I Concurso Literário Benfazeja

O enfeitiçamento


Conto para a seção Fantásticos, por Beronique*

“Lembre-se que quando se contempla o abismo, a ti o abismo também contempla” –
Nietzsche


Era para eu estar dormindo, mas, de repente, aquele sono perfeito e sem sonhos se mostrou bem pior do que imaginei... tive uma leve percepção, entre um lapso e outro de consciência, de que aquele sono pesado era efeito de alguma droga. E então estava em um quarto antigo e escuro. Havia pessoas comigo, e tremi ao lembrar que eram meus colegas de curso que andavam metidos com coisas estranhas das quais, depois de um primeiro experimento, eu não quis mais participar...



Minha nossa... a cama na qual deitaram-me era dura e eu não entendia nada do que acontecia, só sabia que não conseguia me mover e algo estava sendo feito comigo. Algo mau. Havia velas acessas, reza e um aroma estranho no ar que me fazia ficar entorpecida. No meio desse torpor vi a imagem de madeira de uma santa pagã assustadora, olhos esbugalhados, enrugada...e isso me iluminou para a peculiaridade do que estava acontecendo: aquele era um ritual de bruxaria e eu estava sendo enfeitiçada. Como já ouvi dizer que aconteceria...mas nunca poderia imaginar que algum dia a oferenda seria eu.

E gemia e delirava, as imagens se misturavam, embaralhadas entre as pessoas que estavam ali e o que elas faziam comigo, rostos conhecidos se mesclando em carrancas surreais.

Até que aconteceu algo muito intenso. Senti-me rasgando por dentro e tudo silenciou. Parecia ter acabado. Fui deixada sozinha no quarto apenas com aquela imagem rústica da santa de madeira, como se fosse uma guardiã, ou ainda, uma sentinela. Mesmo exausta, eu queria sair dali de qualquer maneira. Medo e angustia se agitavam em minha alma e temia voltar a ter a companhia daquelas pessoas. O quarto não possuía portas, não sabia por onde eles tinham saído, mas fiz força para me levantar da cama quando vi um buraco no alto de uma das paredes. Simplesmente comecei a escalá-la, como se depois desse ritual isso fosse a coisa mais natural que eu pudesse fazer. Não pensei muito no absurdo de tudo aquilo enquanto alcançava com facilidade o alto da parede, brincando com a gravidade. Depois que cheguei a esse buraco, uma luz saiu do nada e me cegou...

Correram-se os dias, mas tudo não passou de um lapso em minha alma. Aquela luz me devolveu à uma floresta sombria, por onde, desesperada, eu corria. Segurava a saia de um pesado vestido preto para que não atrapalhasse o meu trote, sentindo-me uma bruxa do século XVI. Uma trança comprida nos meus cabelos anelados sacudia como um chicote de um lado para o outro. Meus olhos de castanho café foram substituídos por um verde vampiresco que brilhavam no escuro, tais os de gato. Eu sabia que estava sob efeito daquele feitiço jogado pelos meus falsos amigos no elo mais fraco, desertado da loucura ritualística deles. Não me importavam os detalhes sem lógica daquela situação. Amaldiçoada, corria contra o tempo para reverter minha sina. E o tempo urgia. Estava com medo, mas tentava não ultrapassar o limiar do desespero ou botaria tudo a perder.

Encontrei uma casinha caindo aos pedaços e entrei um pouco temerosa, mas sabia que só aquele lugar me ajudaria. Era apenas um quarto escuro, cheio de poeira e teias de aranha, entulhado de livros e caixas velhas, tantas que ficava impossível de andar em muitos pontos. As paredes tinham quadros estranhos e davam-me calafrios...mas era ali que estava o contrafeitiço do que fizeram comigo e tinha apenas o pensamento de que precisava encontra-lo urgentemente.

Procurava e procurava, mesmo me sentindo exausta, mesmo com a sensação de que aquele feitiço estava me dominando cada vez mais e eu tinha pouco tempo. Entre as montanhas de bagunça e livros velhos, procurava pelo certo. Sem perceber, esbarrei numa estante e um punhal caiu lá de cima, cravando certeiramente no chão, muito próximo a mim, como se fosse uma armadilha. Meu coração disparou, tinha sido por pouco. Resolvi levá-lo comigo temendo que ele fosse usado por alguém depois para me apunhalar pelas costas. Afinal, aquilo de certa forma já tinha sido feito... Com ele em uma das mãos, peguei dois livros em uma das pilhas, na esperança que minha busca aleatória me ajudasse. Assim que abri um deles um vento gelado começou a soprar, espalhando papéis e esvoaçando os fios soltos dos meus cabelos. Deu-me arrepios. Olhei ao redor, mas tudo o que vi foi uma janela com vidros sujos e uma cortina aos farrapos. Estava fechada, então não entendia de onde vinha o vento.

Mas o mal-estar me fez lembrar que tinha muito pouco tempo para tentar entender aqueles fenômenos e voltei os olhos para o livro que abrira. Era horrível. Havia uma porção de feitiços malignos e fotos de pessoas mutiladas, cegas, sem rosto, com feridas aterrorizantes, resultados das bruxarias que não davam certo por algum motivo, e fiquei apavorada. Era pior do que imaginei...Já tremula peguei o outro livro, mais delgado, com o sombrio titulo de “O que toda Bruxa malvada deve saber” e nele, mesmo que não houvesse fotos, parecia ser ainda pior do que o anterior, mas não o li ali. O vento frio recomeçou, como se me avisando que o tempo se esgotava. Trovoadas soaram do lado de fora.

