A personagem feminina em Mayombe, de Pepetela: Os limites da transformação
Rosangela Sarteschi¹
Um aspecto importante na construção desse romance de Pepetela é a abordagem da igura feminina: Ondina e Leli.
Em Mayombe, a mulher transita pelo mundo da política, da guerra e do golpe, enfim, o mundo masculino por excelência. Ondina, por conseguinte, tem plena consciência de que também deve fazer parte do embrionário processo revolucionário histórico, social e estético por que passa Angola. Essa adesão, porém, mostra-se mais complexa do que inicialmente poderia sugerir-se.
Para essa mulher, aderir a um movimento revolucionário significa uma transformação que não se dará apenas na esfera superficial da sua existência como indivíduo: implicará em questões mais profundas e arraigadas no conjunto da sociedade; significa repensar e contestar o papel social reservado à mulher até então. Por tocar temas tabus nunca antes sequer discutidos pela sociedade, essa mudança manifestar-se-á de maneira mais radical e subversiva e, por isso, não encontrará respaldo no mundo masculino de seus iguais.
Em Angola, observa-se que, por força do colonialismo, o ultraconservadorismo, marcado pela extrema religiosidade, pelo atraso econômico e cultural de Portugal, reverberou e amalgamou-se às tradições locais, em que o papel da mulher era ainda mais secundário e ignorado no contexto da organização social e política.
Assim, uma sociedade patriarcal e tradicional como a angolana, ainda que em uma fase revolucionária e, por definição, mais aberta às mudanças, apresentará enorme resistência em aceitar uma mulher transformada: sexualizada e em busca de sua independência e liberdade.
Dessa maneira, além da luta política, Ondina tem, ainda, de lutar contra os preconceitos e a repressão moral, características que ainda persistem na sociedade patriarcal, tradicionalista e conservadora como a de que faz parte. Se o homem revolucionário almeja uma nova sociedade e luta por ela, diante desse novo dilema que se lhe apresenta de forma também dialética — revolução versus tradição —, ainda não tem respostas e atitudes à altura do que se espera. Não só as camadas mais retrógradas dessas sociedades como também os setores mais avançados repelirão com veemência tal transformação e serão implacáveis com essa nova mulher que germina.
A abordagem dessa personagem é feita de forma ambígua, em consonância, acreditamos, com a desestruturação do romance aqui tratado.
Observamos, por um lado, que, ao longo da narrativa, a mulher sempre é referida, pelas vozes das personagens, de forma objetificada, que não a livram do preconceito moral, principalmente na esfera da sexualidade.
Nesse romance, a figura feminina só aparece no momento em que se toca na esfera das discussões amorosas e nunca como agente do processo revolucionário. É enigmático e revelador o fato de todos os guerrilheiros terem voz e vez na construção da história; condição que é negada a Ondina.
Desejava Ondina? Sim, há muito tempo. As suas coxas eram uma tentação. Os seus olhos que prometiam, que se não baixavam. Ao vê-la na estrada, não tive nenhum pensamento. Foi no bar que o desejo veio. Começava a escurecer. Por que não? Ela olhava-me a desfiar. E depois, no jipe, as suas coxas a abrirem-se... olhei-a e ela fixava-me. Viu que eu mirava as coxas e aproveitou um solavanco do carro para as afastar mais, imperceptivelmente mas o suficiente. Parei o jipe, quem não o faria? Um homem não é de pau! Fui eu que a beijei ou foi ela que fez o primeiro movimento? A puta aceitou logo ir para o capim. Que fogo, meu Deus! Que vulcão! [...] porque é uma vaca que gosta de homem [....].i
Sem Medo revela, como podemos perceber, o quanto o preconceito ainda impregna seu modo de ver o mundo e sua incapacidade de colocar a mulher nesse novo estatuto. O comportamento livre de Ondina ainda o desconcerta e faz com que venha à tona todo o conservadorismo de que não consegue livrar-se.
Assim, as várias conversas acerca da condição feminina que o Comandante trava com o Comissário são exemplos de como a teoria não se realiza na experiência individual e concreta.
