Esta visão apocalíptica parece encontrar eco na própria formulação das opiniões anteriores, quando se afirma a dinamicidade do pensar e da percepção do movimento de revolução atestado por Cage. A velocidade da transmissão de informação alcançada hoje pela tecnologia dessubstancializaria, então, o caráter humano da criação artística. Diamanda Galas (1986, 1987), compositora, é uma voz contra este ditame. Ela afirma que a revolução eletrônica, ,por exemplo, não coloca a arte numa condição não humana. Pelo contrário, ela domina seu equipamento "I dominate (it)... when it is not working I keep trying, doing it". De forma contraditória, Diamanda revela a subordinação da sua criação. Ela afirma a dominação do aparato eletrônico, da linguagem padronizada oferecida pelo contexto tecnológico i. e. a produção de contingência aceitável. A grande novidade é que o artista não é mais o criador em potencial, já que até é possível gerar programas de computador que, de forma independente, façam poesia. O artista é o controlador do meio, da técnica que permite que a estrutura tecnológica opere. A despeito dos limites tecnológicos anteriormente expostos, a arte pode se manter descompromissada com a heteronomia e ser reveladora da singularidade quando se observa e tem consciência da sua inter-relação com o passado, o presente e o futuro, descortinando possibilidades de manifestações que possibilitem uma reflexão sobre a essência das coisas, sejam elas valores antigos, novas crenças, novos ou antigos padrões. O dançarino, cantor e coreógrafo americano Meredith Monk resume na sua teoria estética tal princípio e para ele a arte é um processo de cura da estase provocada pela extrema velocidade da transmissão de informação. Ele afirma "one of the reasons for doing art now is to have the antidote to numbing... art process as a healing process, and that it's very necessary in the world we live in now".


   Literatura e escrita de histórias de literatura


As muitas formas pelas quais se expressa a arte na pós-modernidade correspondem a muitas faces do discurso de uma sociedade que se tematiza como multicultural. A configuração da arte, em suas múltiplas facetas, como acima descrito, apresenta-se paralelamente, na literatura. Segundo Reis (1987) a literatura contemporânea apresenta nítidas marcas distintivas na arte e literatura produzida no leque pós-moderno:

Descontinuidade; quebra da seqüência previsível; utilização de todas as linguagens[...]; incorporação num mesmo texto, de fragmentos diversos, de vários autores, estilos e épocas, etc., realizando o que se chama intertextualidade; simultaneidade de cenas, imitando procedimentos do cinema moderno; introdução, na prosa, de técnicas de construção de poemas; inclusão, na composição do texto, de posicionamentos autocríticos [...] (86)

Dentre os traços peculiares presentes em todas as modalidades artísticas, destaca-se a tendência a eliminar as fronteiras entre a arte erudita e a arte popular, com intensa valorização desta última voltada para a cultura de massa. Diluem-se também os critérios tradicionais de definição da estética. O cruzamento de vários textos – a valorização da intertextualidade, a aproximação com obras do passado – determina a confluência de estilos, exibindo e destacando o meio, a mídia, e não o produto final. Alguns autores contudo, tentam listar características específicas da produção literária pós-moderna, como por exemplo Domício Proença Filho (1988).

Tais descrições não são, contudo, a contribuição mais relevante para o sentimento pós-moderno, pois tenta inferir, através de elementos específicos, a pós-modernidade como sendo mais uma escola literária e artística, nos moldes da substituição acima já debatido. A maior importância de um espírito pós-moderno na área das artes e da literatura é exatamente as possibilidades meta-teóricas que as contribuições de discussões sobre relatividade e pluralismo trouxeram e a tematização acirrada de esferas de ações específicas, como a esfera literária. Neste espírito, no fim da década de 80, o interesse na esfera do agir do leitor e os aspectos da recepção tornam-se mais acentuado e as questões pertinentes à configuração social deste ganham força. Nesta época surge a Ciência Empírica da Literatura do grupo NIKOL de Bielefeld/Siegen, na Alemanha. Segundo esta corrente, o agir literário pode ser entendido como toda atividade no interior do sistema de ações denominado literário, correspondendo a uma rede de atividades. Orientadas para e interpretadas à luz de um conhecimento cultural que inclui normas de convivência dos atores sociais, seus valores e suas emoções, as ações literárias são específicas e se identificam com os quatro papéis sociais peculiares ao sistema literário. Estes papéis são a produção, a mediação, a recepção e o pós-processamento literário. Tal postura demanda uma incessante busca por modelos de análise de investigação das ações literárias que ofereçam a chance de se observar a complexidade do sistema literário, a pluralidade dos papéis sociais e suas relações com a literatura, e as relações destas com as outras instancias midiáticas.

