I Concurso Literário Benfazeja

“Deus está morto mas ele não sabe:” Lacan brinca com Bobók.

Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto - mesmo fundando a origem da função do pai em seu assassínio, Freud protege o pai – a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconsciente. (JACQUES LACAN, O Seminário livro 11, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, 1985, p.60)


Para compreender apropriadamente está passagem, temos de lê-la juntamente com outra tese de Lacan. Essas duas declarações dispersas deveriam ser tratadas como as peças de um quebra-cabeça a serem combinadas numa proposição coerente. Só sua interconexão (mais a referência ao sonho freudiano do pai que não sabe que está morto) (i) nos permite fazer uso da tese básica em sua totalidade:



Como vocês sabem seu filho Ivan o conduz pelas avenidas audaciosas por onde envereda o pensamento de um homem culto e em particular, ele diz, se Deus não existir... - Se Deus não existir, diz o pai, então tudo é permitido. Noção evidentemente ingênua, pois, nós, analistas, sabemos muito bem que se Deus não existir então absolutamente mais nada é permitido. Os neuróticos nos demonstram isto todos os dias. (JACQUES LACAN, O Seminário livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise , Rio de janeiro, 1985, p.165).

O ateu moderno pensa saber que Deus está morto, o que ele não sabe é que, inconscientemente, continua a acreditar em Deus. O que caracteriza a modernidade não é mais a figura típica do crente que abriga secretamente dúvidas sobre sua crença e se entrega a fantasias transgressivas; hoje temos, ao contrário, um sujeito que se apresenta como um hedonista tolerante dedicado à busca da felicidade, e cujo inconsciente é o local das proibições: o que é recalcado não são desejos ou prazeres ilícitos, mas as próprias proibições. “Se Deus não existe, tudo é proibido” significa que quanto mais você se percebe como um ateu, mais seu inconsciente é dominado por proibições que sabotam seu gozo. (Não deveríamos nos esquecer de suplementar esta tese com seu oposto: se Deus existe, tudo é permitido, - não é essa a mais sucinta definição da difícil situação do fundamentalista religioso? Para ele, Deus existe plenamente, ele se percebe como Seu instrumento, razão por que pode fazer tudo quanto queira: seus atos são antecipadamente redimidos, uma vez que expressam a vontade divina...)

Em vez de trazer liberdade, a queda da autoridade opressiva dá origem assim a novas e mais severas proibições. Como explicar esse paradoxo? Pense na situação que a maioria de nós conhece de nossa infância: a pobre criança que, numa tarde de domingo, tem de visitar a avó em vez de ter permissão para brincar com os amigos. A mensagem do pai antiquado e autoritário para a criança relutante teria sido: “Não me importa o que você sente. Simplesmente cumpra o seu dever, vá à casa da sua avó e comporte-se lá!” Nesse caso, a situação da criança não é nada má: embora obrigada a fazer algo que claramente não quer, conservará sua liberdade interna e a capacidade de (mais tarde) se rebelar contra a autoridade paterna. Muito mais difícil teria sido a mensagem de um pai “não autoritário” pós-moderno: “Você sabe como sua avó o ama! Mesmo assim, não quero obrigá-lo a nada – vá apenas se realmente quiser!” Todas as crianças que não sejam tolas (isto é, a maioria delas) reconhecerão imediatamente a armadilha dessa atitude permissiva: sob a aparência da livre escolha há uma exigência ainda mais opressiva que aquela formulada pelo pai autoritário tradicional, a saber, uma injunção implícita não só de visitar a vovó, mas de fazê-lo voluntariamente, pela livre vontade da criança. Uma falsa livre escolha como essa é a injunção obscena do supereu: ela priva a criança até de sua liberdade interior, prescrevendo não só o que deve fazer, mas o que deve querer fazer.