Por outro lado, não devemos deixar de ressaltar que o papel feminino desequilibra as relações masculinas colocada no romance. Ainda que objetificada, ela interfere, com atitudes corajosas, de maneira decisiva na trajetória da personagem heróica encarnada por Sem Medo: Ondina acaba por ser a responsável pelo estremecimento dos fortes laços afetivos que unem o Comissário e Sem Medo com desdobramentos importantes para o desfecho da narrativa.
Assim sendo, parece-nos que Ondina sofre duplamente. Em primeiro lugar sofre porque, assim como o homem, sente na própria carne o peso da injustiça e opressão colonial e social — condição que não é, naturalmente, exclusiva de um gênero. Adere, portanto, à luta tão incondicionalmente quanto o homem. Essa conscientização política, social e histórica resultará em uma atitude liberadora e libertária, que, passa, inevitavelmente, pela liberalização sexual e pela mudança radical do comportamento feminino, condição assumida claramente e que se chocará com a rigidez moral de toda a sociedade a que pertence.
Nessa instância, vale lembrar que às mulheres sempre foi reservada condição secundária no âmbito da sexualidade e do prazer, territórios exclusivos do homem e que são espaços colonizados pelo desejo do masculino hegemônico. O corpo feminino é, via de regra, associado à ausência, ao vazio e à incompletude.
O corpo é visto, dessa maneira, como:
É nesse contexto que a figura de Ondina surge como resposta ao que está solidificado: insubmissa, contribui para o desenho de um novo perfil de mulher, estabelecendo, assim, uma profunda ruptura do status quo.
Ondina mostra uma conduta marcada pela liberalidade exemplar do novo estatuto ao explicitar o desejo sexual com atitudes que se contrapõem à docilidade e passividade esperadas.
Podemos constatar que, por outro lado, Ondina sofre, também, quando se depara com a contradição que se instala em meio a seus pares, companheiros de ideologia, parceiros intelectuais. Certa de que as mudanças serão bem-vindas e de que as novas relações serão baseadas na igualdade de condições, depara-se com o poder do peso do conservadorismo de que eles não conseguem libertar-se.
A reação do Comissário, após saber da traição de Ondina, é bastante reveladora da rigidez que acaba por equiparar o homem revolucionário ao mais anacrônico dos homens da época, cristalizando seus próprios preconceitos e conservadorismo:
É nesse sentido que as relações de gênero oscilarão entre a coerência que a atitude verdadeiramente libertária significa e o enraizamento da tradição na consciência masculina, estabelecendo um movimento pendular essencialmente dialético, provocando dores e sofrimentos.
Em Mayombe, Sem Medo é, aparentemente, o homem que está mais próximo de entender a transformação da mulher, porém ainda enxerga o processo de forma invertida.
Admira a mulher, que, dentro dos padrões da sociedade, destaque-se por sua moral individual. Não parece desejar, portanto, uma transformação coletiva.
Seu machismo renitente aparece, como vemos, também em relação a Leli, ao admitir que a reconquista da antiga amada baseava-se na desforra e no orgulho. Assim, como todos os homens conservadores, Sem Medo tem necessidade de exercer seu poder, reafirmando o controle que a condição masculina lhe confere, numa passagem que é, efetivamente, de teorização acerca da questão de gênero que aí se articula com a da pratica socialista:
Cria-se, como apontamos, um hiato entre o discurso e a atitude propriamente dita: a postura revolucionária, nesse âmbito, só se realiza no plano teórico.
É bastante irônico o diálogo travado entre Ondina e o Comissário a respeito de André, quando se percebe a aguda divisão que ainda se faz entre as “categorias” possíveis de mulher: aquelas consideradas mulheres “de bem”, ligadas à família e à noção de honra e as consideradas mundanas, ligadas à noção da desonra.
Companheira da luta não escapa, ainda assim, à pecha moralista que ainda domina o ideário masculino. Ondina deve sofrer variadas tormentas e “castigos” que lhe são impostoscomo pena por ter a coragem de ousar. Essa luta duplicada é, no limite, a luta pela construção da própria identidade. É o preço a pagar.
Ondina é, assim, afastada de suas atividades pedagógicas com as crianças após a descoberta e os desdobramentos de seu envolvimento com André; o castigo, porém, é aceito com amarga ironia ao constatar que antigas posturas persistem, impondo-lhe o isolamento social e moral.
