O Pós-Modernismo e a literatura de Mainstream
Ensaio: "O Pós-Modernismo e a literatura de Mainstream", por Rober Pinheiro¹
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Em um mundo aonde os meios tecnológicos ditam as regras e a forma de viver passou a ser reflexo desta condição, assumindo um ritmo assustadoramente rápido, tornou-se evidente que o modelo de representação vigente até então já não comporta este avanço em sua totalidade. Velhas definições foram definhando e uma nova consciência, mais generalizada, quiçá plana, surgiu.
É neste terreno de múltiplas possibilidades que surge a ideia de Pós-modernidade. Os conceitos que englobam sua definição podem ser resumidos por certas características peculiares predominantemente desenvolvidas no século XX, a saber, o boom dos meios de comunicação e a propensão em se deixar dominar por seus inúmeros tentáculos; a colonização do nosso universo, até então particular, pelos mercados, seja ele econômico, político, cultural ou social; a celebração exacerbada do consumo como modo de expressão pessoal; a pluralidade e pouco aprofundamento cultural, seja no âmbito restrito ou global; a polarização social e a falência das grandes metanarrativas como fomentadora da consciência e aprofundamento individual.
A pós-modernidade recobre todos esses fenômenos conduzindo, em um único e mesmo movimento, a uma lógica cultural que valoriza o relativismo e a indiferença, a um conjunto de processos intelectuais flutuantes e indeterminados, a uma configuração de traços sociais que significaria a erupção de um movimento de descontinuidade da condição moderna, ou seja, mudanças dos sistemas produtivos e crise do trabalho, eclipse da historicidade, crise do individualismo e onipresença da cultura narcisista de massa. Em outras palavras, a pós-modernidade tem predomínio do instantâneo, da perda de fronteiras, gerando a ideia de que o mundo está cada vez menor através do avanço da tecnologia, deixando-nos diante de um mundo virtual, onde imagem, som e texto são produzidos em velocidade instantânea.
Como colocou Fredric Jameson, teórico do pós-modernismo, o indivíduo perdeu sua identidade e tornou-se, a rigor, impessoal. A pós-modernidade contém características progressistas e reacionárias, cuja expressão cultural está intimamente ligada aos aspectos mercadológicos, transformando a cultura, antes oriunda de uma lógica pensante, em simples mercadoria. A sociedade pós-moderna, assim, é marcada pela falta de profundidade, pelo excesso de superficialidade e pela mercantilização da arte como um todo. Segundo Jameson, “nós nos pensamos enquanto mercadoria, e esta é, talvez, a mais importante característica formal de todos os pós-modernismos“.
Neste contexto, a literatura nos chega como a sublimação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo, onde apenas o momento presente tem importância, seu precedente, sua historicidade, não acrescenta nada e, portanto, deve ser banalizado. Mudam-se valores; a partir de então é o novo, o fugidio, o efêmero e o individual que deve prevalecer
Como exemplos notórios da disseminação dos aspectos pós-modernos estão dois dos mais respeitados escritores da chamada literatura mainstream; um americano e, outro, inglês.
Na obra Iniciantes, o escritor norte-americano Raymond Carver traça um panorama da pós-modernidade através de contos cujas características mais acentuadas são o tom minimalista da narrativa e a ruptura com quaisquer influências anteriores, buscando no momento presente a completude da ideia proposta. O conto “Torta”, um dos mais significativos do livro, cuja referência direta se dá em relação ao dualismo amor / renúncia, figurará, aqui, como excelente exemplo.
“O carro estava lá, e não os outros, e Burt deu graças a Deus por isso”. Este conto nos apresenta Burt, um homem divorciado que decide, sem convite, ir visitar a família no dia de Natal. Recebido com ressalvas pela ex-esposa e os dois filhos, ele se vê às voltas com uma série de acontecimentos aos quais, dada a separação, não tem mais acesso, mas que, pelo hábito, ou pela inércia de sua própria condição, não consegue abandonar. Entre troca de presentes e elogios vazios, Carver nos apresentar dois dos mais marcantes aspectos da pós-modernidade; Burt é um sujeito inserido na vida planificada das famílias das grandes cidades e, como tal, perdeu o sentido de unicidade, de individualismo. Para ele, épocas como o Natal já não representam um sentido particular, mas sim, figuram como “panos de fundo” de algo que já não mais lhe pertence e para o qual ainda existe “uma brecha cabível de reparação”. É como se, através dos presentes e da festa, ele pudesse se sentir inserido novamente no ambiente ao qual estava acomodado e no qual sua vida tinha certa significação. Para ele, o Natal, sem toda aquela encenação, enfeites ou reuniões em volta da mesa, se lhe afigurava vazio de sentido. Não sentido como forma da plenitude do fato, mas sentido como perpetuação da mesmice. Por outro lado, os mesmos presentes com os quais ele tenta reconquistar esse espaço perdido, esse vazio de sentido, é a representação do vazio maior de toda a família. Os presentes representam a planificação de significados, a diluição da cultura e do individualismo e sua imersão na efemeridade da cultura de massa.
