Terça-feira para sempre!
Conto, por Marcelo Sousa.
Era mais uma terça-feira sem graça na Tijuca. Tinha saído mais cedo do trabalho por conta de uma reunião de negócios que tive perto de casa e não resisti ao prazer de escapar da hora do rush do Centro para a Zona Norte. Assim já estava em casa antes das seis horas da noite. Sapatos para um lado, mochila e laptop para o outro, afrouxei o nó da gravata e sentei-me com um Malbec como companhia. Olhava para uma reprodução barata do "Café de Nuit" pendurada no centro da minha sala. Além da admiração pela técnica de pinceladas angustiadas e revoltosas do pintor, achava que eu e Van Gogh tínhamos algo em comum em nossa vida pessoal e costumava passar longos minutos degustando vinhos em minha casa observando a noite estrelada e os feixes de azul e amarelo tão magnificamente usados por aquele homem romântico e louco que cortou a própria orelha para mostrar à sua amada que precisava muito da sua atenção.
Mas essa terça, que havia começado tão banal, ganhou novos ares naquele início de noite, quando ouvi tímidas batidas na minha porta. Não seria um vendedor, porque esses gostam de campainhas, adoram o barulho que fazem e, sobretudo, adoram ouvir a própria voz em suas longas e chatas explicações sobre como aquele filtro japonês vai mudar a nossa vida... Mas enfim, não era um vendedor, era uma vizinha.
Diana era o nome dela, casada, devia ter seus trinta e cinco anos, talvez mais, talvez menos. Branquinha, magrinha, silenciosa, não era bonita, mas me causava um interesse esquisito, como se escondesse alguma coisa naqueles olhos que miravam a gente com força, mas sem dizer nada. Apenas cumprimentava, e limitava-se a dizer "como vai, tudo bem?" sem nunca deter-se para ouvir qualquer resposta. Usava sempre tons pastéis, e nunca era vista em festas ou coisa parecida. Não era religiosa, apesar da aparência. O marido eu conhecia de vista, deveria ter a mesma idade da moça, mas estava acabado pelo tempo, ou melhor, pela inevitável mistura de muito trabalho e muita cerveja. Os cabelos brancos e a barriga saliente destoavam dos seus olhos de rapaz. Tinham três filhos, uma escadinha de duas meninas e um menino. O sujeito trabalhava demais, era um fantasma bonachão que só aparecia aos domingos, quando passava a maior parte do dia sorrindo alto e pagando bebidas aos amigos, enquanto a mulher escorregava pelas sombras sem ser notada nem por ele nem pelos vizinhos.
Naquela tarde Diana bateu à minha porta e eu atendi meio surpreso. Dei-lhe boa tarde e fiquei calado esperando, a taça de vinho na mão, a sala escurecida pelas cortinas fechadas e o som aveludado de um blues que tocava no computador. Ela foi direta, e disse com um sorriso enigmático que nós precisávamos conversar. Senti sua mão sobre a minha e mal percebi quando ela me guiou até o sofá, fechando a porta com um movimento rápido, mas sem barulho. E ela prosseguiu:
- Você quer a minha filha. Eu vejo como vocês se olham.
Fiquei perdido por alguns segundos, depois me veio à lembrança a deliciosa Camila, que saía da adolescência ainda com olhos de menina, e provocava delírio quando nos encontrávamos no elevador e ela me olhava pelo espelho da lateral, fazendo caras e bocas usando aquela camiseta azul por onde dois morrinhos emergiam como frutas deliciosas escondidas sob uma fina camada de seda. Ela cumprimentava como a mãe, com olhos penetrantes, mas sem insinuar nada diretamente. Eu me contentava a um ou outro encontro por aí. Ela sim, frequentava alguns lugares por onde eu passava, e sempre que me via fazia questão de falar comigo, embora estivesse sempre rodeada de amigas e amigos.
- Mas eu nem falo direito com a sua filha!
- Mas quer, não quer?
- Quero o quê?
- A guria! Tu a queres pra ti!
- Olha, Dona Diana, eu não sei o que te disseram...
- A menina está grávida. (Disse isso de olhos baixos e voz resignada)
- O que você quer dizer com isso? (Suspeitando a cilada, bradei indignado, querendo levantar e mandar aquela louca para os quintos dos infernos, mas ela segurou minha mão com uma firmeza delicada e inescapável.)