A personagem luta, por conseguinte, para ser dona do próprio corpo e do próprio destino, como deveria lhe conferir a nova ordem social em gestação; mas, ao assumi-lo, percebe que essa nova ordem não implicará, necessariamente, na sua aceitação e na sua inclusão como sujeitos da história.
Ondina não hesita, como vemos, em assumir abertamente a postura subversiva da independência, sobretudo sexual, para estilhaçar o arcabouço da tradição patriarcal da sociedade da época ainda que essa postura terá, como vimos, um preço bastante alto.
A atitude abertamente sexualizada de Ondina radicaliza-se na consciência de que a palavra é reveladora de realidades e desmistifica a imagem idealizada da mulher também por meio da linguagem que afronta o homem.
Nesse sentido, Ondina atrai e afasta o “novo” homem como uma Circe moderna, pois representa a dualidade do mito grego: ao mesmo tempo em que controla a criação, controla, igualmente, a destruição. Essa é, sobretudo, a mais perfeita tradução para o papel desempenhado por Leli na vida de Sem Medo, por exemplo. No limite, essa dualidade feminina provoca um impasse, pois exporá as fraquezas, medos e incertezas masculinas como feridas de guerra.
A personagem feminina é exemplo, no plano individual, da desconstrução/reconstrução das novas nações em outro domínio: no da recolocação feminina nessa sociedade que vai surgir.
No âmbito da narrativa, essa mulher, ainda, questiona e provoca, desfazendo o constructo textual idealizado da feminilidade. Ondina combina um tipo provocante de independência quase cínica com sedução, criando uma imagem autoconfiante e despudoradamente sexual e agressiva para os padrões do mundo aqui focalizado.
Ela é hábil em articular e ostentar o desejo de ser desejada e derruba o estigma do antigo paradigma da mulher-mãe que só se constrói ao perceber-se especularmente através da imagem masculina.
No entanto, em determinado momento, parecerá que tudo terá sido em vão: por isso, mas apenas aparentemente, aceita ser punida por suas atitudes, como forma de germinar um futuro diferente e continuar, no final, a se concentrar na essência como crucial para a identidade.
Finalmente, gostaríamos de destacar, ainda, que Ondina encerra em si mesma uma certa ambigüidade, responsável, em certa medida, pelo desdobramento trágico da trajetória de Sem Medo.
No romance de Pepetela, Ondina vê Sem Medo fugir temeroso do que ela poderia vir a representar em sua vida, negando-se a ter uma relação em que ela teria a mesma liberdade masculina. A iniciativa é punida com o afastamento masculino, incapaz de concretizar o discurso.
em Medo tem consciência de que Ondina “domesticava os homens e ele sentia-se fraco contra ela”. Ao lançar-se na ação final no Pau Caído, fá-lo para fugir da mulher que tanto o atormenta:
Em certa medida, atirar-se à morte acaba por ser a única possibilidade de atirar-se aos braços de Ondina.
Referências bibliográficas:
FUNCK, S. B. “Descolonizando a sexualidade feminina: as marionetes e as vampiras de Ângela Carter”. http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/13susanabh.htm, consultada em 07.06.04.
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ed. Ática, 1982.
**
i PEPETELA,1982, p. 186.
ii FUNCK, 2004.
iii PEPETELA, op. cit., pp. 179-180.
iv Idem, ibidem, p. 151.
v Idem, ibidem, p. 158.
vi Idem, ibidem, p. 164.
vii Idem, ibidem, p. 92.
viii Idem, ibidem, p. 93.
ix Idem, ibidem, pp. 210-211.
x Idem, ibidem, pp. 97-98.
xi Idem, ibidem, pp. 252-253.
xii Idem, ibidem, p. 261.
Em Mayombe, a mulher transita pelo mundo da política, da guerra e do golpe, enfim, o mundo masculino por excelência. Ondina, por conseguinte, tem plena consciência de que também deve fazer parte do embrionário processo revolucionário histórico, social e estético por que passa Angola. Essa adesão, porém, mostra-se mais complexa do que inicialmente poderia sugerir-se.