Durante décadas, uma piada clássica circulou entre lacanianos para exemplificar o papel fundamental do conhecimento do Outro; um homem que acredita ser um grão de semente é levado para um hospital psiquiátrico onde os médicos fazem o que podem para convencê-lo de que ele não é um grão de semente, mas um homem. Quando ele está curado (convencido de que não é um grão de semente, mas um homem) e lhe permitem deixar o hospital, imediatamente volta tremendo. Há uma galinha perto da porta e ele tem medo de que ela vá comê-lo. “Meu caro rapaz”, diz o médico, “você sabe muito bem que não é um grão de semente, mas um homem”. “Claro que eu sei disso”, responde o paciente, “mas a galinha sabe?” Aí reside a verdadeira aposta do tratamento psicanalítico: não é suficiente convencer o paciente sobre a verdade inconsciente de seus sintomas – o próprio inconsciente deve ser levado a assumir essa verdade.

O mesmo se aplica à teoria marxista do fetichismo da mercadoria:

Uma mercadoria parece á primeira vista uma conta extremamente óbvia, trivial. Mas sua análise revela que ela é algo de muito complicado, abundando em sutilezas metafísicas e refinamentos teológicos. (Karl Marx. O Capital, vol.I Harmondsworth, Penguin Bobók, p.163).

Marx não afirma, à maneira usual do discurso do Iluminismo, que a análise critica deveria mostrar como uma mercadoria – o que parece uma entidade teológica misteriosa – emergiu do processo “comum” da vida real: afirma, ao contrário, que a tarefa da análise crítica é revelar as “sutilezas metafísicas e refinamentos teológicos” no que parece à primeira vista apenas um objeto comum. O fetichismo da mercadoria (nossa crença de que a mercadoria são objetos mágicos, dotado de um poder metafísico inerente) não está situado em nossa mente, na maneira como percebemos (ou distorcemos) a realidade, mas em nossa própria realidade social. Em outras palavras, quando um marxista encontra um sujeito burguês imerso no fetichismo da mercadoria, a censura que o marxista lhe faz não é: “A mercadoria pode lhe parecer um objeto mágico dotado de poderes especiais, mas na realidade é apenas uma expressão refinada entre pessoas”, mas sim: “Você pode pensar que a mercadoria lhe parece como uma simples corporificação de relações sociais (que, por exemplo, dinheiro é apenas uma espécie de vale que lhe dá direito a uma parte do produto social), mas não é assim que as coisas realmente lhe parecem ser. Em sua realidade social, por meio de sua participação na troca social, você revela o estranho fato de que uma mercadoria realmente lhe parece ser um objeto mágico dotado de poderes especiais.” Podemos imaginar um burguês fazendo um curso de marxismo onde aprende sobre o fetichismo da mercadoria. O professor lhe diz: “Mas você sabe como são as coisas, que as mercadorias são apenas expressões de relações sociais, que não há nada de mágico nelas”! ao que o aluno responde: “Claro que sei tudo isso, mas as mercadorias com que estou lidando parecem não saber!” Era isso que Lacan tinha em vista com sua afirmação de que a verdadeira fórmula do materialismo não é “Deus não existe”, mas “Deus é inconsciente”. Basta lembrar o que, numa carta a Max Brod, Milena Jesenska escreveu sobre Kafka:

Acima de tudo, coisas como dinheiro, bolsa de valores, a administração da moeda estrangeira, máquina de escrever, são para ele totalmente enigmáticas (o que efetivamente são, apenas para nós, os outros). (Citado de Jana Cerna, Kafka’s Milena. Evanston, Northwestern University Press,1993, p. 178).