- Me desculpe, eu sei que você é um rapaz respeitador, não é culpa sua. Mas nós estamos em uma situação complicada, e você tem quase a minha idade, não tem? Está solteiro e o tempo está passando, e minha filha é um mimo, uma iguaria, você não encontra mais isso por aí...
- A minha vida pessoal não é da sua conta. E eu nem penso em casar. Estou feliz aqui sozinho! (Disse isso mais pra mim mesmo do que pra ela, eu acho.)
- O Carlos mandou a garota embora, bateu nela e em mim. Ela não sabe quem é o pai. Aliás, sabe, mas não quer contar. Disse que não pode. É gente daqui, homem casado, entende?
- A senhora vai me desculpar, eu lamento muito tudo isso, mas...
E Diana tocou meus lábios com um dedo, e de alguma forma aquele toque me arrepiou demais. Calada ela me fitava balbuciando palavras que eu não compreendia direito. Seu rosto ficou vermelho e sua mão esquerda puxou um laço que descansava sobre seu ombro direito, e aquele vestido caiu como se fosse uma pena que se desprendesse de uma ave durante o voo. Ela pegou minhas mãos e colocou sobre um seio, e não precisou fazer força para que eu continuasse acariciando aquela beleza e logo já estava no seu colo como um recém-nascido.
- Você já está bem grandinho, já é um homem, já pode casar. Você tem tudo que uma mulher de verdade quer. (Dizia isso entre um gemido e outro, mas num tom maternal que destoava do discurso.)
- Diana, eu quero mesmo é você!
- Calma! Você já me tem! Mas tem que querer ter as duas e não uma só! Tem que ter compromisso!
E magicamente senti outra boca tomando meu corpo, e de olhos fechados sabia que era o carinho de Camila que eu estava recebendo naquela hora. E ficamos ali por algumas horas, num entrelaçamento estranho que algumas vezes parecia uma briga e outras vezes tinha a suavidade de um balé.
Eu não sabia mais onde começava uma pessoa e terminava outra, e fiquei ali na penumbra achando graça por não saber o que estava acontecendo, mas querendo que aquilo continuasse pra sempre. Eu acordava procurando quadris para me encaixar, e dormia assim, e acordava de novo sentindo bocas e mãos fazendo a ronda embaixo do edredom... E tudo era tão perfeito, tão ridículo, tão abominável, tão inacreditável, que eu perdi a noção do tempo, até ouvir o telefone tocar algumas vezes, e minutos depois a porta batendo, dessa vez com um estrondo, e a voz do Carlos sobre outras vozes menos conhecidas, e pisadas de coturno sobre o carpete, um chute no aquário que alagou a sala, o frio na barriga, um soco na têmpora e uma escuridão eterna como se eu fosse um náufrago em um oceano desconhecido onde para sempre é noite de inverno.
Casei-me com Camila, que se separou de mim quando os gêmeos, loirinhos e de olhos azuis, começaram a perguntar por que o papai tinha a cara preta e a mão branca. Eram filhos do meu melhor amigo, Pedro, dono do restaurante da esquina e casado com Renata, meu primeiro amor da adolescência. Os meninos, Thor e Odin, tinham cinco anos de idade quando os vi pela ultima vez. Foram embora com a mãe, que casou com um jornalista e foi morar em São Paulo, onde os dois trabalhavam. Carlos morreu de enfarte durante um jogo de futebol três anos antes, atrapalhando o churrasco e a cerveja dos amigos. Diana apareceu novamente em uma madrugada fria de Junho, após ter passado dez anos desaparecida. Disseram-me que teria ido buscar ajuda de parentes distantes em Berlim, que tinha virado prostituta em Buenos Aires, que havia fugido com o palhaço do circo que passou na cidade naquele verão, que tinha virado lésbica e morava num subúrbio carioca com uma mulher-macho lá do Maranhão, e que juntas bebiam cachaça pura e desafiavam homens para a briga aos sábados à noite em um botequim de Madureira... Eu nunca soube, e ela não explicou onde esteve por todo aquele tempo, apenas chegou junto com uma chuvinha fina no meio da noite, e era uma terça-feira de Junho como aquela, quando ela bateu timidamente na porta, e sem falar nada foi entrando, tirando roupas, largando malas pelo caminho, até chegar ao quarto e deitar-se com um braço estendido na minha direção e seu cheiro de mulher queimando minhas narinas.