Para essa mulher, aderir a um movimento revolucionário significa uma transformação que não se dará apenas na esfera superficial da sua existência como indivíduo: implicará em questões mais profundas e arraigadas no conjunto da sociedade; significa repensar e contestar o papel social reservado à mulher até então. Por tocar temas tabus nunca antes sequer discutidos pela sociedade, essa mudança manifestar-se-á de maneira mais radical e subversiva e, por isso, não encontrará respaldo no mundo masculino de seus iguais.
Em Angola, observa-se que, por força do colonialismo, o ultraconservadorismo, marcado pela extrema religiosidade, pelo atraso econômico e cultural de Portugal, reverberou e amalgamou-se às tradições locais, em que o papel da mulher era ainda mais secundário e ignorado no contexto da organização social e política.
Assim, uma sociedade patriarcal e tradicional como a angolana, ainda que em uma fase revolucionária e, por definição, mais aberta às mudanças, apresentará enorme resistência em aceitar uma mulher transformada: sexualizada e em busca de sua independência e liberdade.
Dessa maneira, além da luta política, Ondina tem, ainda, de lutar contra os preconceitos e a repressão moral, características que ainda persistem na sociedade patriarcal, tradicionalista e conservadora como a de que faz parte. Se o homem revolucionário almeja uma nova sociedade e luta por ela, diante desse novo dilema que se lhe apresenta de forma também dialética — revolução versus tradição —, ainda não tem respostas e atitudes à altura do que se espera. Não só as camadas mais retrógradas dessas sociedades como também os setores mais avançados repelirão com veemência tal transformação e serão implacáveis com essa nova mulher que germina.
A abordagem dessa personagem é feita de forma ambígua, em consonância, acreditamos, com a desestruturação do romance aqui tratado.
Observamos, por um lado, que, ao longo da narrativa, a mulher sempre é referida, pelas vozes das personagens, de forma objetificada, que não a livram do preconceito moral, principalmente na esfera da sexualidade.
Nesse romance, a figura feminina só aparece no momento em que se toca na esfera das discussões amorosas e nunca como agente do processo revolucionário. É enigmático e revelador o fato de todos os guerrilheiros terem voz e vez na construção da história; condição que é negada a Ondina.
Desejava Ondina? Sim, há muito tempo. As suas coxas eram uma tentação. Os seus olhos que prometiam, que se não baixavam. Ao vê-la na estrada, não tive nenhum pensamento. Foi no bar que o desejo veio. Começava a escurecer. Por que não? Ela olhava-me a desfiar. E depois, no jipe, as suas coxas a abrirem-se... olhei-a e ela fixava-me. Viu que eu mirava as coxas e aproveitou um solavanco do carro para as afastar mais, imperceptivelmente mas o suficiente. Parei o jipe, quem não o faria? Um homem não é de pau! Fui eu que a beijei ou foi ela que fez o primeiro movimento? A puta aceitou logo ir para o capim. Que fogo, meu Deus! Que vulcão! [...] porque é uma vaca que gosta de homem [....].i
Sem Medo revela, como podemos perceber, o quanto o preconceito ainda impregna seu modo de ver o mundo e sua incapacidade de colocar a mulher nesse novo estatuto. O comportamento livre de Ondina ainda o desconcerta e faz com que venha à tona todo o conservadorismo de que não consegue livrar-se.
Assim, as várias conversas acerca da condição feminina que o Comandante trava com o Comissário são exemplos de como a teoria não se realiza na experiência individual e concreta.
Por outro lado, não devemos deixar de ressaltar que o papel feminino desequilibra as relações masculinas colocada no romance. Ainda que objetificada, ela interfere, com atitudes corajosas, de maneira decisiva na trajetória da personagem heróica encarnada por Sem Medo: Ondina acaba por ser a responsável pelo estremecimento dos fortes laços afetivos que unem o Comissário e Sem Medo com desdobramentos importantes para o desfecho da narrativa.