Os relâmpagos vieram tão de repente, que me assustei quando um clarão revelou um quadro imenso, ocupando quase metade da parede do fundo do quarto, com a figura de um homem empunhando um machado, numa paisagem sombria e árida, com um céu roxo avermelhado ao fundo. Sua figura era tão surreal e assustadora que parecia prestes a saltar da pintura e me retalhar com seu golpe de carrasco. Tropecei em meu vestido longo e na pilha de livros, caindo e derrubando muitos sobre mim, a poeira impregnando minhas narinas e fazendo meus olhos lacrimejarem. Se fora apenas fruto do meu pavor eu não saberia dizer no momento, mas os clarões e o turbilhão que estava minha mente me fizeram acha-lo muito parecido com um dos meus colegas de curso que estavam envolvidos com o feitiço do qual eu me via presa. Parecia que a qualquer segundo eu seria atacada por aquela sombra na pintura que agora ria de escárnio, com um machado sujo do sangue de outras vitimas. Levantei-me com dificuldade desvairada e corri dali tentando me esquivar dos edifícios de lixo, levando comigo os livros de feitiços.

E emergi, anelante, como se saída das profundezas de um lago negro. Já estava em casa. Segura e limpa, longe daquela realidade paralela e alucinante. Quase poderia pensar que nada aconteceu, mesmo com o coração disparado e a respiração ofegante, poderia ser apenas um sonho muito ruim do qual acabara de acordar, se não tivesse trazido comigo o punhal e aqueles livros da cabana, ainda abraçados a meu peito. E, para piorar, se meus olhos não continuassem tão claros quanto o de um ser mítico e não escuros como normalmente eram. Mesmo vestindo roupas normais e estar em minha casa que deveria me transmitir tranquilidade e me livrar de qualquer pensamento absurdo, não era possível. Eu ainda estava enfeitiçada e o tempo curto pulsava como uma bomba relógio dentro do meu estomago.

Sentei-me em frente à mesa do meu quarto para ler o livro com os feitiços. Lia freneticamente aquelas atrocidades, procurando pela certa. Parei nas linhas que falavam sobre arrancar os olhos de um gato branco e os costurar dentro de sua boca. Assustador e repugnante, mas, ainda assim, estava disposta a fazer qualquer coisa, já até pensava aonde poderia arranjar o gato e como arrancar-lhes os olhos com aquele punhal. Mas então comecei a ouvir vozes vindas da sala e um andar apressado pelo corredor. Minha mente se alarmou e sai para ver, quase trombando com minha mãe no caminho. Desviei meu rosto para que ela não visse os meus olhos cristalinos.

Disse, sem olhar para trás, que minha amiga estava me esperando, e senti um enorme alivio com a notícia. Era a única pessoa com a qual eu podia compartilhar aquele segredo e buscar alguma solução. Corri para a sala ao seu encontro, quase tomando suas mãos nas minhas, quando seu semblante sério me barrou. Olhava-me com certa censura sentada no braço do sofá mais próximo e percebi que ela reparava em meus olhos arregalados e de tonalidade vampírica. Abri a boca para explicar toda aquela confusão, mas parei abruptamente no meio da frase ao ver o grupo todo reunido no outro sofá, como uma seita secreta esperando a peça principal para iniciar sua reunião.

E, aterrorizada, notei que o olhar da minha amiga de mais alta confiança estava igual ao daqueles que me enfeitiçaram. Meu coração disparou com seus sorrisos complacentes em contraste com aqueles olhos mortais. Quase pensei ver aquele machado ensanguentado nas mãos do rapaz do grupo.

Estava cercada, porém, o pior veio arrastando chinelas do corredor, ajudada pela minha mãe, e pelas minhas costas o vento frio voltou a soprar...a periferia do meu olho percebeu os ralos cabelos grisalhos que se projetavam de uma cabeça enrugada, o chalé negro, a boca desdentada num sorriso eterno de agouro. Para minha mãe apenas a “vovozinha” da minha melhor amiga que fora beber um copo d’água enquanto aguardava. Para mim, o pavor de perceber o tremendo erro de tomar algo que pertencia a uma criatura tão maligna e a ignorância de não pensar que ela voltaria para busca-los, que eles não voltariam para me buscar. De que não haveria paz...não haveria como correr atrás dos livros, buscar o punhal para me defender, de uma cura ou salvação...o tempo havia se esgotado.

Olhei diretamente para minha mãe, mas ela se limitou a devolver a velhinha seca para os braços da neta afetuosa e voltar apressada para seus afazeres. Não houve tempo do meu olhar pedir um último socorro e apenas a ouvi recomendar que eu chegasse cedo. Afinal — olhei-me, aterrorizada, com o traje negro de noite — eu já estava atrasada para o nosso compromisso.

Ela só não sabia que, depois de ter minhas mãos tomadas por aquelas geladas da velha bruxa, aquela santa pagã materializada, esvaia-se minha ultima esperança de cura, de retorno, num grito morto em minha garganta seca...

Num cortejo que lembrava uma marcha fúnebre, me levaram sem escolha, junto com a bruxa maldita, para as sombras.

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Biografia
Mora em Aparecida, interior de São Paulo, formada em Gestão Empresarial. Amante de literatura e histórias em quadrinhos, desde pequena fascinada pelo gênero de fantasia e terror, com um toque de drama e romance. Começou a escrever aos 12 anos, e alguns de seus textos estão em seu blog: brisa noturna

Contato:
ventosoturno@yahoo.com.br

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Para participar dessa seção, envie para Celly Monteiro
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Créditos da imagem:
Quarto ou Prisão..., por Paulo

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