I Concurso Literário Benfazeja

William Amorim entrevista Nadiá Paulo Ferreira - De novo... o amor

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Conversas literárias apresenta: William Amorim¹ entrevistando Nadiá Paulo Ferreira².

"...todo amor é narcísico. Mas nem todo amor se sustenta na ilusão de que é possível de dois se fazer um."

"Estamos de passagem pelo mundo. Mas não sabemos o tempo de duração de nossa viagem. Então é preciso desejar, amar e não se privar de viver os momentos alegres e felizes."




* Entrevista publicada no “Caderno Alternativo” de O Estado do Maranhão, em 12 de junho de 2010 e gentilmente nos enviada pela profª Drª Nadiá Paulo Ferreira.



Há vinte anos sem vir ao Maranhão, Nadiá Paulo Ferreira, essa renomada escritora portuguesa-carioca, professora Titular da UERJ e psicanalista, retornará à nossa Ilha do Amor, a convite do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção São Luis, para proferir a conferência Reflexões sobre o amor a partir da psicanálise, tema tão caro aos seres humanos, e ministrar um seminário sobre o Complexo de Édipo e suas relações com as Estruturas Clinicas (Neuroses, Psicoses e Perversão).

Na oportunidade, a autora de A Teoria do Amor (Rio de Janeiro: Zahar), autografará o seu livro Amor, Ódio e Ignorância (Rio de Janeiro: FAPERJ/ContraCapa) para o público presente no espaço Nazareth Ferraz, na Faculdade Athenas Marenhense (FAMA), instituição que apoia o evento. Conheça agora um pouco do que pensa a autora, através desta entrevista concedida ao psicanalista William Amorim.

W. A.: Por que tantos anos longe do Maranhão, terra que a senhora diz gostar tanto?
N. P. F.: Conheci São Luis há muitos anos atrás, aproximadamente, há 30 anos. Sempre tive vontade de voltar, mas a vida e seus contratempos não permitiram. Para mim, hoje, é como se estivesse vindo pela primeira vez.

W. A.: O convite do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise para proferir conferência sobre o amor, na véspera do dia dos namorados, dar seminário sobre Èdipo e estruturas clínicas e autografar seu livro Amor, ódio e ignorância (Rio de Janeiro: FAPERJ/Contra Capa, 2005), o que o público interessado pelo tema do amor pode esperar dessa conferência aberta e do livro a ser autografado?
N. P. F.: Esse livro, ao contrário de A teoria do amor, se dirige a um público que já tenha algum conhecimento de psicanálise. Ele é resultado da tese que escrevi para concurso de Professor Titular de Literatura Portuguesa da UERJ. Nele, me detenho, basicamente, em uma modalidade de amor, descoberta por Freud: o amor de transferência. Trata-se de um amor que, ao mesmo tempo, possibilita e dificulta o tratamento analítico. Isto não deixa de ser um paradoxo. Lacan, nos rastros de Freud, retoma o amor de transferência para articulá-lo com a suposição de saber. Se, por uma lado, é preciso que o analisando suponha um saber sobre si mesmo no analista. Por outro lado, esse amor se torna o grande obstáculo à associação livre que é, desde Freud, a condição de uma análise. Mas o amor de transferência não está circunscrito ao tratamento psicanalítico. Lacan faz questão de dizer que quem inaugurou o amor de transferência na história foi Platão, em seu livro O Banquete. Então, no meu livro, faço uma leitura desse texto e do romance, intitulado O Mestre, de uma escritora portuguesa contemporânea, Ana Hatherly.

W. A.: Seu livro A teoria do amor (Zahar ed) esgotou rapidamente. Recentemente a senhora concedeu uma bela entrevista à TV Globo sobre esse tema, participou do dossiê especial sobre o amor, na ultima revista CULT e vem aqui também falar de amor. Certamente esse tema inesgotável sempre causou e causará muito interesse em todos os tempos, posto que é indizível e carrega em si uma promessa impossível de felicidade: transformar dois em um. Todo amor é assim mesmo narcísico?
N. P. F.: Sim, William, todo amor é narcísico. Mas nem todo amor se sustenta na ilusão de que é possível de dois se fazer um. Esta versão do amor se encontra na fala de Aristófanes, em O Banquete de Platão. Melhor seria identificar esse amor com o sentimento da paixão. O apaixonado, ao ser capturado pelo objeto amado, não faz outra coisa senão sofrer, porque o que ele espera do amado é justamente o que ele não pode oferecer: a completude.