No âmbito da escrita de história da literatura, uma série de projetos que apresentam uma proposta que acentua, da mesma forma que os Estudos Empíricos da Literatura, a diversidade, a complexidade e a contradição destas configurações como elementos norteadores da sua construção em oposição a perspectivas globais e homogeneizantes, são propostos. Dois exemplos são A Columbia Literary History of the United States (1988) e A New history of French Literature (1989). Ambos configuraram-se como projetos que problematizavam os modos de representação da historia acentuando sua diversidade, complexidade e contradição, caracterizados como espaços de vozes múltiplas provenientes de várias configurações geoculturais e disciplinares. Um outro exemplo de proposta alternativa ao discurso tradicional da historiografia literária é a obra Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo (1999), de Hans Ulrich Gumbrecht, publicação da Universidade de Harvard. Organizada em três seções com 51 verbetes em ordem alfabética a obra propõe uma ausência de hierarquização e cronologia dos elementos que a formam, erigindo sua estrutura através de descrições empíricas, que, como num hipertexto, criam, através da experiência das referências, um estado de contato com a época em questão. Caracterizado como um “ensaio de simultaneidades”, nas palavras do autor, o livro sugere, segundo Olinto, (2000) um “modelo de rede ou de campos de realidades, não apenas discursivas, que moldam condutas e intenções no ano de 1926”.

Uma outra obra que impressiona pela sua proposta e execução, mesmo não sendo ela um exercício de escrita de história literária propriamente dita, é a The Bedford Shakespeare Series (1999). Segundo seu editor, na apresentação da série, a intenção desta é

...resituates Shakespeare within the sometimes alien context of the sixteenth and seventeenth centuries while inviting students to explore ways in which Shakespeare, as a text and as cultural icon, continues to be part of contemporary life (vii)

Com o subtítulo de Texts and Contexts, a obra enquadra uma peça do autor inglês numa rede de materias diversos: imagens, letras e partituras musicais, homilias, mapas, outras peças, tratados médicos, narrativas de viagem, entre outros. Estas ‘referências’ criam uma rede de contrastes entre este material e o texto de Shakespeare, intencionando reconstruir as conexões entre a obra literária e o contexto social da sua produção e das suas próprias referências internas. A edição de A Midsummer Night’s Dream, por exemplo, inclui, trechos do poema metamorfose do romano Publius Ovidius Naso (43 BC- 17ª AD) e condenações por bestialidade de alguns vilarejos ingleses no século XVI, funcionando como hipertextos à questão da transformação do personagem Bottom em um ser meio asno meio homem às possíveis leituras do caso de amor entre este personagem e Titânia, a rainha das fadas, respectivamente. Esta publicação aproxima-se da idéia de um ensaio de simultaneidades, assim como acima descrito.

Tais exemplos circunscrevem experiências que podem indicar uma tendência e uma possível indicação para uma escrita da história pós-moderna. Estas construções demonstram, na sua origem, a necessidade de revogar o poder explanatório das teorias teleológicas da literatura em favor do exame pragmático/empírico do agir literário. Elas pressupõem a temporalidade da consciência e suas estruturas de sentido, capturando nessas a descontinuidade e a simultaneidade dos eventos. Segundo Olinto (2000)

Essa temporalidade não poderia ser segmentada e classificada, no máximo poderia ser narrada segundo um fio arbitrário que costurasse sua matéria instável, a literatura intersubjetivamente reconhecida como tal, e que fizesse as associações possíveis com os dados contextuais, tanto os inconscientes quanto os aparentes. Nesse sentido, o fundamento para essa ação intencional estaria nos vestígios materiais a que ela se dirigisse para dar-lhes sentido, o que reforçaria a função, no sistema assim constituído e constituinte, das fontes documentais primárias.