Aqui Jesenska toca na fibra marxista de Kafka: um sujeito burguês sabe muito bem que não há nada de mágico no dinheiro, que dinheiro é apenas um objeto que representa um conjunto de relações sociais, mas apesar disso age na vida real como se acreditasse que o dinheiro é algo de mágico. Isto, portanto, nos dá um insight  preciso do universo de Kafka: ele é capaz de experimentar diretamente essas crenças que nós, “pessoas normais”, rejeitamos. A “mágica” de Kafka é o que Marx chamava de a “excentricidade teológica” das mercadorias. Se, outrora, fingimos publicamente acreditar, enquanto no fundo éramos céticos ou até mesmos nos dedicávamos à zombaria obscena de nossas crenças públicas, hoje tendemos a professar publicamente nossa atitude cética/hedonista/relaxada, quando dentro de nós permanecemos assombrados por crenças e proibições severas. E é contra esse pano de fundo que podemos situar o erro de Dostoievski. Em seu conto mais estranho “Bobók”, que até hoje desorienta seus interesses. Dostoievski forneceu a versão mais radical da ideia de que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Essa bizarra “fantasia mórbida” é simplesmente um produto da doença mental do próprio autor? Ou um sacrilégio cínico, uma tentativa abominável de parodiar a verdade da Revelação divina tal como exposta na Bíblia Sagrada?(ii)  Em “Bobók”, um literário alcoólatra chamado Ivan Ivánitch está sofrendo alucinações auditivas:

Começo a ver e ouvir umas coisas estranhas. Não são propriamente vozes, mas é como se estivesse alguém ao lado: “Bobók, bobók, bobók, bobók!”
Que bobók é esse? Preciso me divertir.
Saí para me divertir; acabei num enterro.
(Esta e as próximas citações de Dostoievski, ”Bobók”, trad. Paulo Bezerra, in Paulo Bezerra, Dostoievski: Bobók (Trad. e analise do conto), São Paulo, Ed.34, 2005).

Ele assiste ao funeral de uma distância relativa. Depois se deixa ficar no cemitério, onde inesperadamente entre ouve a conversa cínica e frívola dos mortos:

E como foi acontecer que de repente comecei a ouvir coisas diversas? A princípio não prestei atenção e desdenhei. Mas a conversa continuava. E eu escutei: sons surdos, como se as bocas estivessem tapadas por travesseiros; e, a despeito de tudo, nítidos e muito próximos. Despertei, sentei-me e passei a escutar atentamente.

Ele descobre a partir dessas conversas que a consciência humana continua por algum tempo após a morte do corpo físico, durando até a total decomposição, o que as pessoas mortas associam com a horrível onomatopéia gorgolejante “bobók”. Uma delas comenta:

O principal são os dois ou três meses de vida e, no fim das contas, bobók. Sugiro que nós todos passemos esses dois meses da maneira mais agradável possível, e para tanto todos nos organizemos em outras bases, Senhores! Proponho que não nos envergonhemos de nada.

Os mortos compreendendo sua completa liberdade de condições terrenas, decidem se entreter contando histórias de sua existência durante suas vidas:

Mas por enquanto eu quero que não se minta. È só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois a vida e mentira são sinônimas; mas, com o intuito de rir, aqui não vamos mentir. Aos diabos, ora, pois o túmulo significa alguma coisa! Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada, Serei o primeiro de todos a contar a minha história. Eu, sei sabei, sou dos sensuais. Lá em cima tudo isso estava preso por cordas podres. Abaixo as cordas, e vivemos esses dois meses na mais desavergonhada verdade! Teremos as roupa, dispamo-nos!
- Dispamo-nos, dispamos- nos! – gritaram em coro.

O terrível fedor que Ivan Ivánitch sente não é o cheiro de corpos em decomposição, mas um fedor moral. Subitamente Ivan Ivánitch espirra, e os mortos silenciam; o encantamento foi quebrado e estamos de volta à realidade comum:

E eis que de repente espirrei. Aconteceu de forma súbita e involuntária, mas o efeito foi surpreendente tudo ficou em silêncio, exatamente como no cemitério, desapareceu como um sonho. Fez-se um silêncio sepulcral. Não acho que tenham sentido vergonha de mim: haviam resolvido não se envergonhar de nada! Esperei uns cinco minutos e... nem uma palavra, nem um som.


