I Concurso Literário Benfazeja

Fetiches e bandeiras




Conto, por Gil Rosza.

A primeira vez que se encontraram foi em 1997, quando ele fez um elogio satiríaco à bunda de uma das amigas dela. Aparentemente por causa disso, a coisa acabou virando na noite seguinte, um ruidoso protesto na porta do boteco onde ele e os companheiros do curso de medicina costumavam tomar uns pileques.

A indignação dela evoluiu para um estágio mais ideológico, com quebra de CDs do É o Tchan e queima ritual de pôsteres da Carla Peres, além de reunir uma multidão em frente ao decrépito "pé-sujo" para vê-la de cima duma mesa fazer um discurso furioso contra o que chamou de “culto imbecilizante de bundas balançantes”. Para fundamentar o ato de repúdio, citou de Olga Benário a Rita Lee, deixando claro com aquilo, que somado o apoio maciço das amigas, inclusive da tal que teve o traseiro ovacionado, pertenciam a uma elevada casta de jovens mulheres que se recusavam serem vistas como um "pedaço de carne". No fundo, ele suspeitava que a verdadeira razão de tudo aquilo nada tinha a ver com um suposto fervor neofeminista, mas com o fato dela não ter sido incluído na "ode aos glúteos". A certeza só veio mesmo uma década e meia mais tarde, quando se encontraram pela segunda vez, coincidentemente na clínica onde ele era um dos sócios.

Ele a reconheceu prontamente, ao passo que ela, sequer suspeitou que aquele careca bigodudo, um pouco acima do peso, pudesse ser o antigo desafeto da época da faculdade. Pelo formulário, ficou sabendo um pouco mais sobre ela. Advogada, 40 anos, casada. Soube também que além de profundamente insatisfeita com a própria bunda, ela estava muitíssimo disposta a investir uma pequena fortuna numa cirurgia para implantar 400ml de silicone em cada lado.

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Créditos da imagem: Associated Press

Um comentário:

  1. Verdade verdadeira. Há N exemplos desses por aí. Mas não com este modo tão peculiar de contar uma estória.
    Saudade docê.

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