Percursos e subjetividades em 'Tempo de Agonia'
Ângela Beatriz de Carvalho Faria*
O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em
concorrência, a memória e a história, porque nem
sempre a história consegue acreditar na memória, e a
memória desconfia de uma reconstituição que não
coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos
de vida, de justiça, de subjetividade).
Beatriz Sarlo1
concorrência, a memória e a história, porque nem
sempre a história consegue acreditar na memória, e a
memória desconfia de uma reconstituição que não
coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos
de vida, de justiça, de subjetividade).
Beatriz Sarlo1
* UFRJ.
Em Percursos (do luachimo ao luena), de Wanda Ramos (1980) e Corpo colonial, de Juana Ruas (1981), olhares pré-inaugurais tornam-se cognoscentes e revelam sujeitos em processo de reconfiguração identitária, no período de ocupação das colônias portuguesas ultramarinas, respectivamente, em África (Angola) e Ásia (Timor). Ao sugerirem uma outra ordem cultural do Império português que ruía, os relatos identitários fazem emergir vozes silenciadas e o espaço do imaginário e da reflexão – impensável pela censura salazarista na época referida. A textura do vivido, em condições extremas e excepcionais, leva-nos a questionar até que ponto, ao proceder à representação de seu percurso existencial, o “eu textual põe em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa máscara”. “Como na “ficção em 1ª pessoa, tudo o que uma “autobiografia” consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz “eu”, toma-se como objeto”(ii). Implícita a esta questão, encontra-se a crítica à subjetividade e à representação, uma vez que todo relato autobiográfico se desenvolve buscando persuadir, como já nos apontavam Paul de Man(iii) e Derrida(iv). Este viés crítico, por sua vez, insinua que “o sujeito que fala é uma máscara ou uma assinatura, ao não pretender “ser sujeito verdadeiro do seu verdadeiro relato”(v). Partindo-se desse princípio, constata-se que as operações táticas da memória revestem-se de esquecimentos, lembranças, omissões, persuasão, seleção de fatos ou detalhes, passíveis de trazer o passado fantasmático e traumático para a cena do presente.
Os discursos da memória e da História, divulgados em períodos pós-ditatoriais, assinalam que “lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência de Estado”(vi), como tão bem afirma Beatriz Sarlo, em Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
Embora saibamos que “qualquer relato da experiência é interpretável”, em decorrência da desconfiança em relação à autenticidade da memória, interessa-nos destacar, nas obras ficcionais acima citadas, os processos e atores sociais que intervêm na formalização e na consolidação da memória coletiva, destacando-se a importância dos relatos testemunhais para o afloramento das memórias subterrâneas, reprimidas em determinado contexto, pelas imposições da ordem social. Tal reordenamento ideológico e conceitual da sociedade do passado e de seus personagens, que se concentra nos direitos e na “verdade” da subjetividade, sustenta grande parte da iniciativa reconstituidora das décadas de 60 e 70”(vii). Na ficção portuguesa contemporânea, especificamente, deparamo-nos com determinadas vozes marginalizadas ou silenciadas pela repressão vigente, no período Pré-Revolução de Abril de 1974, que refletem sobre a dimensão do público e do privado, ao rememorarem a sua experiência afetiva e política, no contexto do colonialismo português. Assim, em Percursos (do luachimo ao luena) e em Corpo colonial nos são reveladas, anos depois, determinadas dimensões subjetivas, a partir das experiências das mulheres, esposas dos alferes, sitiadas nos aquartelamentos ou messes, no período da guerra colonial. Ambas darão o seu testemunho, através de modos de subjetivação do narrado — relato em 1ª pessoa ou discurso indireto livre —, visando “conservar a lembrança ou reparar uma identidade machucada”:
Há, no entanto, uma sutil diferença no que se refere à temporalidade da “verdade presencial ancorada no corpo e na voz”, uma vez que a primeira obra citada baseia-se em reminiscências, ordenadas em forma de escrita, e, a segunda registra a experiência comunicável do sujeito no momento exato em que vivencia os acontecimentos, embora a sua voz possua a mediação de um narrador. De qualquer modo, em ambas, o pacto referencial pode ser ilusório, pois nada garante que haja uma relação verificável entre um eu textual e um eu da experiência vivida. Como nos lembra Paul de Man, em seus estudos sobre Rousseau (reunidos em Alegorias da leitura), a consciência de si não é uma representação, mas a “forma de uma representação”, a figura que indica que uma máscara (no sentido de persona, do teatro clássico) só pode ser julgada por sua apresentação de um estado de “sinceridade”, o que faz com que o princípio de verdade se desvaneça. Há uma máscara que afirma dizer sua verdade de máscara: de vingador, de vítima, de sedutor, de seduzido(ix).