Mikhail Bakhtin viu em “Bobók” a quintessência da arte de Dostoievski, um microcosmo de toda a sua produção artística que expressa seu tema central: a ideia de que “tudo é permitido” se não houver nenhum Deus e nenhuma imortalidade da alma. No carnavalesco mundo da vida “entre duas mortes”, todas as regras e responsabilidades estão suspensas, os mortos-vivos podem pôr de lado qualquer vergonha, agir de maneira insana e rir da honestidade e da justiça. O horror ético dessa visão é que ela expõe o limite da ideia de “verdade e conciliação”: e se houver alguém para quem confessar publicamente seus crimes não só não desencadeia qualquer catarse ética como até gera um prazer obsceno adicional?

A situação de “não mortos” dos finados opõe-se à do pai em um dos sonhos relatado por Freud, que continua vivendo (no inconsciente do sonhador) porque não sabe que está morto. Os finados na história de Dostoievski têm plena consciência de que estão mortos – é essa consciência que lhes permite pôr de lado toda a vergonha. Qual é então o segredo que eles escondem de todos os mortais? Em “Bobók” não ouvimos nenhuma das verdades desavergonhadas- os espectros dos mortos se retiram exatamente no momento em que iriam enfim “cumprir o prometido” ao ouvinte e contar seus segredos sujos. Quem sabe a solução não é a mesma do final da parábola da porta da lei de O processo , de Kafka, quando, em seu leito de morte, o homem do campo que passou anos esperando para ser admitido pelo guardião fica sabendo que a porta estava ali unicamente para ele? E se, também em “Bobók”, todo o espetáculo dos cadáveres prometendo revelar seus segredos mais sujos for encenado apenas para atrair e impressionar o pobre Ivan Ivánitch? Em outras palavras, e se o espetáculo da “veracidade desavergonhada” dos cadáveres viventes for apenas uma fantasia do ouvinte – um ouvinte religioso ainda por cima? Não deveríamos esquecer que a cena que Dostoievski pinta não é a de um universo ímpio. Os cadáveres falantes experimentam sua vida após a morte (biológica), o que é em si mesmo uma prova da existência de Deus – Deus está aqui, mantendo-os vivos após a morte, razão por que eles podem dizer tudo.

O que Dostoievski encena é uma fantasia religiosa que não tem nada a ver com uma posição verdadeiramente ateia – embora ele a encene para ilustrar o medonho universo ímpio em que “tudo é permitido”. Qual é então a compulsão que impede os cadáveres a se dedicar à sinceridade obscena de “contar tudo”? A resposta lacaniana é clara: supereu- não como agência ética, mas como a injunção obscena a gozar. Isso fornece o insight sobre o que é talvez o segredo supremo que os finados querem ocultar do narrador: seu impulso a contar sem qualquer vergonha toda a verdade não é livre, a situação não é “Agora podemos finalmente dizer” (e fazer) tudo que queríamos, mas éramos impedidos pelas regras e restrições de nossas vidas normais”. Em vez disso, seu impulso é sustentado por um imperativo cruel do supereu: os espectros têm de se dedicar às suas atividades obscenas. Se, no entanto, o que os não mortos ocultam do narrador for a natureza compulsiva de seu gozo obsceno, e se estivermos lidando com uma fantasia religiosa, então há mais uma conclusão a tirar: que os não mortos estão sob o encantamento compulsivo de um Deus perverso. Aí reside a mentira suprema de Dostoievski: o que ele apresenta como uma fantasia aterrorizante de um universo ímpio é efetivamente uma fantasia gnóstica de um Deus perverso, obsceno. Uma lição mais geral deveria ser extraída deste caso:? Quando autores religiosos condenam o ateísmo, constroem com demasiada frequência uma visão do “universo ímpio” que é uma projeção do reverso reprimido da própria religião.

