Pela janela
Contos, por Ana Cristina Melo.
Pela janela
“Belinha, sai dessa janela, menina!”
“Já vou, mãe.”
“Já te disse que é perigoso, qualquer hora o tiroteio recomeça.”
Era o morro que sua retina capturava. Um painel de múltiplas cores, encarapitadas na pedreira que se perdia para todos os lados. Em relevo, antenas e roupas brotando das lajes disfarçadas de terraço. Múltiplos tons de azul, verde, amarelo, branco cor de cal ou marrom cor de tijolo sem emboço, expressando a realidade tão próxima, e ao mesmo tempo tão distante de seus nove anos.
As casas vizinhas à sua eram arrumadas, em nada se pareciam aos barracos vistos da janela. Algumas reformadas, com terraço ladrilhado, resguardado por largas telhas de alumínio. Até a piscina no quintal de Sabrina, a vizinha à esquerda, era grande e bonita, incrustada no chão. Isabel também tinha piscina, mas era de plástico, só quinhentos litros, cheia apenas pela metade, para não comprometer o valor esperado da conta de água. Mal dava para cobrir seus joelhos. Não ousava reclamar. Sabia do esforço da mãe para manter o básico de dignidade.
O pai de Sabrina também possuía carro novo na garagem. Não se comparava ao Fusquinha do Seu Jair, seu vizinho da direita. A casa da amiga de porta realmente era a mais bonita entre todas. A sua era mais parecida com a casinha da Branca de Neve, principalmente pelos anões que enfeitavam a varanda. Longe dos contos de fadas, não havia muito espaço entre as paredes da sala e dois quartos, nem no quintal que se estendia por vinte passos largos de seu pezinho trinta e um.
A mãe herdou a casa do avô dela, da época em que o terreno em frente era só uma grande imensidão murada de terras. A favela começou com a enchente da década de 60. Os desabrigados, depois favelados, hoje moradores da comunidade carente, dali não mais saíram. Deixaram os barracos de tábua, evoluídos para casas de tijolos, de herança para os filhos dos filhos, igual Avelino deixou para a mãe de Isabel.
O bairro em expansão dos meados do século anterior transformou-se numa aberração em meio ao gigantismo da favela de crescimento descontrolado a sua volta. Ao cúmulo de se chegar ao contrassenso da rua de Isabel. De um lado, a fronteira da favela, de outro, antigas casas, herança de remotos sonhos do bairro familiar.
Da janela, Isabel apreendia também a Igreja da Penha, enxergada por trás, exatamente por sua parte mais famosa. Felicidade era subir com a mãe, todos os domingos, os trezentos e oitenta degraus. Sentia um gosto de liberdade e de proximidade com o azul do céu e seu anjinho da guarda, para quem rezava todas as noites.
Lá de cima, Isabel sempre buscava sua janela. Imaginava-se como aqueles que talvez a enxergassem lá do topo do morro, sem intuir os sonhos que lhe escapavam pelo quadrado minúsculo.
Ultimamente nem podia ir à missa. A mãe dizia que era perigoso. Rezavam da janela, onde o eco da cantilena chegava aos seus corações, como se estivessem no último banco da igreja.
A vida apenas avó, mãe e filha, sem luxo e sem o pai que morreu antes de ela nascer, mantida pelos frutos do emprego de Operadora de Telemarketing da mãe, nunca lhe incomodara. Depois de perceber como se perde a liberdade numa fração de segundos, tragédias anunciadas pelas balas que deixavam rastros no céu, Isabel se desencantou com a realidade.
As aulas, que tanto apreciava, estavam suspensas desde que os tiroteios e balas perdidas passaram a fazer parte da rotina da vizinhança. As brincadeiras no quintal foram canceladas, e os devaneios da janela diariamente repreendidos.
Há dois meses não saía, desde que a polícia resolveu invadir o morro. Operação de meses, muitos inocentes no saldo negativo, outras tantas apreensões no positivo.
“Mãe, a Sabrina me chamou para o aniversário dela. É amanhã. Ela vai fazer na casa da madrinha que mora do lado de lá da Penha.”