As obras levam em consideração que, a partir do reconhecimento de que a contrafação dos horizontes de expectativas não depende apenas da concretização destes leitores a partir de normas e de analogias entre obras e panorama literário-histórico ou da colisão entre função poética e exercício da linguagem. Elas exigem o contexto social e histórico da recepção, assim como nos foi observado na contribuição de Jauss (1967, 1996).

Nota-se também que todos estas experiências tem no princípio de construtividade da realidade o seu pressuposto principal. Isso gera a percepção de que os fatos históricos são peças constitutivas de um domínio social específico e um foco particular na descrição do passado. Além disso, toda a combinação de fatos históricos é uma construção dependente do sujeito e das escolhas teóricas por ele feitas, e que deve ser avaliada como pertinente em relação aos pressupostos, interesse e conjunto de valores de seus pares que, interagindo numa comunidade, aceitam uma história de literatura como uma história válida. A criatividade e a imaginação, portanto, funcionaria como instrumento de acoplagem que possibilita a geração de conceitos, organizações de processos cognitivos, de modelos de comportamento e de metodologias para a construção de descrições históricas plausíveis e como possibilidade de encontrar/construir outras fontes e referências. Um outro dado relevante, e a da concepção de seqüencialidade e de organização temporal, que se coloca como uma noção organizacional explicativa, e que não deve ser substituída por uma noção de tempo que se torna um princípio explicativo transcendental e ontológico para as descrições semânticas dos processos históricos da literatura. Seria também uma função do historiador pós-moderno atestar e apontar para as características do seu próprio fazer.


   Palavras finais


No prólogo do seu livro The History in literature: On Value, Genre, Institutions (1990) Herbert Lindenberger discute a escolha do nome do seu primeiro artigo e prólogo ao mesmo tempo “Experiencing history in the Age of Historicism”. Sua dúvida na idealização do título transitou por nomes como ‘Constructing history’ e ‘Rethinking history’. Tais dúvidas surgiram do debate entre a sua postura como escritor de historias e da substância do assunto especificado nesta obra: o exame da historicidade implícita na percepção da história no século dezenove. Ao longo da obra, o autor procura discorrer sobre as circunstancias e processos pelos quais as convenções e valores literários são moldados, pelos quais os cânones são constituídos e como as instituições literárias ignoraram a historicidade dos textos literários e do discurso crítico. Utilizando referências ao período romântico, as operas, que para ele está no local intermediário entre a música e a literatura, todos a luz dos debates sobra a diversidade cultural dos anos 80 Lindenberger comenta

To the extent that we have distanced ourselves from these categories created by that most historical-minded of times, the nineteenth century, perhaps we can learn to do history in inventive new ways without, for instance, the burden of those particular period designations that were themselves inventions of that time and without, as well, the need to embed our historical perceptions within the various binary pairs I have sketched out in the course of this essay (18).

Posteriormente, ele acrescenta

If I may return to the titles I toyed with at the start of this essay, a posthistoricist approach would stress not so much the “experience” of the past, whether of history or literature, but rather the processes by which we “construct” whatever pasts we deem serviceable (19).

É neste espírito, mesmo que denominado talvez não muito felizmente por Lindenberger de pos-historicismo, que este artigo termina. E termina ainda sem responder a pergunta inicial, o que foi explicado ao meu leitor logo no início. Espero que este artigo ao menos projete uma reflexão sobre alternativas para a escrita de histórias de literatura. Espero que meu leitor também perceba que os temas aqui por mim levantados direcionam, assim como o projeto de Lindenberger, as questões da escrita de histórias literárias para os fundamentos da sua própria construção. Talvez na reflexão sobre estes brotem estratégias para a concretização de um projeto que possa corresponder às expectativas de uma estruturação ‘pós-moderna’ da história da literatura e ainda outras reflexões que tentem pensar se tal estruturação pode servir como modelo para a produção de futuros experimentos historiográficos da literatura.



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