Usei aqui o termo “gnosticismo” em seu significado preciso, como a rejeição de uma característica fundamental do universo judaico-cristão a exterioridade da verdade. Há um argumento esmagador em prol da íntima ligação entre judaísmo e psicanálise: em ambos os casos, o foco incide sobre o encontro traumático com o abismo os casos, o fofo incide sobre o encontro traumático com o abismo do Outro desejante, com a figura aterradora de um Outro impenetrável que quer alguma coisa de nós, mas não deixa claro que coisa é essa - o encontro do povo judeu com seu Deus cujo chamado impenetrável perturba a rotina da existência humana diária: o encontro da criança com o enigma do gozo do Outro neste caso, parental). Em claro contraste com esta noção judaico-cristã da verdade como baseada num encontro traumático externo (o chamado divino ao povo judeu, o chamado de Deus a Abrão, a raça inescrutável – todos totalmente incompatíveis com nossas qualidades mais íntimas, inclusive com nossa ética inata), tanto o paganismo quanto o gnosticismo (a reinscrição da postura judaico-cristã outra vez no paganismo) concebem o caminho para a verdade como a “jornada interior” da autopurificação espiritual, como o retorno da pessoa ao seu verdadeiro eu interior, a “redescoberta” do eu. Kierkegaard estava certo quando mostrou qua a posição central na espiritualidade ocidental é entre Sócrates e Cristo: a jornada interior de recordação versus o renascimento através do choque do encontro externo. Dentro do campo judaico-cristão, o próprio Deus é o atormentador supremo; o intruso que perturba brutalmente a harmonia de nossas vidas.

Traços de gnosticismo são claramente discerníveis até na ideologia atual do ciberespaço. O sonho do ciberespaço do self liberado de toda a vinculação a seu corpo natural mediante sua transformação numa entidade virtual que flutua de uma corporificação contingente e temporária para outra é a realização científico-tecnológica do sonho gnóstico do self se livrando da determinação e da inércia da realidade material. Não admira que a filosofia de Leibniz seja uma das referências filosóficas predominantes dos teóricos do ciberespaço: Leibniz concebeu o universo como composto de “mônadas”, substâncias microscópicas, cada uma das quais vive e,m seu próprio espaço interior fechado, sem nenhuma janela para seus arredores. Não podemos deixar de perceber a estranha semelhança entre a “monadologia” de Leibniz e a comunidade emergente do ciberespaço em que a harmonia global e o solipsismo coexistem estranhamente. Isto é, não é verdade que nossa imersão no ciberespaço avança de mãos dadas com nossa redução a uma mônada leibniziana que, embora “sem janelas” que se abram diretamente para a realidade externa, espelha em si mesma todo o universo? Cada vez mais, somos mônadas sem nenhuma janela direta para a realidade, interagindo sozinhos com a tela do computador, encontrando apenas simulacros virtuais, e, no entanto imersos mais do que nunca na rede global, comunicando-nos sincronicamente com o globo inteiro.

O espaço em que os (não) mortos podem falar sem restrições morais, tal como imaginado por Dostoievski, prefigura esse sonho do ciberespaço gnóstico. A atração do ciberespaço é que, como estamos lidando apenas com parceiros virtuais, não há abuso. Esse aspecto do ciberespaço – a ideia de um espaço em que, porque não estamos interagindo diretamente com pessoas reais, ninguém sofre abuso e somos livres para dar rédea solta às nossas mais sujas fantasias – encontrou sua expressão máxima numa proposta que voltou à tona recentemente em alguns círculos nos Estados Unidos: “repensar-se” os direitos dos necrófilos (aqueles que desejam fazer sexo com corpos mortos). Por que eles deveriam ser privados disso? Foi lançada a ideia de que, assim como pessoas autorizam que seus órgãos sejam usados para finalidades médicas no caso de sua morte súbita, deveria lhes ser permitido também autorizar que seus corpos fossem entregues a necrófilos. Esta proposta é a exemplificação perfeita de como a postura antiabuso politicamente correta realiza a antiga intuição de Kierkegaard de que o único vizinho bom é um vizinho morto. Um vizinho morto- um cadáver – é o parceiro sexual ideal de um sujeito “tolerante” que tenta evitar qualquer abuso por definição, um corpo morto não goza, portanto também é eliminada, para o sujeito que brinca com o cadáver, a ameaça perturbadora do gozo excessivo.