Sem forças, eu apenas concordei e deitei-me naquele colo de cujo perfume eu jamais havia esquecido, sugando aqueles seios que nunca deixaram de ser perfeitos, branquinhos, durinhos e sempre disponíveis, enquanto Diana, com voz de mamãe que embala um filho, me ninava com a cantilena que em meus sonhos eu me acostumei a ouvir todas as noites...
- Calma, calma, você já está bem grandinho, já é um homem...
*Mas essa terça, que havia começado tão banal, ganhou novos ares naquele início de noite, quando ouvi tímidas batidas na minha porta. Não seria um vendedor, porque esses gostam de campainhas, adoram o barulho que fazem e, sobretudo, adoram ouvir a própria voz em suas longas e chatas explicações sobre como aquele filtro japonês vai mudar a nossa vida... Mas enfim, não era um vendedor, era uma vizinha.
Diana era o nome dela, casada, devia ter seus trinta e cinco anos, talvez mais, talvez menos. Branquinha, magrinha, silenciosa, não era bonita, mas me causava um interesse esquisito, como se escondesse alguma coisa naqueles olhos que miravam a gente com força, mas sem dizer nada. Apenas cumprimentava, e limitava-se a dizer "como vai, tudo bem?" sem nunca deter-se para ouvir qualquer resposta. Usava sempre tons pastéis, e nunca era vista em festas ou coisa parecida. Não era religiosa, apesar da aparência. O marido eu conhecia de vista, deveria ter a mesma idade da moça, mas estava acabado pelo tempo, ou melhor, pela inevitável mistura de muito trabalho e muita cerveja. Os cabelos brancos e a barriga saliente destoavam dos seus olhos de rapaz. Tinham três filhos, uma escadinha de duas meninas e um menino. O sujeito trabalhava demais, era um fantasma bonachão que só aparecia aos domingos, quando passava a maior parte do dia sorrindo alto e pagando bebidas aos amigos, enquanto a mulher escorregava pelas sombras sem ser notada nem por ele nem pelos vizinhos.
Naquela tarde Diana bateu à minha porta e eu atendi meio surpreso. Dei-lhe boa tarde e fiquei calado esperando, a taça de vinho na mão, a sala escurecida pelas cortinas fechadas e o som aveludado de um blues que tocava no computador. Ela foi direta, e disse com um sorriso enigmático que nós precisávamos conversar. Senti sua mão sobre a minha e mal percebi quando ela me guiou até o sofá, fechando a porta com um movimento rápido, mas sem barulho. E ela prosseguiu:
- Você quer a minha filha. Eu vejo como vocês se olham.
Fiquei perdido por alguns segundos, depois me veio à lembrança a deliciosa Camila, que saía da adolescência ainda com olhos de menina, e provocava delírio quando nos encontrávamos no elevador e ela me olhava pelo espelho da lateral, fazendo caras e bocas usando aquela camiseta azul por onde dois morrinhos emergiam como frutas deliciosas escondidas sob uma fina camada de seda. Ela cumprimentava como a mãe, com olhos penetrantes, mas sem insinuar nada diretamente. Eu me contentava a um ou outro encontro por aí. Ela sim, frequentava alguns lugares por onde eu passava, e sempre que me via fazia questão de falar comigo, embora estivesse sempre rodeada de amigas e amigos.
- Mas eu nem falo direito com a sua filha!
- Mas quer, não quer?
- Quero o quê?
- A guria! Tu a queres pra ti!
- Olha, Dona Diana, eu não sei o que te disseram...
- A menina está grávida. (Disse isso de olhos baixos e voz resignada)
- O que você quer dizer com isso? (Suspeitando a cilada, bradei indignado, querendo levantar e mandar aquela louca para os quintos dos infernos, mas ela segurou minha mão com uma firmeza delicada e inescapável.)
- Me desculpe, eu sei que você é um rapaz respeitador, não é culpa sua. Mas nós estamos em uma situação complicada, e você tem quase a minha idade, não tem? Está solteiro e o tempo está passando, e minha filha é um mimo, uma iguaria, você não encontra mais isso por aí...
- A minha vida pessoal não é da sua conta. E eu nem penso em casar. Estou feliz aqui sozinho! (Disse isso mais pra mim mesmo do que pra ela, eu acho.)