Assim sendo, parece-nos que Ondina sofre duplamente. Em primeiro lugar sofre porque, assim como o homem, sente na própria carne o peso da injustiça e opressão colonial e social — condição que não é, naturalmente, exclusiva de um gênero. Adere, portanto, à luta tão incondicionalmente quanto o homem. Essa conscientização política, social e histórica resultará em uma atitude liberadora e libertária, que, passa, inevitavelmente, pela liberalização sexual e pela mudança radical do comportamento feminino, condição assumida claramente e que se chocará com a rigidez moral de toda a sociedade a que pertence.
Nessa instância, vale lembrar que às mulheres sempre foi reservada condição secundária no âmbito da sexualidade e do prazer, territórios exclusivos do homem e que são espaços colonizados pelo desejo do masculino hegemônico. O corpo feminino é, via de regra, associado à ausência, ao vazio e à incompletude.
O corpo é visto, dessa maneira, como:
"agente da cultura e como metáfora cultural: ‘o disciplinamento e a normatização do corpo feminino é uma estratégia espantosamente durável e flexível de controle social’. A representação cultural do desejo é, portanto, uma forma de poder político que contribui sobremaneira para a manutenção das hierarquias de gênero. O discurso sobre o sexo elaborado nas sociedades ocidentais a partir do século XVIII para codificar os lugares complementares de homens e mulheres acabou por reprimir o corpo sexualizado da mulher.ii
É nesse contexto que a figura de Ondina surge como resposta ao que está solidificado: insubmissa, contribui para o desenho de um novo perfil de mulher, estabelecendo, assim, uma profunda ruptura do status quo.
Bem. Há uma semana talvez, encontrei o André no caminho para Dolisie. Ele parou o jipe, deu-me boleia. Aceitei. Fomos a um bar, bebemos uma cerveja. Voltamos para a escola. Escurecia. Ele parou o jipe a meio do caminho.
—E depois?
—Depois fomos para o capim.
—Só assim?
—Que mais queres saber?
—Não irias assim para o capim, conheço-te.
—Conheces-me, João?
[...]
—Mas antes, Ondina? Nunca tinha havido nada com o André?
—Não. Ele agradava-me como homem, é tudo.
—E depois disso, passaste a gramá-lo?
—Não. Acabou aí.iii
Ondina mostra uma conduta marcada pela liberalidade exemplar do novo estatuto ao explicitar o desejo sexual com atitudes que se contrapõem à docilidade e passividade esperadas.
Podemos constatar que, por outro lado, Ondina sofre, também, quando se depara com a contradição que se instala em meio a seus pares, companheiros de ideologia, parceiros intelectuais. Certa de que as mudanças serão bem-vindas e de que as novas relações serão baseadas na igualdade de condições, depara-se com o poder do peso do conservadorismo de que eles não conseguem libertar-se.
A reação do Comissário, após saber da traição de Ondina, é bastante reveladora da rigidez que acaba por equiparar o homem revolucionário ao mais anacrônico dos homens da época, cristalizando seus próprios preconceitos e conservadorismo:
—Achas que alguém me pedirá a Guia de Marcha? Todos fugirão de mim, como se eu tivesse sarna, que é preciso evitar, pois ninguém sabe como falar a um sarnoso... [...] Corno! Eu sou um corno, compreendes? E vens tu falar-me de pequenos aspectos formais...iv
É nesse sentido que as relações de gênero oscilarão entre a coerência que a atitude verdadeiramente libertária significa e o enraizamento da tradição na consciência masculina, estabelecendo um movimento pendular essencialmente dialético, provocando dores e sofrimentos.
Em Mayombe, Sem Medo é, aparentemente, o homem que está mais próximo de entender a transformação da mulher, porém ainda enxerga o processo de forma invertida.
Admira a mulher, que, dentro dos padrões da sociedade, destaque-se por sua moral individual. Não parece desejar, portanto, uma transformação coletiva.
Deixei de a gramar ou, pelo menos, de gramar da maneira absoluta como até aí. Eu precisava de me libertar dela, da influência que Leli tinha sobre mim. Para isso tinha de a reconquistar, de me sentir superior a ela, de ser capaz de agir apenas racionalmente, apenas motivado pela razão, sem sentimentos. Depois de a reconquistar, senti-me liberto.
[...]