“Abuso” é mais uma dessas palavras que, embora pareçam se referir a um fato claramente definido funciona de maneira profundamente ambígua e perpetram uma mistificação ideológica. Em seu nível mais elementar, o termo designa fatos brutais como estupro, espancamento e outros modos de violência social que, é claro, devem ser implacavelmente condenados. No entanto, no uso corrente do termo “abuso”, esse sentido fundamental transforma-se imperceptivelmente na condenação de qualquer proximidade excessiva com outro ser humano real, com seus desejos, medos e prazeres. Dois temas determinam a atitude tolerante e liberal de hoje em relação aos outros: respeito pela alteridade e abertura em relação a ela e o medo obsessivo do abuso. O outro é ótimo, contanto que sua presença não invada, contanto que o outro não seja realmente o outro. A tolerância coincide com seu oposto: meu dever de ser tolerante para com o outro significa efetivamente que eu não deveria chegar perto demais dele, não deveria invadir seu espaço – em suma, que eu deveria respeitar sua tolerância em relação a minha proximidade excessiva. Isto é o que cada vez mais emerge como o “direto humano” central na sociedade capitalista tardia – o direito de não sofrer abuso, i.e., de ser mantido a uma distancia segura dos outros.

Os tribunais na maioria das sociedades ocidentais impõem agora uma penalidade quando uma pessoa processa outra por importuná-la (assediando-a ou fazendo propostas sexuais injustificadas): o assediador pode ser legalmente proibido de se aproximar deliberadamente da vítima, devendo permanecer a uma distância de mais de X metros. Por mais necessária que seja essa medida, há nela, não obstante, algo de defesa contra o real traumático do desejo do outro: não é óbvio que há algo horrivelmente violento em exibir abertamente nossa paixão por e para um outro ser humano? A paixão, por definição, fere seu objeto, e mesmo que seu alvo concorde de bom grado em ocupar esse lugar, ele não pode fazê-lo sem um momento de estupefação e surpresa. Ou, para alterar mais uma vez o dito de Hegel de que “o mal reside no próprio olhar que percebe o mal por toda parte à sua volta”: a intolerância para com o Outro reside no próprio olhar que percebe todos os que o rodeiam como Outros intolerantes e invasores.

Deveríamos ser especialmente desconfiados com relação à obsessão pelo assédio sexual de mulheres quando homens a expressam: mal arranhamos a superfície “pró-feminista” do politicamente correto e logo encontramos o velho mito macho-chauvinista das mulheres como criaturas indefesas que precisam de proteção não só contra homens assediadores, mas em última instância contra si mesmas. Para o macho chauvinista que se faz passar por feminista, o problema não é que elas serão incapazes de se proteger, mas que podem começar a gostar de ser sexualmente assediadas – que a intrusão masculina desencadeie nelas uma explosão autodestrutiva de gozo sexual excessivo. Em suma, aquilo em que deveríamos nos concentrar é que tipo de noção de subjetividade está implicada na obsessão com os diferentes modos de assédios: a subjetividade “narcísica” para a qual tudo que os outros fazem( dirigir-se a mim, olhar para mim...) é potencialmente uma ameaça, de modo que, como disse Sartre há muito tempo,”l’enfer, c’est les autres”( o inferno são os outros). Com relação à mulher como um objeto de perturbação, quanto mais ela está coberta, mais nossa atenção (masculina) concentra-se nela e no que se encontra sob o véu. O talibã não apenas obrigou as mulheres a andar em público completamente cobertas, como as proibiu também de usar sapatos com saltos excessivamente sólido (metal ou madeira). E ordenou-lhes andas sem produzir estalos muito altos que pudessem distrair os homens, perturbando sua paz interior e dedicação. É esse o paradoxo do gozo excessivo em sua forma mais pura: quanto mais o objeto é velado, mais intensamente perturbador é o mínimo traço de seu resíduo.