- O Carlos mandou a garota embora, bateu nela e em mim. Ela não sabe quem é o pai. Aliás, sabe, mas não quer contar. Disse que não pode. É gente daqui, homem casado, entende?
- A senhora vai me desculpar, eu lamento muito tudo isso, mas...
E Diana tocou meus lábios com um dedo, e de alguma forma aquele toque me arrepiou demais. Calada ela me fitava balbuciando palavras que eu não compreendia direito. Seu rosto ficou vermelho e sua mão esquerda puxou um laço que descansava sobre seu ombro direito, e aquele vestido caiu como se fosse uma pena que se desprendesse de uma ave durante o voo. Ela pegou minhas mãos e colocou sobre um seio, e não precisou fazer força para que eu continuasse acariciando aquela beleza e logo já estava no seu colo como um recém-nascido.
- Você já está bem grandinho, já é um homem, já pode casar. Você tem tudo que uma mulher de verdade quer. (Dizia isso entre um gemido e outro, mas num tom maternal que destoava do discurso.)
- Diana, eu quero mesmo é você!
- Calma! Você já me tem! Mas tem que querer ter as duas e não uma só! Tem que ter compromisso!
E magicamente senti outra boca tomando meu corpo, e de olhos fechados sabia que era o carinho de Camila que eu estava recebendo naquela hora. E ficamos ali por algumas horas, num entrelaçamento estranho que algumas vezes parecia uma briga e outras vezes tinha a suavidade de um balé.
Eu não sabia mais onde começava uma pessoa e terminava outra, e fiquei ali na penumbra achando graça por não saber o que estava acontecendo, mas querendo que aquilo continuasse pra sempre. Eu acordava procurando quadris para me encaixar, e dormia assim, e acordava de novo sentindo bocas e mãos fazendo a ronda embaixo do edredom... E tudo era tão perfeito, tão ridículo, tão abominável, tão inacreditável, que eu perdi a noção do tempo, até ouvir o telefone tocar algumas vezes, e minutos depois a porta batendo, dessa vez com um estrondo, e a voz do Carlos sobre outras vozes menos conhecidas, e pisadas de coturno sobre o carpete, um chute no aquário que alagou a sala, o frio na barriga, um soco na têmpora e uma escuridão eterna como se eu fosse um náufrago em um oceano desconhecido onde para sempre é noite de inverno.
Casei-me com Camila, que se separou de mim quando os gêmeos, loirinhos e de olhos azuis, começaram a perguntar por que o papai tinha a cara preta e a mão branca. Eram filhos do meu melhor amigo, Pedro, dono do restaurante da esquina e casado com Renata, meu primeiro amor da adolescência. Os meninos, Thor e Odin, tinham cinco anos de idade quando os vi pela ultima vez. Foram embora com a mãe, que casou com um jornalista e foi morar em São Paulo, onde os dois trabalhavam. Carlos morreu de enfarte durante um jogo de futebol três anos antes, atrapalhando o churrasco e a cerveja dos amigos. Diana apareceu novamente em uma madrugada fria de Junho, após ter passado dez anos desaparecida. Disseram-me que teria ido buscar ajuda de parentes distantes em Berlim, que tinha virado prostituta em Buenos Aires, que havia fugido com o palhaço do circo que passou na cidade naquele verão, que tinha virado lésbica e morava num subúrbio carioca com uma mulher-macho lá do Maranhão, e que juntas bebiam cachaça pura e desafiavam homens para a briga aos sábados à noite em um botequim de Madureira... Eu nunca soube, e ela não explicou onde esteve por todo aquele tempo, apenas chegou junto com uma chuvinha fina no meio da noite, e era uma terça-feira de Junho como aquela, quando ela bateu timidamente na porta, e sem falar nada foi entrando, tirando roupas, largando malas pelo caminho, até chegar ao quarto e deitar-se com um braço estendido na minha direção e seu cheiro de mulher queimando minhas narinas.
Sem forças, eu apenas concordei e deitei-me naquele colo de cujo perfume eu jamais havia esquecido, sugando aqueles seios que nunca deixaram de ser perfeitos, branquinhos, durinhos e sempre disponíveis, enquanto Diana, com voz de mamãe que embala um filho, me ninava com a cantilena que em meus sonhos eu me acostumei a ouvir todas as noites...
- Calma, calma, você já está bem grandinho, já é um homem...
Créditos da imagem: Olhares.com
As Mãos, por Alicina
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