Ao ver-se excluído de um espaço que julgava seu, espaço este que passa a ser ocupado “por outros”, e de um amor que dava sentido ao seu não-sentir, Burt reage da única forma possível a quem se sente perdedor; tenta acabar com o Natal da família roubando-lhes as tortas e quase ateando fogo na casa, por conta do excesso de lenhas postas na lareira.
O ciúme expressado pela personagem ao ver-se preterido é, aqui, uma forma de renúncia. Com isso, Burt renuncia a uma vida nova, vazia dos sentidos comuns e aberta a novas experiências. Para ele, apenas o que está estratificado tem importância; apenas aquele espaço planificado, conhecido e vivido é válido e não há espaço para uma nova busca por outros significados. Manter-se no nível da superfície, ou seja, do que já se tem por certo, é o que importa e, portanto, o “retorno ao seio do lar” é o desejado.
Assim, o conto também evoca de modo muito particular outras duas características marcantes do pós-modernismo: a falta de expressão e a ansiedade. A vida cotidiana, as experiências psíquicas e as linguagens culturais passaram a ser dominadas pelas categorias de espaço e não pelas de tempo, como o eram no período anterior do alto modernismo.
Burt não quer deixar que seu espaço seja invadido, tanto que, no dia seguinte, retorna a casa para resolver o que não foi resolvido na noite anterior. Aqui, novamente a questão do amor e da renúncia se faz presente. Não que Burt ame sua ex-esposa, mas ela é a representação da segurança que ele perdera, do espaço conhecido, da planificação de seus sentidos. E é através do ciúme inconsequente que ele renuncia a tudo o mais. Como desfecho de sua condição, o ato de cortar o fio do telefone quando sua ex-esposa fala com outro evidencia esse desejo de se desligar do que está fora daquele espaço, de reter aquilo que lhe é conhecido e não deixar que nada de externo possa entrar. E quando, após um ato seu de possível agressão com um objeto que lhes era comum, ela lhe pede para “deixar nosso cinzeiro aí”, ele entende sua fala como uma abertura àquilo que pretendia, um retorno, por assim dizer, ao seu espaço. A renúncia da ex em seguir com a discussão é, para Burt, um retorno do amor, não a ela, mas ao comodismo de sua situação. Diante desta evidência, resta a ele retornar em outra data para “acertar o que não está certo”.
Seguindo esta linha de pensamento dualista acerca do amor e da renúncia, outro texto que evoca as características pós-modernistas é o conto “Reviver”, do inglês Julian Barnes, presente na obra “Um Toque de Limão”.
Nele, Ivan, um escritor já afamado pela vasta obra, se vê diante de um pedido inusitado: o encurtamento de uma velha obra sua para representação por uma atriz da qual jamais ouvira falar. No dia da encenação, o velho escritor se vê “arrebatado pela jovem atriz”, vítima do mesmo amor cuja personificação é o tema central da peça.
Porém, este amor é idílico, vago em sua realização, um amor fadado ao platonismo, visto a diferença de idade entre ambos e sua equivocada rigidez moral. Aqui, há a confusão entre personagem e pessoa; o velho escritor não sabe se seu amor é de fato pela jovem atriz ou se por sua personagem, Verochka, que, antes apenas uma coadjuvante negligenciada, nesta nova visão lhe arrebata sobremaneira o coração.
