O Valor do Vestido
Contos, por Ana Cristina Melo.
Esse texto é foi premiado no Prêmio SESC Machado de Assis - edição 2009 e faz parte da Antologia gerada pelo concurso. É também parte integrante do livro de contos, ainda inédito, Segunda Pele.
Edilaine não gostava do seu nome, nem da vida como vendedora de balas nos semáforos da Praça Tiradentes. Para os colegas de profissão, tão pequenos quanto os seus onze anos, ela se chamava Renata. Um cognome inventado, maquiando o desejo de escolher uma vida diferente, sem saber ao certo o que teria nessa nova oportunidade. Em casa, estranhava a mãe chamá-la pelo verdadeiro nome, que um dia esperava ser o que escolheu. Isto quando ela e os cinco irmãos viessem a se tornar um número a mais nas estatísticas dos cartórios.
Foi no final do seu expediente, quando vagava pela praça à procura de latas para levar ao padrasto, que encontrou a nota marrom, tão nova que estalava, embrulhada num pedaço de papel com algumas palavras escritas, hieróglifos diante de sua ignorância nas letras.
O pequeno embrulho estava caído num canteiro, quase ao lado da primeira latinha que pensara em recolher. Ao esbarrar nele, descobriu a ponta da nota. Sabia reconhecer dinheiro, e seus minguados conhecimentos em números lhe revelaram o valor: cinquenta reais.
Matemática teve que aprender nos trancos da necessidade. Não a disciplina completa, com o refinamento de expressões, fórmulas e problemas, mas a forma bruta dos números, no esforço para uni-los em contas de adição e subtração, chegando aos trocos do dia-a-dia.
Pegou apenas a nota, e com pena de amassá-la, dobrou na marca já existente e guardou num bolso falso do vestido.
Os pensamentos se encheram de possibilidades. A única descartada foi a de levá-lo para a mãe, que provavelmente entregaria ao padrasto, fim certo na mesa de um bar, assim como fazia com o dinheiro das latinhas, que nem se dava ao trabalho de recolher.
A mãe era fraca por homem, desde os seus quinze anos, quando ficou grávida de Edilaine. Expulsa de casa pelos pais, e abandonada no sexto mês, sobraram-lhe a falta de juízo e a astúcia para trazer para casa sempre um homem diferente, que prometesse pagar suas contas.
Fome eles não as deixavam passar, mas em compensação largavam a mãe embarrigada. Cinco vezes, cinco pequenos irmãos sem registro, sem pai ou perspectiva. O último homem que ela arrumara não a engravidara, mas também não pagava as contas, além de gastar com a cachaça o pouco que Renata ganhava vendendo balas. E desse a mãe se dizia apaixonada.
Abraçada à caixa de sapatos, preenchida pela metade com as jujubas que vendia, Renata foi andando em direção ao Largo de São Francisco, sensação de posse nos braços.
Muito cedo desaprendera o significado de um desejo. Suas necessidades eram muito imediatas. Contentava-se em viver assim, ainda com a inocência infantil, uma inocência que não lhe fazia querer questionar as regras, de casa e do mundo. Brinquedos, apenas uma boneca de cabelo duro, sem roupa, entregue num desses caminhões de caridade natalina, e um jogo de quebra-cabeça faltando cinco peças, que ela encontrara no lixo.
Por mais que imaginasse algo para fazer com o dinheiro, as ideias não se juntavam, não formavam uma vontade palpável; um desejo para ser sonhado, idealizado, e, naquele momento, possível de se alcançar. Quanto mais pensava, mais seu estômago roncava.
Foi vencida pela fome, assim que chegou à avenida Rio Branco, na esquina da Ouvidor. Monumental ao seu lado esquerdo, notou a lanchonete de fast food exibindo imagens de sanduíches apetitosos. Seus olhos brilharam.
Caminhou, passos acelerados, e entrou. Não percebeu os olhares que recriminavam sua presença. Parada, posição central ao salão, percorria as variadas ofertas expostas em todos os cantos.
— Ei, menina! Não pode vender balas aqui.
Acostumada, não se intimidou com o homem largo que se impunha num terno escuro, um gigante perto do seu um metro e quarenta.
— Não vim vender, não, moço. Tenho dinheiro. Queria era comprar um sanduíche.
O segurança hesitou. Um titubear entre a piedade e o cumprimento do dever. Às cinco da tarde, o lugar tinha poucas pessoas. Acompanhou-a até o último caixa, sem destaque entre os clientes.
A atendente, até então distraída, surpreendeu-se com o inusitado de sua presença. Dispensou o ensaiado boa-tarde.
— O que você quer? — cuspiu na tentativa de se livrar do problema.
A indecisão da menina fez com que o segurança se antecipasse.
— Ela quer comprar um sanduíche.
— Qual?
— Quanto custa aquela boneca ali?
— A cinderela na carruagem? Não vende, é brinde. Você quer a promoção que vem com ela?
— Vem com comida?
— Hamburguer ou cheeseburguer, com batata e refrigerante.
