A sombra dos ipês
Conto, por Marta Reis
Certa ocasião me contaram dos pássaros que migram. Partem para longe em busca de alimento e depois regressam. O que quase ninguém sabe é que a cada retorno, eles nunca são os mesmos. Porque se impregnaram das cores de outras paisagens e levam consigo pólen, vento, histórias... Alguns voltam feridos. Quantos perecem no caminho?
Uma história assim, um pássaro cantou:
Começara a construção da ferrovia e com ela, pássaros em bando chegavam à região – operários da construção. Vinham de terras distantes e enchiam o ar com suas canções, quase sempre sangrando, por aqueles vales e rincões. E enquanto tilintavam os martelos nos vergalhões de ferro, se alastrava a Ferrovia sobre rios, montanhas e abismos, abrindo profundos sulcos nos corações de matas virgens, ziguezagueando a perder de vista, destruindo pastagens, cercas e casas.
Muitos precisaram se mudar para ceder passagem à Colossal Serpente. Partiam, às vezes ao alvorecer, com pobres tralhas atreladas a um burro, deixando para trás a poeira e as recordações. Adiante deles, um futuro acenava, num cantinho qualquer do planeta. Cabisbaixos iam por estradinhas de terra que davam a lugar nenhum. De apenas uma coisa estavam certos: partiam. Possivelmente voltariam, se Deus o quisesse, numa oportunidade qualquer.
Outros tantos vinham, farejando no ar a promessa e o cheiro do progresso. Chegavam com um vago brilho no olhar. Quase todos eram forasteiros, gente simples que vinha tentar a sorte por ali. Assemelhavam – se aos que partiam, pois traziam pouca bagagem e a carga maior agasalhavam no peito; a esperança de um possível talvez.
Canções. Martelos. Travessia. Riqueza. Chegada. Partida. Construção. Destruição. Dor. Esperança. Isto tudo. A ferrovia... Cortando aquele humilde povoado, esquecido num mapa. Tão pequenino, tão comum!... Mas era lá que vivia a Mulher com nuvem no olhar, ser cuja existência ninguém notava. Enclausurada em sua insignificância, seu maior desejo era explodir como bolha ao vento. Ploft!... e se reduziria ao nada, subitamente.
Mas dizem que há Pássaros Encantados, quase sempre solitários, que planam sozinhos por entre céus e abismos. Com olhos de astuto caçador, avistam paisagens inimaginadas aos pássaros comuns. E Ele parecia um Pássaro Encantado!... De um alto voo, a Mulher Ele avistou.
Foi assim, de repente, que Nuvem e Solidão se fizeram Encontro!
Os preâmbulos do que foram tantos dias e noites não se permitiu contar aqui. Porque há territórios que são sagrados e este solo só a eles pertencia. Todo o resto era maresia, uma fina areia, esvoaçando por planícies, rochedos e desertos.
Mas um certo dia amanheceu gelado, as folhas caíam das árvores anunciando que um rigoroso inverno se aproximava. Então, a natureza selvagem de cada pássaro adivinhava ter chegado o tempo de partir. Sentiam que não conseguiriam mais sobreviver ali.
Decidiram por isso abandonar a Ferrovia que durante tanto tempo lhes alimentara à custa de muito sangue e suor. Sabiam que toda ela era de ferro, por isso não esperavam que sentisse a falta de nenhum deles. Sabiam ainda que havia outros pássaros, ainda mais famintos que viriam também de longe, se alimentar naquelas margens.
Profundo silêncio! Já não se ouviam martelos, nem canções em tom algum. Estavam concentrados para a debandagem e sob suas asas levariam pólen, vento, histórias. Provavelmente, eles já não voltariam os mesmos. Se naquelas montanhas algo neles envelhecera, que aprendizagens levariam incrustadas em suas penas? Quanto a isto era um mistério, resguardado dentro de cada um deles.
E o Pássaro que parecia Encantado se bipartiu.
Precisava regressar com seu bando, pois muito além dali deixara algumas pendências e, para se refazer, precisava voltar para emendar alguns de seus farrapos... Partiria deixando Aquela que iluminara o mais escuro de seus labirintos. Então prometeu - lhe que voltaria, definitivamente, na próxima primavera, quando florissem os ipês.
Tristemente a Mulher sorriu. Um mau presságio lhe arrepiava o corpo e do alto da montanha avistou seu Pássaro partir. Foi aí, para seu desespero, quando percebeu que Ele voava com dificuldade e, assim que alçou voo, Ela viu um rastro carmesim escorrendo de sua asa esquerda. Apavorada a Mulher tremeu, mas já era tarde demais para impedi-lo.