Num primeiro momento, nota-se a presença significativa da estratificação cultural na própria encenação. Passados apenas trinta anos, a peça teve de ser cortada para se adequar aos novos palcos e as novas plateias. Apenas um ajuste a princípio, esse corte sugere toda uma concepção de visão cultural; já não se aceita mais a cultura como forma de aprofundamento do pensar. Agora, ela deve ser leve, ágil, rápida. Aqui, a renúncia do escritor-personagem já denota seu caráter pós-modernista; abre-se mão de uma obra antiga, completa em suas significações, mutila-se seu sentido primário em detrimento de um público inapto, pouco exigente e, acima de tudo, massificado.
Passado esse momento inicial, surge entre os dois um acanhado flerte; ele, beijando-lhe as mãos em cartas sentimentais; ela, aceitando de bom grado seus galanteios.
E, então, surge a questão da jornada, a representação do enfrentamento dos desafios em busca do amor que está longe. E esta viagem, que anteriormente era tida como o ato final do amor romântico, dura exatos cinquenta quilômetros.
Em seu Teoria da Literatura: Uma Introdução, o crítico Terry Eagleton afirmou que a literatura pós-moderna “é uma arte de prazeres, superfícies e intensidades fugazes. Por saber que suas próprias ficções são infundadas e gratuitas, [o escritor] pode atingir uma espécie de autenticidade negativa apenas ao alardear sua irônica consciência desse fato, pervertidamente chamando atenção para seu próprio status de artifício construído”.
Barnes, através de um narrador tendencioso e, por vezes, cínico, trata estes dois momentos de modo bem peculiar. Embora o escritor veja na atriz a representação de sua amada personagem, o palavreado de amor e entrega constantes nas cartas que ele envia é vazio e convencional, não remetendo a qualquer nota de originalidade. O amor torna-se simulacro de tantas outras situações cujas verdades estão estampadas apenas nas velhas folhas que escrevera. É como se o autor, ao se referir ao seu amor pela atriz, fizesse uma colagem de outros tantos amores. Tanto que, no final, este amor tem a duração exata de apenas cinquenta quilômetros.
“Ele a contemplou; beijou-lhe as mãos, inalou o ar que ela exalava. Mas, não ousou beijar-lhe os lábios: renúncia”.
Mesmo tendo-a a seu alcance e contando com seu pleno consentimento, ele optou pela renúncia ao amor. Ou, antes, optou por renunciar não ao amor em si, visto que a amava tão substancialmente quanto se ama a superfície calma de um lago; neste momento, ele renuncia àquilo que está fora de sua rede de significações, que foge da simplicidade dos argumentos que suas peças tão bem simularam e que, por definição, representa a superficialidade de seus próprios sentimentos. O narrador se pergunta por que diabos havia de ser tão covardes as pessoas do mundo, cuja capacidade de se livrar das convenções simplistas da vida e se entregar a um novo amor, verdadeiro, de mãos e pele, lhes era nula. A resposta talvez esteja na própria concepção renunciante do escritor. Aceitar aquele amor seria ultrapassar uma barreira para a qual seu espírito não estava preparado, seria esvaziar-se dos significados comuns, já tão arraigadamente seus, e partir em busca de novos alentos.
A desculpa, então, recai sobre aquilo que mais pesa entre ambos, a idade, e o pensamento final “ah, se…”, como forma de escape, de renúncia, se qualifica como a estagnação de significados, de superficialidade, tão presentes nas obras pós-modernas.
E uma vez renunciado o amor, resta apenas uma mão vazia, mão feita de frio gesso, como forma de continuidade, de banalização de sentimentos já meramente superficiais.
Nota-se, então, que em ambas as obras há a presença de um amor cujo alcance está fora da esfera daqueles que o buscam. E seja ele um amor destrutivo, passional e com fortes inclinações a crises de ciúmes ou um amor platônico e idealizado, ambos seus perseguidores o renunciam por não entendê-lo, por esvaziar seu sentido e tentar enquadrá-lo apenas à sua esfera de compreensão.
As personagens de ambos os contos mantêm-se na superficialidade de suas emoções, e tanto Burt quanto Ivan vivem apenas dentro daquele mundo particular ao qual foram condicionados e, ao se verem diante de uma nova possibilidade, de algo que pode arrancá-los da mesmice cotidiana, renunciam tenazmente a ele utilizando-se para isso de quaisquer argumentos que estejam ao alcance, seja uma mão de gesso ou o roubo de cinco tortas.
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¹ Rober Pinheiro é publicitário e escritor, formado em Comunicação Social pela PUC/SP e pós-graduado em Literatura Contemporânea.
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