Esse é o ponto com a crescente proibição do fumo. Primeiro, o fumo foi proibido em todos os escritórios, depois nos aviões, depois nos restaurantes, depois nos aeroportos, depois nos bares, depois nos clubes privados, depois em alguns campi num raio de 50 metros em torno da entrada dos prédios, depois – num caso único de censura pedagógica, lembrando a famosa prática stalinista de retocar as fotos da nomenklatura – o Serviço Postal dos estados unidos removeu o cigarro de selos com fotos do guitarrista de blues Robert Johnson e de Jackson Pollock. Essas proibições têm por alvo o gozo excessivo e arriscado do outro, corporificado no ato de acender “irresponsavelmente” um cigarro e tragar profundamente com descarado prazer (em contraste com yuppies à La Clinton que o fazem sem tragar, ou praticam sexo sem real penetração, ou comem comida sem gordura) – de fato, como disse Lacan, Quando Deus está morto, nada mais é permitido.

Um dos tópicos característico da crítica conservadora é que, em nossa Era permissiva, faltam às crianças limites firmes ou proibições. Essa falta as frustra, impedindo-as de um excesso para outro. Somente um limite firme fixado por alguma autoridade simbólica pode garantir estabilidade e satisfação – satisfação produzida através da violação da proibição, da transgressão do limite. Para elucidar a maneira como a negação funciona no inconsciente, Freud referiu-se à reação de um de seus pacientes a um sonho seu centrado numa mulher desconhecida:

“Seja quem for essa mulher em meu sonho, eu sei que não é a minha mãe.” Uma clara prova, para Freud, de que a mulher era a sua mãe. Não há maneira melhor de caracterizar o paciente típico de hoje que imaginar sua reação oposta ao mesmo sonho: “Seja quem for essa mulher em meu sonho, tenho certeza de que isso tem alguma coisa a ver com a minha mãe!”

Tradicionalmente, esperava-se que a psicanálise permitisse ao paciente superar os obstáculos que o privavam de seu acesso à satisfação sexual normal: se você não consegue isso, vá ao analista que lhe permitirá ficar livre de suas inibições. Hoje, no entanto, somos bombardeados de todos os lados por diferentes versões da injunção “Goze!” desde o gozo direto no desempenho sexual ao gozo na realização profissional ou no despertar espiritual. O gozo hoje funciona efetivamente como um estranho dever ético indivíduos sentem-se culpados não por violar inibições morais entregando-se a prazeres ilícitos, mas por não serem capazes de gozar. Nessa situação, a psicanálise é o único discurso em que você tem permissão para não gozar – você não é proibido de gozar, apenas é liberado da pressão para fazê-lo.

Como Ler Lacan
SLAVOJ ZIZEK
Tradução Maria Luiza X. de A. Borges
Revisão técnica Marco Antonio Coutinho Jorge
Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2010

Notas
(i) De modo que, combinado este sonho com aquele que interpretaremos no Capítulo 3 sobre o filho morto que aparece para o pai com o terrível apelo, “Pai, não vês que estou queimando?”, a afirmação de Lacan pode também ser parafraseada como a censura ao Deus Pai: “Pai, não vês que estás morto?”

(ii) O princípio da história já envolve uma estranha negação de Je este um autre de Rimbaud: “Este não sou eu, este é uma pessoa inteiramente diferente.”

Um comentário:

  1. Acho muito instrutivo!!!! mas mesmo assim acho que há limites para os desejos!!!!
    Tento seguir a bíblia e acredito que Jesus é filho de Deus!!!! pelo menos no Eu acredito que Jesus é filho de Deus e estou convencido que na maior parte do meu self!!!! mas depois de ler, embora não compreendendo tudo, pelas coisas que faço e que digo: o meu inconsciente é pecado.
    é certo tenho uma doença grave: sou borderline; mas não sei até que ponto isso afeta a minha crença.

    Abraços

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