Desde então, era lentamente que o Tempo girava, respingando naquelas paisagens tantos invernos, outonos e verões. Em seu curso, brotavam também as primaveras, espargindo vida e beleza em tudo, a cada floração.
Sempre que floresciam os ipês, a Mulher se vestia do mais puro infinito, galgando vales e montanhas, esperançosa de seu Pássaro reencontrar. Seu olhar se perdia no horizonte, longe, tão longe, contemplando em miragens os muitos verdes, amarelos e azuis. Nela ainda restava um fio tênue de esperança, então enquanto montava o mosaico deste possível reencontro, em seus olhos densos coalhavam – se nuvens e ipês.
*
Biografia
Marta Helena dos Reis (Marta Reis) é natural de Martinho Campos MG. Graduou-se em Letras e se especializou em: Língua Portuguesa, Leitura e Literatura, Religião. Atualmente é professora de Língua Portuguesa nas redes municipais de Betim e de Belo Horizonte e reside em Contagem, há aproximadamente quinze anos. Ganhou seu primeiro prêmio literário aos treze anos de idade, na cidade de Divinópolis, na escola onde estudava e onde Adélia Prado lecionava. Ela é poeta, escritora e vem se destacando como contista, categoria na qual recebeu Menção Honrosa nos concursos: Editora Guemanisse/RJ 2009, Editora Guemanisse/RJ 2010, V Concurso Internacional Mulheres Emergentes 2010 e Via Literária em Porto Seguro/BA 2010. Começou a publicar seus textos há menos de dois anos e tem recebido elogios da crítica em Belo Horizonte, Rio, Porto Seguro/BA e São Paulo. Em 2009 participou da Projeto Delicatta/SP, pela Editora Scortecci. Também teve seu poema Biografia selecionado no I Concurso Cora Coralina de poesia (para servidores públicos municipais da PBH) e no Beco dos Poetas/SP. É membro da ACL – Academia Contagense de Letras, do Grupo Pasárgada – recital de poesia e música e também é cônsul dos Poetas Del Mundo por Contagem/Industrial. Recentemente coordenou o I CONPPAZ _ Contagem e Poetas pela Paz. Hoje escreve em coletâneas com vários autores do Brasil e do exterior. Marta Reis escreve por paixão. Muita! Sobretudo ela é alguém que ama a vida e faz da escrita seu canto de luta, amor e resistência.
Uma história assim, um pássaro cantou:
Começara a construção da ferrovia e com ela, pássaros em bando chegavam à região – operários da construção. Vinham de terras distantes e enchiam o ar com suas canções, quase sempre sangrando, por aqueles vales e rincões. E enquanto tilintavam os martelos nos vergalhões de ferro, se alastrava a Ferrovia sobre rios, montanhas e abismos, abrindo profundos sulcos nos corações de matas virgens, ziguezagueando a perder de vista, destruindo pastagens, cercas e casas.
Muitos precisaram se mudar para ceder passagem à Colossal Serpente. Partiam, às vezes ao alvorecer, com pobres tralhas atreladas a um burro, deixando para trás a poeira e as recordações. Adiante deles, um futuro acenava, num cantinho qualquer do planeta. Cabisbaixos iam por estradinhas de terra que davam a lugar nenhum. De apenas uma coisa estavam certos: partiam. Possivelmente voltariam, se Deus o quisesse, numa oportunidade qualquer.
Outros tantos vinham, farejando no ar a promessa e o cheiro do progresso. Chegavam com um vago brilho no olhar. Quase todos eram forasteiros, gente simples que vinha tentar a sorte por ali. Assemelhavam – se aos que partiam, pois traziam pouca bagagem e a carga maior agasalhavam no peito; a esperança de um possível talvez.
Canções. Martelos. Travessia. Riqueza. Chegada. Partida. Construção. Destruição. Dor. Esperança. Isto tudo. A ferrovia... Cortando aquele humilde povoado, esquecido num mapa. Tão pequenino, tão comum!... Mas era lá que vivia a Mulher com nuvem no olhar, ser cuja existência ninguém notava. Enclausurada em sua insignificância, seu maior desejo era explodir como bolha ao vento. Ploft!... e se reduziria ao nada, subitamente.
Mas dizem que há Pássaros Encantados, quase sempre solitários, que planam sozinhos por entre céus e abismos. Com olhos de astuto caçador, avistam paisagens inimaginadas aos pássaros comuns. E Ele parecia um Pássaro Encantado!... De um alto voo, a Mulher Ele avistou.