— Eu quero.
A menina buscou a nota em seu esconderijo. Entregou à moça sem perguntar quanto era. A atendente e o segurança se entreolharam, estranhando a nota de valor tão alto.
— Onde você arranjou esse dinheiro, menina? Você roubou, garota?
Renata quase disse que havia achado, mas desistiu quando percebeu que poderiam lhe tomar. Resolveu dizer que recebera de um homem de terno. Características verossímeis inventadas para soar mais convincente.
O segurança, antes desconfiado, pareceu sentir-se envergonhado.
Renata guardou os quarenta e um reais de troco, no bolso do vestido, com o mesmo cuidado de antes. Pegou o saquinho de papel com o sanduíche e a batata, acomodando-os sobre sua caixa de sapatos. Segurou com a outra mão o copo de refrigerante e a embalagem da boneca, vestida de princesa dentro de uma carruagem.
Mal conseguia equilibrar tudo. O segurança se ofereceu para levar o refrigerante. Ela o acompanhou até o subsolo, onde havia algumas mesas. Indicou um lugar escondido, atrás das escadas, para ela se sentar. “Coma rápido, sem aprontar nada”, as palavras rudes se perderam na atenção que a menina dedicava ao brinquedo.
Começou pelo sanduíche. A primeira mordida trazendo a lembrança da fome. Esqueceu um momento a boneca e devorou o cheeseburguer e as batatas. Enquanto comia, sentiu um aperto no peito que a remeteu aos irmãos. O dinheiro que sobrara não daria para mais cinco lanches. Buscaria outro agrado.
Não deixou sobrar nem migalhas em sua bandeja. Saltitante, pegou a caixa e a boneca. Quase à saída, passou pelo segurança, sem o notar. Não tinha o hábito de agradecer e nem poderia imaginar que o homem de terno havia se sentido merecedor de alguma gratidão.
Caminhou de volta pela rua do Ouvidor, com seu novo tesouro sobre a caixa de sapatos. Com o estômago a deixando em paz, pôde dar atenção às vitrines. Já andara por ali antes, mas nunca havia reparado na quantidade de roupas expostas. Passada a Uruguaiana, notou os carrinhos, jogos de cozinha, mini-notebooks e bonecas, expostos numa loja magazine. Eram bonitos, sem dúvida, mas sentiu mais orgulho da sua princesa na carruagem. Quase no Largo de São Francisco, deteve-se na porta de uma grande loja de roupas. Mulheres e homens entravam e saíam, esbarrando suas sacolas e destilando suas impaciências. Parou, não atraída pela loja, mas pelo vestido de menina, exposto no centro da vitrine. Era azul, com a figura da Cinderela no corpete. De alças, vinha com uma bolsinha e tinha bordados na barra. Preenchendo um manequim raquítico, que devia ter o mesmo peso dela, enchia seus olhos.
Renata estava ali, contemplando a peça, quando o cheiro de comida a despertou de seus sonhos de consumo. Vinha de uma padaria que havia na calçada atrás de si. Virou-se e seguiu o aroma que a fez lembrar dos irmãos. Só conseguiu a atenção do rapaz do balcão depois que exibiu o dinheiro. Pediu pães doces e salgados, biscoitos de polvilho e algumas roscas. Em casa, a justificativa para tanta fartura passaria longe da verdade.
Abastecida de duas sacolas, e com a sobra de trinta e cinco reais, voltou para a porta da loja. O vestido estava ali, exibindo toda a vivacidade da infância, com o rótulo de R$ 32,99. Havia ao lado outros mais baratos, nenhum encantando o desejo de Renata.
Um esforço para fazer as contas, e ela sorriu. Podia comprá-lo. Dois passos avançados e foi travada pelas mãos de um segurança, muito mais carrancudo que o anterior.
No mesmo script, avisou que ela não poderia vender balas ali dentro. Renata argumentou que não queria vender nada, e sim comprar. O homem não esboçou reação.
— Chispa daqui, agora.
— Moço, só quero comprar o vestido. Deixa, vai.
Impaciente, ignorando seus apelos, ele a agarrou pelo braço, puxando-a para fora da loja.
— O que está acontecendo aqui, senhor? O que pensa que está fazendo? — uma idosa, movimentos lentos, voz pausada e sedosa, vestido claro e leve, interrompeu a cena que já atraía curiosos.
— Nada, senhora, só estou levando essa pivetinha pra fora. Tava querendo vender essas porcarias aqui dentro.
— Queria vender não, moça, eu disse que só queria comprar o vestido.
— Que comprar nada, conheço vocês. Vai é embora e agora.
— O senhor pare, imediatamente. Largue o braço dela. Isso é jeito de tratar uma criança?
— É uma pivete, madame, menina de rua. Se deixar entrar, vai roubar os clientes e ainda vai me meter em enrascada. Tenho família pra criar, dona.
— Não ia roubar não, senhora, olhe! — remexeu o bolso como pôde, presa ainda pelo homem, e tirou o dinheiro, embolando-o na mão. — Queria era comprar o vestido azul.