—Se quiseres, meu amor próprio estava vingado.v
Seu machismo renitente aparece, como vemos, também em relação a Leli, ao admitir que a reconquista da antiga amada baseava-se na desforra e no orgulho. Assim, como todos os homens conservadores, Sem Medo tem necessidade de exercer seu poder, reafirmando o controle que a condição masculina lhe confere, numa passagem que é, efetivamente, de teorização acerca da questão de gênero que aí se articula com a da pratica socialista:
A submissão tinha moldado completamente o seu espírito. Nunca mais quis nada com ela, como é evidente.
—Isso vem do papel social da mulher — disse o Comissário. —Numa sociedade em que o homem controla os meios de produção, onde é o marido que trabalha e traz o dinheiro para casa, é natural que a mulher se submeta à supremacia masculina. A sua defesa social é a submissão familiar.
—No geral é isso. Mas há mulheres que se não submetem, que encontram no amor o contrapeso a essa inferioridade social. E mesmo sem trabalhar, estando dependentes economicamente, são capazes de jogar taco-a-taco com o homem. Seria aliás essa a sua melhor defesa.
—São exceções. Repara que há séculos de dominação. Isso marca.
—Tens razão. Mas essa mulher que conheci, e tantas outras afinal, era dum país
socialista.
—Não quer dizer nada, Comandante. Primeiro esse problema não está ainda resolvido nos países socialistas. Em segundo lugar, deve ser a última superestrutura a ser modificada. A mais difícil de modificar, que choca contra toda a moral e preconceitos individuais que os modos de produção anteriores provocaram.vi
Cria-se, como apontamos, um hiato entre o discurso e a atitude propriamente dita: a postura revolucionária, nesse âmbito, só se realiza no plano teórico.
É bastante irônico o diálogo travado entre Ondina e o Comissário a respeito de André, quando se percebe a aguda divisão que ainda se faz entre as “categorias” possíveis de mulher: aquelas consideradas mulheres “de bem”, ligadas à família e à noção de honra e as consideradas mundanas, ligadas à noção da desonra.
—Ele é um nguendeiro, tem um monte de mulheres por aí, ao que dizem. Pode ser que se interesse. Aqui não há muitas como tu, com estudos, bonita...
—Deixa-te disso! As pessoas falam demais. Vi como ele trata a mulher, não é homem que tenha outras. São calúnias.
—Ora, trata-a como mãe dos seus filhos.... vii
Companheira da luta não escapa, ainda assim, à pecha moralista que ainda domina o ideário masculino. Ondina deve sofrer variadas tormentas e “castigos” que lhe são impostoscomo pena por ter a coragem de ousar. Essa luta duplicada é, no limite, a luta pela construção da própria identidade. É o preço a pagar.
—Não seria uma ousadia pedir-lhe um cigarro? Agora já posso fumar à vontade. Evitava fazê-lo para não chocar as pessoas. Tiraram-me os miúdos, não mereço confiança para os educar. Posso pois fumar à vontade, já nada tem importância. viii
Ondina é, assim, afastada de suas atividades pedagógicas com as crianças após a descoberta e os desdobramentos de seu envolvimento com André; o castigo, porém, é aceito com amarga ironia ao constatar que antigas posturas persistem, impondo-lhe o isolamento social e moral.
A personagem luta, por conseguinte, para ser dona do próprio corpo e do próprio destino, como deveria lhe conferir a nova ordem social em gestação; mas, ao assumi-lo, percebe que essa nova ordem não implicará, necessariamente, na sua aceitação e na sua inclusão como sujeitos da história.
Ondina não hesita, como vemos, em assumir abertamente a postura subversiva da independência, sobretudo sexual, para estilhaçar o arcabouço da tradição patriarcal da sociedade da época ainda que essa postura terá, como vimos, um preço bastante alto.
A atitude abertamente sexualizada de Ondina radicaliza-se na consciência de que a palavra é reveladora de realidades e desmistifica a imagem idealizada da mulher também por meio da linguagem que afronta o homem.
Nesse sentido, Ondina atrai e afasta o “novo” homem como uma Circe moderna, pois representa a dualidade do mito grego: ao mesmo tempo em que controla a criação, controla, igualmente, a destruição. Essa é, sobretudo, a mais perfeita tradução para o papel desempenhado por Leli na vida de Sem Medo, por exemplo. No limite, essa dualidade feminina provoca um impasse, pois exporá as fraquezas, medos e incertezas masculinas como feridas de guerra.