W. A.: Diferente de outros tempos regidos pelo discurso religioso, o mundo atual é regido e organizado pelo discurso do capitalista, onde o objeto ganha um estatuto de deificação. Quais os efeitos disso nas relações amorosas atuais? O que mudou?
N. P. F.: Nada mudou. Aliás, Freud, quando escreve O Mal-estar na civilização, afirma que não há progresso. Ou seja: mudam-se as vestes, permanece o manequim. Estou querendo dizer que se acreditamos que há uma estrutura do psiquismo, o amor é justamente o que foi inventado pelo homem para vir em suplência a essa estrutura marcada por uma falta, fazendo com que a inteireza, a completude, a plenitude sejam ilusões. Se hoje o que conta é ser famoso, rico, vip, etc, outrora o que contava era ser nobre, cavaleiro, abastado, corajoso, valente, etc. O que acho importante, como psicanalista, é não perder de vista a incompatibilidade entre singularidade do desejo e homogeneização da cultura. O invariante é sempre o mal-estar. O que muda são as formas do mal-estar.

W. A.: Freud dizia que o contrário do amor, não é o ódio, mas a indiferença. Seu livro trata sobre as paixões do ser, a saber, amor, ódio, ignorância. Como isso tudo se entrelaça?
N. P. F.: Sim, Freud nos ensinou que a marca indelével do amor é a ambivalência. Amor e ódio como sentimentos da paixão são simétricos. Se o que está em jogo no amor é o outro como ser, na paixão, amor e ódio se dirigem ao outro como objeto. Ou quero o objeto só para mim ou quero eliminá-lo do mundo. No caso do ódio, às vezes, não basta nem o assassinato. É preciso a difamação para denegrir a dignidade do ser de outro. A ignorância como paixão é a insistência em não querer saber nada da ordem do desejo.

W. A.: Um pouco de provocação agora. As mulheres necessitam mais ser amadas do que os homens? Não é curioso o fato de, frente a uma ameaça de separação, o homem diga "Se você me deixar, eu te mato" e a mulher diga "Se você me deixar, eu me mato"? A propósito, o psicanalista francês Jacques Lacan, dizia que a mulher é o sintoma do homem e o homem, a devastação da mulher. Sobre essa diferença, nossa escritora maior, Arlete Nogueira da Cruz, diz: “O homem se esconde na senzala da noite e morde a lembrança. A mulher, no desespero da hora, cata ansiosa os seus rastros de amor.”
N. P. F.: Concordo plenamente com você. Mas também faço uma provocação. O que você quer dizer com homens e mulheres? Se essa diferença, para a psicanálise, não passa pela anatomia dos corpos, aqueles que amam estão em uma posição feminina e aqueles que são amados estão em uma posição masculina. Os trovadores e os místicos sempre souberam disso.

W. A.: A nossa herança ou tradição ocidental greco-romana do amor nos "condena", de certo modo, a aspirar ao amor como paixão em detrimento do amor como dom? Não seria isso um empuxo à insatisfação?
N. P. F.: Concordo plenamente com você. Mas esse empuxo à insatisfação não é outra coisa senão o que nós, psicanalistas, denominamos de denegação da castração. A ignorância como paixão se caracteriza por “não querer saber”. O amor se diferencia da paixão assim como a ignorância douta (a ignorância socrática, a ignorância do analista) se diferencia da ignorância como paixão.

W. A.: Costuma-se pensar sempre na relação amor-ódio (amódio) e quase nunca na relação amor-morte (amorte). E, no entanto, nós humanos só sobrevivemos graças ao amor e ao desejo de outro, que desejou que vivêssemos. Verdade que, para os adultos, diferente das crianças ou adolescentes, a morte não é nada engraçada, porque já bem mais perto de nós, não é mesmo? Uma ignoranciazinha bem a calhar, não? (Risos). O que a senhora poderia dizer sobre esse binômio?
N. P. F.: Saber que nosso destino, como ser vivo sexuado, é a morte, não significa que temos que ficar pensando nela o tempo todo. O melancólico faz isto. O neurótico não quer saber desse destino, o que implica adiar sempre o desejo ou cultuá-lo como insatisfeito. Estamos de passagem pelo mundo. Mas não sabemos o tempo de duração de nossa viagem. Então é preciso desejar, amar e não se privar de viver os momentos alegres e felizes. É preciso também não sucumbir à tristeza advinda das decepções. Viver implica esbarrar com o mal-estar da cultura, com a perda de pessoas queridas, com o processo de envelhecimento do corpo, com a doença. Então, parodiando Fernando Pessoa eu diria: Viver não é preciso. Desejar é preciso.