“Ah, Belinha, não sei não. A época não tá para sair de casa.”
“Mas, mãe, é do lado de lá. Tiro não chega lá, não é?”
“Chegar, chega, filha, mas é mais difícil. Vou pensar. Amanhã se as coisas estiverem tranquilas por aqui, eu te levo.”
Ainda não havia amanhecido. O alaranjado parecia fazer birra para dar lugar ao azul. Isabel mal havia conseguido dormir. Na janela, olhava para o céu e para a igreja. Pedia que não houvesse o risco colorido traçando o céu, o risco símbolo de guerra, que daria fim a sua ilusão de apenas brincar como menina.
“Tá fazendo o quê acordada a essa hora?”
“Perdi o sono, mãe.”
“Vem me ajudar a pôr a mesa, vou fazer o café.”
O único som era o do café com leite sendo sorvido, preparado meio a meio conforme o gosto da filha. O mastigar do pão fazendo lembrar da visita ao dentista atrasada há um ano. Aquele silêncio estava cada vez mais frequente, desde que as aulas foram suspensas e ela teve que mudar a rotina da menina. Sim, talvez fosse bom sair daquele ambiente. Do lado de lá não haveria problema. Se não estivesse sozinha para criá-la, teria saído dali. Mas a casa estava desvalorizada. Ia comprar onde? Na boca de outra favela? Aluguel, nem pensar!
“Mãe, a casa da madrinha da Sabrina é longe daqui?”
“Não, filha, duas ruas depois que atravessarmos a passarela.”
“Olha, mãe, tá vindo o trem. !!!!!!!!!!!!!!!!!!! Mãe, que foi? Por que me agarrou forte assim?”
“Nada, filha, só acho que ouvi um tiro. Vamos acelerar o passo.“
A festa de Sabrina foi um espetáculo aos olhos das crianças. Show de mágica, palhaços, brincadeiras com a animadora, muita guloseima, bolo e docinhos. O tempo voou levando ao final os convidados, que iam saindo um a um. Os carros estacionados nos dois lados da rua partiam, deixando um naco de saudade no coração em festa de Isabel, tudo observado da janela da madrinha, que não era a sua, pois a sua nem sabia quem era.
Já não havia mais convidados, só Isabel que estranhava a mãe não ter vindo buscá-la. Sabrina a chamava para estrear os brinquedos que ganhara, mas a atenção de Isabel só flagrava a porta principal, na esperança que dali viesse o som da campainha. O mais assustador era que mesmo ali, no meio de toda a alegria, ela tivesse ouvido o barulho das balas, que riscavam a tranquilidade de quem morava do lado de lá da passarela.
Sabrina tanto insistiu e foi rejeitada, que se enfastiou de pedir a atenção de Isabel.
Naquele momento, seu maior desejo não era brincar, muito menos ficar ali, num lugar que não era seu. Era estar em casa, do lado de dentro da janela, sabendo encontrar sua mãe na cozinha. Não importava a reclusão, a falta de aulas, só queria a frágil segurança conhecida. Uma segurança tênue que lhe garantia não perder o mais precioso no meio daquele caos.
Não podia ligar. O telefone estava cortado. Não houve outro celular depois que roubaram o da mãe. O tempo se arrastava, igual aos batimentos do coração de Isabel, que ia encolhendo de aflição. Encontrou um cantinho em frente à janela, onde congelou seus músculos e pensamentos, e de onde podia ver o outro lado da Igreja da Penha – a parte da frente, tão bonita quanto a visão que tinha de casa. Via a lateral também que, iluminada, lembrava um grande palácio em festa, pronto para receber sua corte.
O telefone da casa tocou. Um som estridente que fez a menina tremer. A madrinha de Sabrina atendeu, respondendo com monossílabos aos entrecortes da ligação.
― Isabel, minha querida, sua mãe ligou. Você vai dormir aqui, está bem? Amanhã, assim que for possível, ela vem te buscar.
Isabel sorriu, um sorriso de festa, e então se voltou para a imagem da janela, e sua lágrima foi escorrendo timidamente, num agradecimento de menina à Nossa Senhora.
*
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