— Viu, deve ter roubado esse dinheiro.
— Roubei não, eu juro, achei na rua.
— Vamos, anda! Chega de papo furado.
— Largue essa menina, agora, já disse, ou chamarei a polícia, e não será para acertar contas com ela.
— Mas, senhora, estou fazendo meu trabalho.
— Duvido que seu superior mande você tratar uma criança desse jeito. E se mandar, não hesitarei em denunciá-lo também. Você, venha aqui.
Renata, solta pelo segurança, se aproximou. Os olhos úmidos, gestos indecisos, tensos, não pelo tratamento ao qual já se acostumara, mas por supor que não lhe permitiriam ter o vestido.
— O que você queria aqui dentro?
— Comprar o vestido azul que está ali.
— Para evitar mais confusão, quer me dar o dinheiro e eu compro pra você?
— Ahã! — ela esticou a mãozinha com as notas emboladas.
— Espere aqui. E quanto a você, meu rapaz, fique longe dela.
Renata encostou-se à porta, evitando o olhar do segurança, que já havia se resignado que ela não sairia dali sem o vestido. A situação lhe era desconfortável. Se fosse por ele, não se importaria, mas. Assim, cuidou de prestar atenção aos outros clientes, antes que ganhasse mais problemas.
Cinco minutos depois, a idosa entregou à menina uma pequena sacola plástica e o troco.
A menina abriu um sorriso quando pegou nas mãos o vestido. Tão excitada ficou, que largou as sacolas e a caixa de balas no chão, e começou a tirar o trapo que usava.
— Menina, não pode trocar aqui. Espere chegar em casa.
— Eu queria vestir agora, por favor, deixa.
A idosa, entendendo a ansiedade, buscou uma solução.
— Está bem, mas vamos fazer diferente. Assim, coloque o vestido novo por cima do seu e então tire o outro por baixo.
Alguns movimentos depois, o vestido azul era exibido sobre seu corpo magro e sujo, contrastando com a pele morena clara.
Seus sentidos ignoraram os burburinhos em volta. Não percebeu a mulher guardar seu trapo na sacola da loja e juntá-la às outras que estavam no chão. Não viu também, ao se afastar dali, o olhar do segurança, que antes, supostamente insensível, começava já a roçar a compaixão.
Saiu equilibrando suas sacolas e a caixa de balas, saltitando pelas ruas e alisando o tecido de malha que se colava ao corpo, com pequenos sinais da puberdade. Colocou o troco na bolsa que acompanhava o vestido. Teve vontade de largar a caixa de balas e ser apenas a menina que passeava com seu vestido novo.
Foram muitos passos que a levaram até o Catumbi, onde morava. Deveria ter pedido carona em ônibus, para arriscar uma última venda, mas não era isso que queria naquele momento. Buscava apenas passear, e passear, e exibir o vestido, e desejar, e esquecer.
E foi assim que chegou muito próximo de casa. A realidade da favela espalhada à frente lembrou-lhe que ainda não havia inventado uma mentira, para justificar os pães e a ausência das latinhas. E o que diria sobre o vestido? Era bondade demais para atribuir a uma única pessoa. Se a mãe ou o padrasto descobrissem como gastara o dinheiro, era certa a surra, provavelmente muito pior do que todas que conhecia.
Pensou em esconder o vestido. Chegou a imaginar o fundo da caixa de doces, mas facilmente seria descoberto.
Nunca sentiu apego a nada material e nem se lembrava de ter desejado tanto alguma coisa, como desejara aquela roupa. Foi por isso que ao concluir que não poderia ficar com ele, Renata chorou, ao mesmo tempo em que se enfiava num beco e trocava de pele.
O vestido desejado, colocado cuidadosamente dentro da sacola plástica nova, continuou agarrado ao seu peito, só que agora longe do calor do corpo. A entrada da favela estava próxima. Não tinha coragem de jogá-lo no lixo, nem chegou a demonstrar intenção quando passou por duas caçambas.
A uma quadra da favela, viu uma menina que regulava com a sua idade, acompanhada de uma mulher, sentadas na porta de uma loja já fechada. Estavam sujas e pediam esmola. Nunca as tinha visto por ali. Analisou o rosto sofrido de ambas, a expressão de desconsolo. Seu braço, aos poucos, foi afrouxando da sacola.
Parou diante delas, tirou um dos pacotes de pão e ofereceu às duas. Elas sorriram. Renata se viu refletida. Estendeu a sacola do vestido.
A menina maltrapilha recebeu feliz o presente que nem sabia o que era. Quando descobriu o vestido, Edilaine já estava longe.
*
Seu conto tinha mesmo que ser premiadíssimo, Ana Cristina. É simplesmente lindo, emocionante e envolvente do início ao fim. Abraços. Paz e bem.
ResponderExcluirObrigada, Cacá!
ResponderExcluirGosto muito desse conto.
Bjs
Lindo, Ana, realista e comovente. Nos leva a refletir sobre nossos valores. Parabéns!!
ResponderExcluir