W. A.: A propósito do Édipo, que a senhora trabalhará em um seminário aqui neste sábado, costuma-se vulgarmente dizer que a mulher casa com um homem parecido com o pai e o homem, com uma mulher como a mãe. Como se dão as escolhas de objeto então para a psicanálise?
N. P. F.: Isto é o que o senso comum pensa. Aliás, você mesmo disse que é o que se costuma dizer. O móvel do complexo de Édipo é o complexo de castração, o qual, por sua vez, se liga diretamente à assunção do sexo. O nervo, como diz Lacan, do complexo de castração é a paternidade, a qual não tem relação com o coito, com o parto e com o pai biológico. A paternidade para a psicanálise é simbólica. Justamente por isto o drama edípico pode se constituir mesmo quando o pai não está presente. O fundamento, o princípio do complexo de Édipo é a lei primordial: a proibição do incesto. O pai simbólico é o suporte da Lei. Para Lacan essa função simbólica do pai se declina em três tempos. No primeiro (frustração), a instância simbólica do pai se instaura de forma velada. Ou seja: cabe à mãe transmitir ou não a Lei. No segundo (castração), o pai se apresenta como aquele que faz a lei. Embora, aqui, a função paterna não se apresente velada, ela necessita da mediação da palavra da mãe para ser transmitida. Ou seja, a mãe pode tornar sem efeito a lei do pai. Isso não é o que mais vemos no cotidiano? A mãe faz um pacto com o filho ou com a filha, de forma que a palavra do pai como lei fique sem efeito. No terceiro (privação), o pai se revela como aquele que tem alguma coisa com valor de dom e, justamente por isto, passa a ser amado. Do amor nasce à identificação do menino com o pai e à construção de uma matriz de homem pela menina. Mas para isso é preciso que meninos e meninas renunciem ao seu primeiro grande amor, substituindo-o, respectivamente, pelas mulheres e pelos homens.

W. A.: Por falar em objeto, como a senhora definiria – a partir da psicanálise, claro – objeto de amor e objeto de desejo?
N.P.F: Não é fácil a sua pergunta. Vou tentar dizer da forma mais clara que eu conseguir. A visada do amor é o outro como ser. Ama-se alguém pela suposição de “riqueza interior”. A visada do desejo é o outro como objeto. A captura da imagem de um corpo pelo olhar arde, inflama, queima, ulcera, como dizem os poetas. Logo, amor e desejo são coisas radicalmente diferentes. Eu disse diferente. O que não significa que não possa acontecer com uma mesma pessoa. O saber popular sabe disso, quando diz que não se pode assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Sempre digo para os meus alunos para ilustrar essa diferença: não se ama um canalha, mas se tem tesão por um canalha. Aliás, isso é o grande equívoco dos poetas românticos. Ao se recusarem a aceitar essa diferença não amam, não desejam. Mas gozam sofrendo e demandando “morrer de amor”. Lembrei de um poema de Almeida Garrett, escritor romântico português, que diz no poema intitulado “Gozo e dor”:
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
— Não. Ai! Não; falta-me a vida,
Sucumbe-me a alma à ventura;
O excesso do gozo é dor.
W. A.: Nas conversas de bar, entre amigos, nos consultórios psicanalíticos, é recorrente a queixa de muitas mulheres e alguns homens (vamos colocar assim, ainda que a psicanálise entenda essas categorias de um outro modo que não o de gênero) de não terem um amor, de estarem sozinhas, que ninguém quer compromisso, que não tem homem no mercado (casaram ou são gays), etc, etc, etc... Como a senhora escuta isso?
N. P. F.: Isso é papo de neurótico, o qual está sempre insatisfeito, reclamando do que tem e sonhando com o que poderia ter. Até porque se tiver não é isso, é outra coisa. Não gosto de nomear ninguém de gay, mas tenho amigos que se autointitulam gays. Eles também reclamam da mesma coisa. Só há homens interessados no dinheiro e que não querem se envolver para depois da cama. O que os reclamantes esquecem é a implicação deles nesses desencontros. Eles se comportam como se fossem belas almas indiferentes...

W. A.: Obrigado pela entrevista. Bem-vinda à São Luis, essa antiga cidade “ ... que é uma ilha que se desfaz em salitre”, como bem definiu a eximia poeta e romancista Arlete Nogueira da Cruz, tal qual a visão do Angelus Novus, de Paul Klee, comentado por Benjamin.


¹William Amorin
Psicanalista, Mestre em Letras pela UFPE,
Diretor do Centro Infância e Adolescência Maud Mannoni
Autor do livro O amor em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres: uma abordagem psicanalítica.

²Nadiá Paulo Ferreira
Professora Titular de Literatura Portuguesa/ UERJ
Doutora em Letras/ UFRJ
Pós-Doutora em Letras/ UFRJ

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Créditos da imagem:
..., por N Maria

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