Escrita Criativa: Inspiração e Transpiração
Artigo para a seção Escrita Criativa, por Carolina Bernardes
Escrever é, assim, dialogar permanentemente com o discurso formador do indivíduo/coletivo...
Gostaria de inaugurar a seção de Escrita Criativa afirmando que talento não é o bastante para se escrever um grande livro e conquistar o apreço da crítica. Mais do que se fiar no dom ou vocação, é essencial aceitar que não se aprende tudo sozinho e por magia. Não quero com isso desmerecer a qualidade literária daqueles textos que parecem brotar de um lampejo único e inadiável, nem tampouco o conhecimento do autor. Também não é meu propósito defender a necessidade de formação em Letras, pós-graduação e pós-doutorado (todos os pós que existirem) nos diversos Estudos Literários para se produzir um texto respeitável. Muitos dos grandes autores não precisaram de escola alguma. O que afirmo é o seguinte: talento é imprescindível, mas sem trabalho árduo não se produz nada.
Assim como tocar qualquer instrumento musical, desenhar, dançar ou até mesmo dirigir um filme, escrever necessita de certo aprendizado e de ajuda. Aprendemos a escrever com a prática, com a repetição de tentativas e erros, com o sucesso e o deslize; em uma palavra: com a persistência. Mas esta prática que, no imaginário popular, isola o autor em seu escritório com vista para uma paisagem idílica, não é tão solitária. Obviamente exige seu momento de concentração e introspecção (como qualquer labor criativo), mas é intrinsecamente uma ação coletiva. De que maneira?
Nenhuma escrita nasce do vazio. As idéias surgem da relação que todos mantemos com o mundo exterior, das trocas incessantes entre o eu e o outro. Ainda que a intenção do autor seja escrever sobre uma experiência íntima, sobre um aspecto de seus sentimentos e sensações, certamente essa experiência terá sido constituída em relação ao mundo de fora. Ninguém sente sozinho, ninguém forma uma opinião sobre sua própria subjetividade sem o outro como parâmetro. As idéias surgem também do que fica em nós das coisas que apanhamos no dia-a-dia: uma frase dita por alguém, um rosto visto na rua, um filme, a leitura de livro. Todos esses exemplos têm em comum a existência de um outro. Portanto, a escrita literária se caracteriza pela interrelação contínua.
É ingenuidade não levar em consideração que vivemos em um mundo formado pela linguagem e pela cultura; nascemos em um mundo pronto e organizado – padrões, língua, significação das palavras, cultura, hábitos sociais, discursos sedimentados que formam a nossa visão de mundo. Esses elementos formadores do sujeito nada têm de individuais, porque são a formação do coletivo. Muitas vezes, o texto se escreve sozinho. Você já deve ter vivido a experiência de escrever um texto (ou partes dele) e ser surpreendido pela sensação de que não foi escrito por você, ou de não reconhecer sua identidade literária (estilo) naquela reunião de frases. Fica a pergunta: “Será que escrevi mesmo este texto?” Nesses momentos, em que o texto se torna irreconhecível, a escrita, a linguagem e a formação cultural ultrapassam as intenções do autor. As forças do inconsciente, do coletivo, atuam no processo de escrita; pois o sujeito não é apenas o que escolhe ser (e, portanto, escrever), mas principalmente o que o mundo fez dele. A escritura se organiza pela composição das escolhas do autor – os procedimentos intencionais – e das linhas de força inconscientes que ele carrega como bagagem.
Escrever é, assim, dialogar permanentemente com o discurso formador do indivíduo/coletivo, em movimento dialético: da leitura para a escrita e da escrita para a leitura. Se a leitura de autores preferidos pode constituir e formar o horizonte de expectativas e a bagagem do indivíduo, levando-o a compor seu próprio estilo como autor, o texto produzido por esse mesmo autor estabelece um diálogo com as leituras precedentes e inaugura nova comunicação com o leitor futuro (que também faz parte do discurso coletivo). Portanto, nenhum escritor é autosuficiente, independente e original; ele simplesmente está inserido na cadeia interdependente de todos os seres, que perpetua o jogo de retomadas, repetições, revisões e reavaliações de significados.
Retomo agora a questão da escrita como trabalho árduo. Se o autor não aprende sozinho e por magia, e se a escrita se realiza pelo intercâmbio entre o conhecimento do indivíduo e a formação coletiva, não se produz um texto por inspiração, como se o autor fosse um ser especial, iluminado, eleito de Deus ou aquele que tem o dom de lançar a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Sim, há a porção inconsciente que atua no processo, há as idéias que surgem como lampejo sem serem perseguidas, há o momento epifânico, a iluminação perfeita. É evidente que sim, mas e depois? Como escrever? Como se desencadeia o espírito criativo? Como usar os lampejos? Como tornar o mundo abstrato, situado na mente, em algo palpável, concreto e reconhecível pela linguagem? Não é o drama de todo autor? Seria, portanto, demérito necessitar de alguém que o auxilie nesse trânsito entre o amorfo e o texto organizado e coeso? Entre a idéia e o livro nas mãos do leitor?