[Sem Medo] Ele foi a pessoa mais livre que conheci. Sempre o invejei. Depois conformei-me. Um homem deve conhecer exatamente os seus limites e aceitálos. De outro modo é um parvo que se ilude sobre si mesmo. Ou um desonesto.
[...]
Eu detestaria, não poderia mesmo suportar, que mulher minha dormisse com outro. Sei o que é isso, já sofri, não poderia repeti-lo.ix
A personagem feminina é exemplo, no plano individual, da desconstrução/reconstrução das novas nações em outro domínio: no da recolocação feminina nessa sociedade que vai surgir.
No âmbito da narrativa, essa mulher, ainda, questiona e provoca, desfazendo o constructo textual idealizado da feminilidade. Ondina combina um tipo provocante de independência quase cínica com sedução, criando uma imagem autoconfiante e despudoradamente sexual e agressiva para os padrões do mundo aqui focalizado.
Ela é hábil em articular e ostentar o desejo de ser desejada e derruba o estigma do antigo paradigma da mulher-mãe que só se constrói ao perceber-se especularmente através da imagem masculina.
No entanto, em determinado momento, parecerá que tudo terá sido em vão: por isso, mas apenas aparentemente, aceita ser punida por suas atitudes, como forma de germinar um futuro diferente e continuar, no final, a se concentrar na essência como crucial para a identidade.
Há mulheres que podem ser conhecidas do exterior, as atitudes, correspondendo à maneira de ser. Outras só podem ser estudadas na intimidade, no modo como se entregam, quais os centros de prazer, quais as defesas que se forjam. Ondina era uma destas últimas. Sabia pelo Comissário que já conhecera outros homens, aos quinze anos fora deflorada, desde então tivera regularmente relações. Aos vinte e dois anos era uma mulher sentimentalmente muito mais velha que o
noivo...x
Finalmente, gostaríamos de destacar, ainda, que Ondina encerra em si mesma uma certa ambigüidade, responsável, em certa medida, pelo desdobramento trágico da trajetória de Sem Medo.
No romance de Pepetela, Ondina vê Sem Medo fugir temeroso do que ela poderia vir a representar em sua vida, negando-se a ter uma relação em que ela teria a mesma liberdade masculina. A iniciativa é punida com o afastamento masculino, incapaz de concretizar o discurso.
Fizeram amor. Desesperadamente. Sem Medo sabia que era a última vez: depois da missão, só voltaria a Dolisie quando recebesse a ordem da partida para o Leste. Entretanto, Ondina já teria partido.xi
em Medo tem consciência de que Ondina “domesticava os homens e ele sentia-se fraco contra ela”. Ao lançar-se na ação final no Pau Caído, fá-lo para fugir da mulher que tanto o atormenta:
Pensava em Ondina: Leli ficara nas trevas, só Ondina aparecia. Ondina e a ternura escondida por uma capa de frieza: era um personagem, mas ele arrancara-lhe a capa, o personagem era destruído e Ondina vinha, nua, num Oceano de ternura nos olhos, um vulcão nas coxas.xii
Em certa medida, atirar-se à morte acaba por ser a única possibilidade de atirar-se aos braços de Ondina.
Referências bibliográficas:
FUNCK, S. B. “Descolonizando a sexualidade feminina: as marionetes e as vampiras de Ângela Carter”. http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/13susanabh.htm, consultada em 07.06.04.
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ed. Ática, 1982.
**
i PEPETELA,1982, p. 186.
ii FUNCK, 2004.
iii PEPETELA, op. cit., pp. 179-180.
iv Idem, ibidem, p. 151.
v Idem, ibidem, p. 158.
vi Idem, ibidem, p. 164.
vii Idem, ibidem, p. 92.
viii Idem, ibidem, p. 93.
ix Idem, ibidem, pp. 210-211.
x Idem, ibidem, pp. 97-98.
xi Idem, ibidem, pp. 252-253.
xii Idem, ibidem, p. 261.
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