Além da possível máscara, capaz de recobrir as nuances, inerentes à interioridade do sujeito, há, também, a máscara ideológica das instituições, agentes e monumentos representantes do fascismo, visando encobrir as barbáries perpetradas em África, desculpabilizando-os no teatrum mundi, através de simulacros, ardilosamente arquitetados. Um dos exemplos mais contundentes encontra-se em A costa dos murmúrios, romance português contemporâneo, da autoria de Lídia Jorge, já analisado por nós, em Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea. Convém lembrar que esse romance, além disso, configura uma síntese da sexualidade e da linguagem como práticas libertárias do corpo – tema recorrente na ficção de autoria feminina, como veremos.
Após essas reflexões iniciais, passaremos a nos deter nas duas narrativas ficcionais que privilegiam percursos e subjetividades em “tempo de agonia” e resultam claramente de vivências e experiências individuais.
Percursos (do luachino ao luena), de Wanda Ramos (Prêmio de Ficção de 1980 atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores, com Apoio da Secretaria de Estado da Cultura), revela a reconfiguração identitária do sujeito feminino, construída a partir de 46 reminiscências superpostas, registradas através da “renda da escrita” ou do “novelo decantado lá para trás”10. Ordenadas de forma descontínua, resgatam um passado reproduzido livremente pela memória ou pela recordação (o trazer de volta ao coração), sem a rigidez de um tempo textual linear. A linguagem a-sintática, fluida e dispersa sublinha a cartografia afetiva e histórica, delimitada pelos rios luachimo e luena — “rios estes de áfrica que ainda lhe ensopam a memória, que nunca mais viu alguns como esses, nem poderia”11 e que terminam por marcar uma trajetória rumo a um espaço livre, como tão bem apontou Carina Faustino dos Santos, em A escrita feminina e a guerra colonial. Trata-se do percurso existencial (infância, adolescência e idade adulta) de uma menina branca, filha de colonos portugueses em África, durante as décadas de 60 e 70. Ser descentrado e de fronteiras, transita entre Angola e Portugal (“puto seria sempre um país inexistente como outro qualquer, como a China por exemplo, mancha na geografia de papel, contorno rectangular irregular com veiozinhos e veias como de resto a própria angola, o era, salvo o rio dali, o luachimo que já apalpara”(xii)), e, vivencia a situação dilemática do colonizador versus colonizado. Sempre “remetida à diária solidão de filha transitoriamente única, sonsa na submissão aos pais, rebelde por dentro até lhe doer o corpo e se lhe esgotarem em monólogos as impaciências e fervores”(xiii), acaba por tornar-se esposa de um alferes-médico em um quartel em Cassamba e, ao descobrir que o marido encontrava-se “no frágil limiar do perverso,do maligno, enfim, do patológico”(xiv), propõe a dissolução conjugal para iniciar um “caminho de perdas múltiplas e subseqüentes reconquistas, apagar repetidamente a ardósia em que iam escrevendo-se novos desvarios e renovadas decepções”(xv). Convém observar que o sujeito da enunciação, singularmente, grafa os topônimos com minúsculas, relativizando-os; identifica as personagens com quem contracena apenas pelas iniciais (não é à toa que o marido, mantenedor de um “esquema de dominação perversamente segregado no côncavo da falsa liberalidade” e possuidor de “um ferrão sob a mansidão do discurso”(xvi), é referenciado como S., em uma analogia com Salazar), ou, ainda pelo grau de parentesco, hierarquicamente estabelecido na cena social (mãe, pai, irmã, avô, avó). O próprio sujeito feminino que assume o discurso das reminiscências é destituído de nome, o que insinua a ausência de uma identidade própria, no período da sujeição colonial, ou uma identidade em crise. A necessidade catártica de libertação, face a um passado traumático, leva-o a um processo de transgressão através da representação imaginária, passível de construir similaridades entre o “consumir-se enfim a euforia da escrita” e o consumir-se da relação amorosa. No capítulo denominado “Hiato”, por exemplo, lemos:
“Hiato”, portanto, evidencia o processo auto-reflexivo e auto-referencial da metaficção, o “lançar-se à água das frases” como se guarda os rios na memória; insinua que o “viver” é feito de “caminhos insuspeitos e quantas vezes sobrepostos”; evidencia a suspensão do sujeito em “hiatos” — “recipientes de vidas outras ou fragmentos delas”(xvii); — mostra a lacuna, o intervalo, a falha, o desencontro e a separação de iguais; alude a si próprio, ao processo de criação intertextual e ao “baptismo de áfrica a sério, essa que não é cidades nem vidas, riquezas ou misérias, revoltas e lutas, mas tão só a ausência, a imobilidade definitiva do espaço que o silêncio atravessa como gume”(xviii).
Após “Hiato”, surge “Interlúdio”, considerado um intermédio ou entreato; trecho de música instrumental que se intercala entre as várias partes de uma longa composição, do tipo ópera, missa ou cantata:
Como vemos, a encenação teatral ou musical, orquestrada na estrutura narrativa, no momento em que o “eu” feminino e viajante desloca-se entre África e Portugal, pressupõe a essência e o fingimento, inerentes à constituição da identidade do sujeito, o que “enfatiza tanto a inexorabilidade de sua natureza pré-determinada e individual, quanto suas flutuações de acordo com seu local de inserção, seu contexto social, cultural, político e ideológico”(xx). Em “Interlúdio”, o sujeito feminino assume o corpo em mutação e a liberdade da fala (“podermos dizer enfim coisas há tanto caladas no nosso desenraizamento”), propõe-se a ser outro, “insidiosamente desfazendo os laços, descolorindo as lembranças, travando os deslizes, afundando na realidade alguma evocação fugaz, forçando-se a constantes ajustamentos”(xxi). Nota-se que a consciência feminina da escrita permite que o corpo da linguagem se confunda com o corpo do sujeito ficcional, o que nos leva a concordar com Jorge Fernandes da Silveira, em Portugal: Maio de Poesia 61: o Corpo arruinado pela História-Documento (doente ou mutilado pela morte) é transformado pela linguagem-acontecimento.
Após “Interlúdio”, seguem-se mais algumas reminiscências numeradas em ordem cronológica e uma postergada na linearidade narrativa e, após a reprodução de um poema escrito, superpõe-se um trecho de “Lawrence Durrell, “Je est un autre- Rimbaud”(xxii), o que acentua o dialogismo e evidencia o referente cultural formador da identidade mutável do sujeito. O último capítulo denomina-se “Proscénio” e possui, como epígrafe, um trecho de Luandino Vieira, Nós, os do Makulusu, que traz para o palco a cena da guerra, o desejo de “fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”(xxiii). Há referências ao “leste” — “esse flash de fel e mágoa incrustado na pele” e a transcrição de um belo poema, alude-se à “cortina fechada após dez anos” e aos “fragmentos respigados dum caderno” que, “refundidos”, “assumem progressivamente uma qualidade de produto”(xxiv). E o passado vivido no período da ocupação portuguesa em África transforma-se em escrita e representação:
E, “como dizer é não ter medo em expor o que existe por detrás de um texto”(xxvi), encerra-se o processo fragmentário e descontínuo da memória e da escrita, o que incita à “decifração” e à experiência da leitura, à necessidade de se “avançar como um carro de combate, por entre emaranhados de lianas”, e destrinçá-las”(xxvii), caso se deseje ter a ilusão do sentido pleno.