A inspiração se configura pelo entusiasmo criador, pelo surgimento espontâneo da criatividade e da vontade de expressar. Mas, para tornar-se ato, para revelar o que é ainda (e apenas) o ímpeto em potencial, é necessário o veículo da manifestação, ou seja, transpirar. Trans- significa “através de”; é, portanto, o veículo da expressão, da revelação; é o deixar surgir, propagar, divulgar, manifestar. É preciso suar para fazer nascer a idéia especial, lavrada na mente. O movimento é análogo ao da respiração: inalar e exalar. O autor enche-se de hálito, de sopro, de ar criativo, fecundando uma nova idéia, e em seguida, lança o engendro de si, devolve-o à atmosfera da criação.
O trabalho é, evidentemente, árduo e duas ações o tornam possível: persistência e aceitação de que a escrita é também intercâmbio entre o que o deve ser ensinado e o que autor aprende por si mesmo. Inspiração e transpiração!
Assim como tocar qualquer instrumento musical, desenhar, dançar ou até mesmo dirigir um filme, escrever necessita de certo aprendizado e de ajuda. Aprendemos a escrever com a prática, com a repetição de tentativas e erros, com o sucesso e o deslize; em uma palavra: com a persistência. Mas esta prática que, no imaginário popular, isola o autor em seu escritório com vista para uma paisagem idílica, não é tão solitária. Obviamente exige seu momento de concentração e introspecção (como qualquer labor criativo), mas é intrinsecamente uma ação coletiva. De que maneira?
Nenhuma escrita nasce do vazio. As idéias surgem da relação que todos mantemos com o mundo exterior, das trocas incessantes entre o eu e o outro. Ainda que a intenção do autor seja escrever sobre uma experiência íntima, sobre um aspecto de seus sentimentos e sensações, certamente essa experiência terá sido constituída em relação ao mundo de fora. Ninguém sente sozinho, ninguém forma uma opinião sobre sua própria subjetividade sem o outro como parâmetro. As idéias surgem também do que fica em nós das coisas que apanhamos no dia-a-dia: uma frase dita por alguém, um rosto visto na rua, um filme, a leitura de livro. Todos esses exemplos têm em comum a existência de um outro. Portanto, a escrita literária se caracteriza pela interrelação contínua.
É ingenuidade não levar em consideração que vivemos em um mundo formado pela linguagem e pela cultura; nascemos em um mundo pronto e organizado – padrões, língua, significação das palavras, cultura, hábitos sociais, discursos sedimentados que formam a nossa visão de mundo. Esses elementos formadores do sujeito nada têm de individuais, porque são a formação do coletivo. Muitas vezes, o texto se escreve sozinho. Você já deve ter vivido a experiência de escrever um texto (ou partes dele) e ser surpreendido pela sensação de que não foi escrito por você, ou de não reconhecer sua identidade literária (estilo) naquela reunião de frases. Fica a pergunta: “Será que escrevi mesmo este texto?” Nesses momentos, em que o texto se torna irreconhecível, a escrita, a linguagem e a formação cultural ultrapassam as intenções do autor. As forças do inconsciente, do coletivo, atuam no processo de escrita; pois o sujeito não é apenas o que escolhe ser (e, portanto, escrever), mas principalmente o que o mundo fez dele. A escritura se organiza pela composição das escolhas do autor – os procedimentos intencionais – e das linhas de força inconscientes que ele carrega como bagagem.
Escrever é, assim, dialogar permanentemente com o discurso formador do indivíduo/coletivo, em movimento dialético: da leitura para a escrita e da escrita para a leitura. Se a leitura de autores preferidos pode constituir e formar o horizonte de expectativas e a bagagem do indivíduo, levando-o a compor seu próprio estilo como autor, o texto produzido por esse mesmo autor estabelece um diálogo com as leituras precedentes e inaugura nova comunicação com o leitor futuro (que também faz parte do discurso coletivo). Portanto, nenhum escritor é autosuficiente, independente e original; ele simplesmente está inserido na cadeia interdependente de todos os seres, que perpetua o jogo de retomadas, repetições, revisões e reavaliações de significados.
Retomo agora a questão da escrita como trabalho árduo. Se o autor não aprende sozinho e por magia, e se a escrita se realiza pelo intercâmbio entre o conhecimento do indivíduo e a formação coletiva, não se produz um texto por inspiração, como se o autor fosse um ser especial, iluminado, eleito de Deus ou aquele que tem o dom de lançar a ponte entre o mundo natural e o sobrenatural. Sim, há a porção inconsciente que atua no processo, há as idéias que surgem como lampejo sem serem perseguidas, há o momento epifânico, a iluminação perfeita. É evidente que sim, mas e depois? Como escrever? Como se desencadeia o espírito criativo? Como usar os lampejos? Como tornar o mundo abstrato, situado na mente, em algo palpável, concreto e reconhecível pela linguagem? Não é o drama de todo autor? Seria, portanto, demérito necessitar de alguém que o auxilie nesse trânsito entre o amorfo e o texto organizado e coeso? Entre a idéia e o livro nas mãos do leitor?
