I Concurso Literário Benfazeja

O escritor de verdade



Conto, por André Al. Braga.


Quando ele entrou na sala de espera da agência de empregos Great People Of Talent, viu o enorme número de candidatos socialmente vestidos que aguardavam a hora de serem chamados. Acomodou-se do jeito que deu, num dos poucos lugares vagos. O responsável pelas entrevistas, especialista diplomado em Recursos Humanos, pós-graduado em Psicologia Empresarial, doutorado em Analise Comportamental e com MBA em Gestão de Pessoas, interfonou para secretária:

- Luzinete, Luzinete! Oh Luzinete! Manda logoentrá o próximo ai que tá chegando a hora dalmoço!

- Sim doutor.

A menina pegou um dos currículos que estava numa pilha de papéis sobre a mesa e chamou o nome:

- É... Paulo Capivara. – O rapaz gesticulou meio sem jeito com a mão - O senhor veio para a vaga de Auxiliar de Comunicação Interna, não é?

- Sim, isso mesmo.

- Ok, pode entrar que o Doutor Pancrácio está aguardando.

Levantou-se, tropicou na ondulação do gasto carpete, ajeitou-se, seguiu em direção a sala de entrevistas. Quando entrou viu um senhor com óculos de armação marrom, gordo, com o papo cobrindo parcialmente o nó da desbotada gravata, várias guimbas no cinzeiro e uma placa de alumínio sobre a mesa que pré anunciava: Dr. Aristeu Pancrácio Teutônico III. Cumprimentou-o com um aperto de mão, lhe disse bom dia, sentou-se na cadeira que estava há frente da mesa, ainda olhando os mais diversos diplomas, honrarias e fotos que estavam penduradas pela parede. Segurando a ficha, o doutor iniciou a entrevista:

- É... Senhor... Paulo Capivara. É você?

- Sim, sou eu mesmo.

- Que bom, que bom. Então... veio pra vaga de comunicador ajudante interno?

- Exato, é para ess...

- É... to vendaqui... no seu curríclo, você... formadem Letras?

- É, isso mesmo, me forme...

- Certo, certo... mas to vendaqui... sem experiência anterior... Você nunca teve emprego?

- Sou escritor, e faço alguns bicos como redator publici...

- Ah, é artista!

- Não, não, sou escritor e...

- Inscritor, artista, é a memá coisa. – anotou em vermelho na ficha: “inscritor/livros inscritos=

- Teressante, teressante. É... quantos livrus você tem inscrito?

- Um publicado e...

- Um! – riscou a anotação anterior “livros inscritos=” e escreveu: “um livro inscrito”.

- O senhor é artista... mas tem só um livru?

- É!? escrevei um, meu primei...

- Quantoscêêê vendeu?

- Não sei ao certo, acho que de 100 a 150 exempla...

- Não sabe? Como assim?

- A editora informa meio por cima, e não tenho como controlar porq...

- Tabom, tabom... Inscreveu, mas ninguém leu... então o pau cumeu! – Gargalhou estridente e tossindo retirou os óculos para enxugar as felizes lágrimas.

- É né... – Esfaqueado pelo riso, o candidato sorriu amarelo com o canto da boca, por obrigação, sua vontade real era grampear a língua do decrépito no risque-rabisque e retirar com o extrator de grampos, de forma medieval, os olhos do desgraçado.

- Ai, ai... tabom, tabom... – o entrevistador se recompôs – é... então, senhor Paulo Carneiro.

- Não é Carneiro, é Capivara.

- Capivara, carneiro, coelho, são tudo roedores mamíferos. – Disse com um ar de sábio. O candidato, num estado espiritual desconfortável, não esboçou reação alguma.

- Então, senhor... (olhou novamente na ficha) Paulo Capivara, inscreve... é artista... mas ninguém compra seus livru...?

- Bem, vendi sim, mas não sei o número exato de...

- A sim, sim... vendeu, vendeu... é verdade... sua mãe, sua avó... sua tia.... muita gente deve te comprado. – Paulo olhou para um ponto qualquer da sala, soltando o ar pesado contido nos pulmões.

- Então... a vaga é pra auxiliar comunicativo interno, mas... pelo quivejo... é... vai ser difícil... sem experiência anterior comprovada, é... a empresa talvez nunqué alguém nesse perfil.

- Bem, estou à disposição, e essa vaga me...

- É, mas é talvez né... e talvez nué um sim, mas também nué um não... quem sabe... vou faze assim: vou guarda seu curríclo aqui, e... qualquer novidade aviso, ok.

Sem paciência alguma, mas mantendo a pose de candidato interessado, cumprimentou o Dr. Pancrácio, agradeceu a oportunidade como se fosse única e seguiu para mais uma agência de empregos.

O doutor, já faminto, guardou a ficha do Paulo na letra “q” da gaveta de pastas suspensas – artista... rãn! - logo após interfonou para a secretária:

- Luzinete, Luzinete! Oh, Luzinete! Manda mais um ai que ainda dá tempo.

- Sim doutor.

A menina apanhou outro currículo na pilha, chamou:

- É... Nelso Ramires – O rapaz levantou-se.

- O senhor veio para a vaga de Auxiliar de Comunicação Interna, não é?

- Isso, estou aqui para essa vaga.

- Ok, pode entrar que o doutor Pancrácio está esperando.

O candidato entrou na sala, cumprimentou o doutor e sentou-se, dando início à entrevista:

- É... Nelson Ramires... é você?

- Sim, mas não é Nelson, é NelSO.

- Ok, ok... Nelso, Nelson… é parecido né. – deu um sorrisinho – então... NelSO, a vaga é pra ajudante de comunicação auxiliar interno e... você temteresse né?

- Claro! Estou aqui para...

- Tabom, tabom... preciso de alguém que sabe inscreve BEM... o senhor tem experiência anterior?

- Tenho sim, está na fich...

- É verdade, é verdade... – leu na ficha: Experiências anteriores: Escriturário, 3 anos - Escrivão de Polícia, 8 meses.

- Ah, taqui, taqui... Enscriturário! Legal! Passava o dia inscrevendo, né! Bom, bom... Enscrivão também! Humm... Purque saiu da polícia?

- Muito violento, não agüentava mais, escrevia muitas barbarida...

- Tabom, tabom... A vaga é sua! Votincaminha pra empresa. Vi quitem muita bagagem, bom isso! Vai ali, vai ali... fala com a Luzinete... ela vai te fala o procedimento.

Feliz, saiu o agraciado com o emprego novo. Os ponteiros já cravados no doze indicavam o merecido deleite alimentar e descanso. O doutor Pancrácio guardou a ficha do Nelso na letra “z” do arquivo, recostou-se na enorme e almofadada poltrona, acendeu um cigarro e interfonou:

- Luzinete, Luzinete! Oh, Luzinete! Pede pra mim um bife a cubana e uma caracú queu to faminto.

- Sim doutor, vou providenciar. – Desligou o interfone.

Só na sala o doutor:

- Ah... até quenfim me apareceu um inscritor de verdade! – De olhos fechados, tragou o cigarro e soltou lentamente a fumaça, sentido a gratificante sensação de dever cumprido.

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Créditos da imagem:
My Suit, por O'hAodha

Um comentário:

  1. Muito bacana esse texto. Descreve, com considerável realismo, o meio mercantilista ao qual a literatura contemporânea está subordinada...

    Meus Parabéns.

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