Em Corpo colonial, de Juana Ruas, também podemos observar a mise-en-scène do “eu” feminino no tempo das solidariedades ameaçadas, uma vez que os fatos narrados passam-se em Timor, com recordações da guerra na Guiné-Bissau. O próprio título remete, ambigüamente, ao corpo individual do sujeito, que se auto-define, no processo de construção identitária (“Sou um corpo colonial que se não sonha sem estar ocupado”(xxviii) e ao corpo histórico-social, ocupado, a princípio por Portugal e, posteriormente, pela Indonésia. O olhar de uma mulher apresenta-se como testemunho indiscutível da guerra colonial e registra cenas e ideologias assinaladas pela pseudocivilização e pela barbárie. A agonia pessoal e coletiva reflete-se através de vivências, viagens e deslocamentos, digressões e transgressões. A consciência dos sujeitos envolvidos dá origem a inúmeras reflexões filosóficas e psicanalíticas, e a alternância entre o narrado e o comentado produz um gênero híbrido – quase um romance-ensaio, monótono, às vezes. Observa-se, através dos diálogos e monólogos interiores, “o gosto lúdico da duplicação, da reflexividade”, o propósito “de criar uma espécie de vertigem, de horizonte infinito, em que sujeito e objecto, linguagem e metalinguagem, se acabam por dissolver num diálogo interminável de espelhos”(xxix. O fato de a “essência” do ensaio aparecer em cena reflete um sentido humanista: “é o ensaio como afirmação da razão, do livre exercício da razão, e da livre afirmação da liberdade do homem”, como nos ensina Eduardo Prado Coelho em O cálculo das sombras. Em Corpo colonial, podemos afirmar que as sombras, o interdito ou o que se pensa ou se deseja, inconscientemente, nos são revelados de forma calculada, sob medida. Os atos das personagens são sublinhados e ponderados, o que faz com que o leitor acompanhe “uma forma de pensamento em que se pesa o valor das ações e das idéias”, em que princípios e conceitos são veiculados. De modo geral, há “verdades subjacentes a todas as instabilidades” e que pertencem ao “próprio ‘eu’ enquanto foco central da experiência”. No cenário da guerra e de seus bastidores (messes, casa da Administração, casas dos colonizadores e dos nativos), “as palavras emprestam aos objetos sentidos novos”(xxx) e desencadeiam a busca da libertação. Alitia, por exemplo, circunscrita ao espaço doméstico, com “o coração fatigado de amar”, “renunciara-se a si própria” e evadia-se, através da memória. Ao bordar um tapete, “onde, quieto, se escondia um pássaro radioso,” “percorria”, através da sua interioridade, “distâncias onde fora outras
pessoas”:
Estas viagens da memória transportavam-na aos lugares onde sentia que tinha vivido sem o ter percebido. A mente filmara e fixara cenários, rostos, situações. Julgava-se, nessas noites calmas, situada num lugar definitivo e fixo. Mas a montagem da memória mostrava que esse lugar, esses lugares e essas situações se criavam através da ausência, da distância da morte, num espaço novo onde ensaiava a metáfora de uma metamorfose”.(xxxi)
No entanto, o “processo de descoberta do próprio eu, como ponto de partida absoluto”, somente irá emergir no interior do sujeito feminino no último capítulo do romance, no momento em que “as suas mãos tremeram ao bordar o seu nome na tapeçaria”(xxxii). O desenho do pássaro, referido em “Motivo Tropical” (1º Capítulo), insinua-se como extensão da própria identidade do sujeito recluso e, uma vez recoberto, no último capítulo (“O Vestido de Ramagens”), espraia-se como a “metáfora de uma metamorfose”. A interrogação inicial de Alitia — “Terá a minha vida um desenho único que não consigo vislumbrar?”