A inspiração se configura pelo entusiasmo criador, pelo surgimento espontâneo da criatividade e da vontade de expressar. Mas, para tornar-se ato, para revelar o que é ainda (e apenas) o ímpeto em potencial, é necessário o veículo da manifestação, ou seja, transpirar. Trans-
O trabalho é, evidentemente, árduo e duas ações o tornam possível: persistência e aceitação de que a escrita é também intercâmbio entre o que o deve ser ensinado e o que autor aprende por si mesmo. Inspiração e transpiração!
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Imagem: paulinepauline.
Olá!!!
ResponderExcluirA minha querida e eterna professora de Literatura sempre surpreendendo a todos. Parabéns pelo seu artigo!
Obrigada por jogar um pouco de luz sobre o fazer literário.Há um desejo enorme de praticar e aprender, falta-me o conhecimento do quando e onde.Graduação? Oficinas?
ResponderExcluirOlá, Eliane. Um curso de Escrita Criativa é o que falta. Eu gostaria de oferecê-lo em Ribeirão, falta-me apenas o espaço. Obrigada por sua participação.
ResponderExcluirCom carinho, Carolina
Olá,
ResponderExcluirSuas considerações sobre o processo de escrita são bem lúcidas e esclarecedoras. Respeitando duas posições antagônicas sobre o assunto, você destaca a necessidade do trabalho com a linguagem (essência da arte)e do aprimoramento estético. Nesse sentido, acho que seu texto contribui em muito aos que se enveredam pelo caminho da escrita.
Parabéns!
Olá, Carolina
ResponderExcluirCom certeza vc prova, sempre mais, o quanto é maravilhosa para escrever. Nas suas palavras enconro a grandeza que existe na cabeça de um autor, onde a criatividade e conhecimento andam lado a lado.
Parabéns
Carolina,
ResponderExcluirPeço licença para repetir
"Escrever é, assim, dialogar permanentemente com o discurso formador do indivíduo/coletivo, em movimento dialético: da leitura para a escrita e da escrita para a leitura. "
Belo artigo! Que sirva de reflexão a quem se dedica a arte da escrita.
Grande abraço
Rosângela Pásseri
Parabéns pelo novo trabalho........Sucesso Sempre!!!
ResponderExcluirBjks
O (in)consciente coletivo agradece por suas palavras. Excelente texto. ;)
ResponderExcluirAo terminar de ler esse artigo,meu sentimento é único:
ResponderExcluirinspiração,sim inspiração mesmo,pois com toda sua bagagem e seus ensinamentos,e a forma sincera que escreve,o resultado é sempre dos mais positivos!!!
Abraço!
Agradeço aos comentários de Kalós, Magali, Rosângela, Maurícia, Mariana e Caio. São os leitores que dão aos autores alguma pista se estão no caminho certo. A leitura é tão importante quanto a autoria! Abraços carinhosos!
ResponderExcluirUma abordagem impecável sobre o tema "escrever". Parabenizo-a pela excelência do texto e que Deus ilumine sua inspiração para sempre produzir matérias brilhantes.
ResponderExcluirFelicidades!
Suas lições são maravilhosas, Carolina, e certamente merecedoras de especial atenção por parte de toda a geração de romancistas, contistas, e poetas catapultados pela internet, para os quais o mero ato de vender os seus trabalhos constitui ambição maior. Os poetas se embaralharam na teia luminosa das denominadas formatações, verdadeiros papéis de presente para conteúdos muitas vezes imerecedores de qualquer brilho; os prosistas - entre os quais me incluo - correm atrás das sombras perigosas de finados mestres, ou se lançam na batalha da agressão conceitual, moral, e política como se escandalizar fosse o ato maior da literatura.
ResponderExcluirCarolina,
ResponderExcluirParabéns por seu artigo!
Olá, Isis. Que alegria encontrar um comentário seu aqui em minha coluna! Quanto ao tempo necessário para a escrita, infelizmente essa é a angústia de todos nós. A literatura realmente exige de nós uma certa tranquilidade para que inspiração e transpiração aconteçam. No entanto, a vida também exige de nós outras tantas entregas. Temos que escrever, entre uma tarefa e outra, em meio às aulas, à casa, aos filhos, às filas de banco, ao trânsito. Nesses intervalos, vamos cultivando a criatividade, até o dia em que o jogo inspiração/transpiração seja mais concreto que muitos de nossos compromissos! Obrigada pela visita e pelo carinho. Continue acompanhando as postagens, pois o caminho da escrita é de longo aprendizado. Abraços!
ResponderExcluirOlá, Heitor. Seu comentário é de extrema importância nesse aprendizado da escrita, em que estamos todos envolvidos. Reflexão muito bem elaborada sobre a realidade dos escritores atuais, o que indica grande capacidade de observação crítica. Creio que sua análise muito bem se coaduna com o artigo postado nesta semana "Autor: o artesão da palavra". Espero que tenha oportunidade de lê-lo, assim ampliamos o debate, com o intuito de que o aprendizado alcance mais autores.
ResponderExcluirForte abraço e obrigada pela gentileza de aqui comparecer!