Foi assim, de repente, que Nuvem e Solidão se fizeram Encontro!
Os preâmbulos do que foram tantos dias e noites não se permitiu contar aqui. Porque há territórios que são sagrados e este solo só a eles pertencia. Todo o resto era maresia, uma fina areia, esvoaçando por planícies, rochedos e desertos.
Mas um certo dia amanheceu gelado, as folhas caíam das árvores anunciando que um rigoroso inverno se aproximava. Então, a natureza selvagem de cada pássaro adivinhava ter chegado o tempo de partir. Sentiam que não conseguiriam mais sobreviver ali.
Decidiram por isso abandonar a Ferrovia que durante tanto tempo lhes alimentara à custa de muito sangue e suor. Sabiam que toda ela era de ferro, por isso não esperavam que sentisse a falta de nenhum deles. Sabiam ainda que havia outros pássaros, ainda mais famintos que viriam também de longe, se alimentar naquelas margens.
Profundo silêncio! Já não se ouviam martelos, nem canções em tom algum. Estavam concentrados para a debandagem e sob suas asas levariam pólen, vento, histórias. Provavelmente, eles já não voltariam os mesmos. Se naquelas montanhas algo neles envelhecera, que aprendizagens levariam incrustadas em suas penas? Quanto a isto era um mistério, resguardado dentro de cada um deles.
E o Pássaro que parecia Encantado se bipartiu.
Precisava regressar com seu bando, pois muito além dali deixara algumas pendências e, para se refazer, precisava voltar para emendar alguns de seus farrapos... Partiria deixando Aquela que iluminara o mais escuro de seus labirintos. Então prometeu - lhe que voltaria, definitivamente, na próxima primavera, quando florissem os ipês.
Tristemente a Mulher sorriu. Um mau presságio lhe arrepiava o corpo e do alto da montanha avistou seu Pássaro partir. Foi aí, para seu desespero, quando percebeu que Ele voava com dificuldade e, assim que alçou voo, Ela viu um rastro carmesim escorrendo de sua asa esquerda. Apavorada a Mulher tremeu, mas já era tarde demais para impedi-lo.
Desde então, era lentamente que o Tempo girava, respingando naquelas paisagens tantos invernos, outonos e verões. Em seu curso, brotavam também as primaveras, espargindo vida e beleza em tudo, a cada floração.
Sempre que floresciam os ipês, a Mulher se vestia do mais puro infinito, galgando vales e montanhas, esperançosa de seu Pássaro reencontrar. Seu olhar se perdia no horizonte, longe, tão longe, contemplando em miragens os muitos verdes, amarelos e azuis. Nela ainda restava um fio tênue de esperança, então enquanto montava o mosaico deste possível reencontro, em seus olhos densos coalhavam – se nuvens e ipês.
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Biografia
Marta Helena dos Reis (Marta Reis) é natural de Martinho Campos MG. Graduou-se em Letras e se especializou em: Língua Portuguesa, Leitura e Literatura, Religião. Atualmente é professora de Língua Portuguesa nas redes municipais de Betim e de Belo Horizonte e reside em Contagem, há aproximadamente quinze anos. Ganhou seu primeiro prêmio literário aos treze anos de idade, na cidade de Divinópolis, na escola onde estudava e onde Adélia Prado lecionava. Ela é poeta, escritora e vem se destacando como contista, categoria na qual recebeu Menção Honrosa nos concursos: Editora Guemanisse/RJ 2009, Editora Guemanisse/RJ 2010, V Concurso Internacional Mulheres Emergentes 2010 e Via Literária em Porto Seguro/BA 2010. Começou a publicar seus textos há menos de dois anos e tem recebido elogios da crítica em Belo Horizonte, Rio, Porto Seguro/BA e São Paulo. Em 2009 participou da Projeto Delicatta/SP, pela Editora Scortecci. Também teve seu poema Biografia selecionado no I Concurso Cora Coralina de poesia (para servidores públicos municipais da PBH) e no Beco dos Poetas/SP. É membro da ACL – Academia Contagense de Letras, do Grupo Pasárgada – recital de poesia e música e também é cônsul dos Poetas Del Mundo por Contagem/Industrial. Recentemente coordenou o I CONPPAZ _ Contagem e Poetas pela Paz. Hoje escreve em coletâneas com vários autores do Brasil e do exterior. Marta Reis escreve por paixão. Muita! Sobretudo ela é alguém que ama a vida e faz da escrita seu canto de luta, amor e resistência.
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Créditos da imagem:
Flores do Ipê, por Jorge De Almeida Santos
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