(xxxiii) — encontrará uma resposta ao empreender o vôo da divagação, com a sensação de se ter transformado no “longo vestido negro onde dançavam ventos de grandes folhas de plátano cor de oiro arrefecido”(xxxiv). Ela própria voava sobre ela, “na espessa gravidade verde na trama de arabescos de sombras redondas”(xxxv). Convém, aqui, convocar as reflexões de Bachelard, a respeito da “fenomenologia do redondo”: “Mais uma vez, as imagens da redondeza plena ajudam a nos congregarmos em nós mesmos, a darmos a nós mesmos uma primeira constituição, a afirmar o nosso ser intimamente, pelo interior. Pois, vivido do interior, sem exterioridade, o ser não poderia deixar de ser redondo.” Acrescente-se a isso, o fato de que para Michelet (L’oiseau) “o pássaro é uma redondeza plena, é a vida redonda”:
Não será à toa, portanto, que o “eu” feminino, ao resgatar o vivido, através da memória, defina-se como máscara e sobrevivente de si mesma: “Sobrevivi a mim mesma, íncola que sou da ilha que fui. Apelo para a minha lucidez. Ela ilumina uma terrível mistificação”(xxxvii). E, em seu isolamento, questione-se e responda: “Quem sou?”, perguntou-se Alitia ao perceber que os rostos seus não tinham rosto. “No espaço fraternal e verdadeiro dos sonhos, eu sou o que sou: os outros que amei”(xxxviii). Conclui-se que todos os rostos se desvaneceram e só resta a “redondeza do ser”, frágil em sua solidão e renúncia. A personagem fecha-se em seu devaneio e abstém-se de inventar o seu futuro, mas certa de que a sua verdadeira identidade é devolvida a ela pelo olhar dos outros que amou. A “mulher sentada numa cadeira de três pernas” (2º. Capítulo) da geometria euclidiana, que antes a enterrava na terra para se equilibrar(xxxix), descobre a necessidade de completude:
No entanto, fechada em si mesma e auto-suficiente, virá a recusá-la, ao “não partir para o que se não conhece”(xli), ao rejeitar a presença de Artur na sua vida, ao admitir que a sua “única fidelidade é a noção nítida e precária do desencontro”, pois “nunca estamos onde pensamos estar”(xlii). Afinal de contas, aprendera com Fernando Pessoa que “Sentir é estar distraído”(xliii).
Torna-se, portanto, extremamente sugestivo verificarmos que a ficção de autoria feminina, do final do século XX, transita por outras formas de crueldade e violência, implícitas à guerra colonial – a dissolução das relações amorosas, o desrespeito ao semelhante, a recusa ou dificuldade do “ensaiar-se a si próprio, de se pôr a si próprio à prova face à mudança das coisas”. Embora corpos precários e falhos espelhem a identidade do seu país, no contexto de ocupação das colônias portuguesas no Ultramar, afirmam-se através da escrita e do imaginário libertador, e, acreditam descobrir uma “verdade” na reconstituição de suas vidas. Caberá à memória (e à sua dimensão psíquica) e à história acreditar nelas e na sua retórica testemunhal.
Referências bibliográficas:
COELHO, Eduardo Prado. “O ensaio geral”. In: O cálculo das sombras. Lisboa: Edições Asa, 1997.
CULLER, Jonathan. “Literaty Theory – a very short introduction”. Apud: BARCELLOS, Sergio. “Aproximações: Teorias contemporâneas da Literatura, Identidades e Diários”. In: Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, vol. 9, 2007, pp. 45-124. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa.
DERRIDA, Jacques. Otobiographies: L’enseignement de Nietzsche et la politique du nom propre. Paris: Galilée, 1984.
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras, UFRJ, 1999.
MAN, Paul de. “Autobiography as de-facement”. MLN, Comparative Literature, vol. 94, no. 5, dezembro de 1979.
MICHELET, Jules. “L’oiseau”. Apud: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução António de Pádua Danesi; revisão da tradução Rosemery Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fonte, 1993. (Coleção Tópicos).
RAMOS, Wanda. Percursos (do luachimo ao luena). Lisboa: Editorial Presença, 1980.
RUAS, Juana. Corpo colonial. Coimbra: Centelha, 1981.
SANTOS, Carina Faustino. A escrita feminina e a guerra colonial. Lisboa: Vega Editora, 2003.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Portugal, Maio de Poesia 61.[s.l.] Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.
1 SARLO, 2007.
2 Idem, ibidem. p. 31.
3 MAN, 1979.
4 DERRIDA, 1994.
5 SARLO, op. cit.,p. 33.
6 Idem, ibidem, p. 45.
7 Idem, ibidem, p. 18.
8 Idem, ibidem, pp. 24-25.
9 Idem, ibidem, pp.31-32.
10 RAMOS, 1980, p. 43.
11 Idem, ibidem, p. 68.
12 Idem, ibidem, p. 27.
13 Idem, ibidem, p. 30.
14 Idem, ibidem, p. 84.
15 Idem, ibidem, p. 48.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, ibidem, p. 68.
18 Idem, ibidem, p. 60.
19 Idem, ibidem, pp. 79-80.
20 CULLER, apud BARCELLOS, 2007, pp. 45-124.
21 RAMOS, op. cit., p. 90.
22 Idem, ibidem, p. 94.
23 Idem, ibidem, p. 95.
24 Idem, ibidem, pp. 95-96.
25 Idem, ibidem, p. 96.
26 SANTOS, 2003, p. 92.
27 RAMOS, op. cit., p. 96.
28 RUAS, 1981, p. 139.
29 COELHO, 1997, p. 18. As frases e expressões entre aspas, que se seguem, pertencem ao mesmo artigo citado.
30 RUAS, op. cit., p. 17.
31 Idem, ibidem, p. 09.
32 Idem, ibidem, p. 241.
33 Idem, ibidem, p. 10.
34 Idem, ibidem, p. 244.
35 Idem, ibidem.
36 MICHELET, apud BACHELARD, 1993, p. 240.
37 RUAS, op. cit., p. 10.
38 Idem, ibidem, p. 244.
39 Idem, ibidem, p. 17.
40 Idem, ibidem, p. 79.
41 Idem, ibidem, p. 236.
42 Idem, ibidem.
43 Idem, ibidem.
Em Percursos (do luachimo ao luena), de Wanda Ramos (1980) e Corpo colonial, de Juana Ruas (1981), olhares pré-inaugurais tornam-se cognoscentes e revelam sujeitos em processo de reconfiguração identitária, no período de ocupação das colônias portuguesas ultramarinas, respectivamente, em África (Angola) e Ásia (Timor). Ao sugerirem uma outra ordem cultural do Império português que ruía, os relatos identitários fazem emergir vozes silenciadas e o espaço do imaginário e da reflexão – impensável pela censura salazarista na época referida. A textura do vivido, em condições extremas e excepcionais, leva-nos a questionar até que ponto, ao proceder à representação de seu percurso existencial, o “eu textual põe em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa máscara”. “Como na “ficção em 1ª pessoa, tudo o que uma “autobiografia” consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz “eu”, toma-se como objeto”(ii). Implícita a esta questão, encontra-se a crítica à subjetividade e à representação, uma vez que todo relato autobiográfico se desenvolve buscando persuadir, como já nos apontavam Paul de Man(iii) e Derrida(iv). Este viés crítico, por sua vez, insinua que “o sujeito que fala é uma máscara ou uma assinatura, ao não pretender “ser sujeito verdadeiro do seu verdadeiro relato”(v). Partindo-se desse princípio, constata-se que as operações táticas da memória revestem-se de esquecimentos, lembranças, omissões, persuasão, seleção de fatos ou detalhes, passíveis de trazer o passado fantasmático e traumático para a cena do presente.
Os discursos da memória e da História, divulgados em períodos pós-ditatoriais, assinalam que “lembrar foi uma atividade de restauração dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio ou destruídos pela violência de Estado”(vi), como tão bem afirma Beatriz Sarlo, em Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
Embora saibamos que “qualquer relato da experiência é interpretável”, em decorrência da desconfiança em relação à autenticidade da memória, interessa-nos destacar, nas obras ficcionais acima citadas, os processos e atores sociais que intervêm na formalização e na consolidação da memória coletiva, destacando-se a importância dos relatos testemunhais para o afloramento das memórias subterrâneas, reprimidas em determinado contexto, pelas imposições da ordem social. Tal reordenamento ideológico e conceitual da sociedade do passado e de seus personagens, que se concentra nos direitos e na “verdade” da subjetividade, sustenta grande parte da iniciativa reconstituidora das décadas de 60 e 70”(vii). Na ficção portuguesa contemporânea, especificamente, deparamo-nos com determinadas vozes marginalizadas ou silenciadas pela repressão vigente, no período Pré-Revolução de Abril de 1974, que refletem sobre a dimensão do público e do privado, ao rememorarem a sua experiência afetiva e política, no contexto do colonialismo português. Assim, em Percursos (do luachimo ao luena) e em Corpo colonial nos são reveladas, anos depois, determinadas dimensões subjetivas, a partir das experiências das mulheres, esposas dos alferes, sitiadas nos aquartelamentos ou messes, no período da guerra colonial. Ambas darão o seu testemunho, através de modos de subjetivação do narrado — relato em 1ª pessoa ou discurso indireto livre —, visando “conservar a lembrança ou reparar uma identidade machucada”:
A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável, isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a
se atualizar.(viii)
se atualizar.(viii)
Há, no entanto, uma sutil diferença no que se refere à temporalidade da “verdade presencial ancorada no corpo e na voz”, uma vez que a primeira obra citada baseia-se em reminiscências, ordenadas em forma de escrita, e, a segunda registra a experiência comunicável do sujeito no momento exato em que vivencia os acontecimentos, embora a sua voz possua a mediação de um narrador. De qualquer modo, em ambas, o pacto referencial pode ser ilusório, pois nada garante que haja uma relação verificável entre um eu textual e um eu da experiência vivida. Como nos lembra Paul de Man, em seus estudos sobre Rousseau (reunidos em Alegorias da leitura), a consciência de si não é uma representação, mas a “forma de uma representação”, a figura que indica que uma máscara (no sentido de persona, do teatro clássico) só pode ser julgada por sua apresentação de um estado de “sinceridade”, o que faz com que o princípio de verdade se desvaneça. Há uma máscara que afirma dizer sua verdade de máscara: de vingador, de vítima, de sedutor, de seduzido(ix).
Além da possível máscara, capaz de recobrir as nuances, inerentes à interioridade do sujeito, há, também, a máscara ideológica das instituições, agentes e monumentos representantes do fascismo, visando encobrir as barbáries perpetradas em África, desculpabilizando-os no teatrum mundi, através de simulacros, ardilosamente arquitetados. Um dos exemplos mais contundentes encontra-se em A costa dos murmúrios, romance português contemporâneo, da autoria de Lídia Jorge, já analisado por nós, em Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea. Convém lembrar que esse romance, além disso, configura uma síntese da sexualidade e da linguagem como práticas libertárias do corpo – tema recorrente na ficção de autoria feminina, como veremos.
Após essas reflexões iniciais, passaremos a nos deter nas duas narrativas ficcionais que privilegiam percursos e subjetividades em “tempo de agonia” e resultam claramente de vivências e experiências individuais.
Percursos (do luachino ao luena), de Wanda Ramos (Prêmio de Ficção de 1980 atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores, com Apoio da Secretaria de Estado da Cultura), revela a reconfiguração identitária do sujeito feminino, construída a partir de 46 reminiscências superpostas, registradas através da “renda da escrita” ou do “novelo decantado lá para trás”10. Ordenadas de forma descontínua, resgatam um passado reproduzido livremente pela memória ou pela recordação (o trazer de volta ao coração), sem a rigidez de um tempo textual linear. A linguagem a-sintática, fluida e dispersa sublinha a cartografia afetiva e histórica, delimitada pelos rios luachimo e luena — “rios estes de áfrica que ainda lhe ensopam a memória, que nunca mais viu alguns como esses, nem poderia”11 e que terminam por marcar uma trajetória rumo a um espaço livre, como tão bem apontou Carina Faustino dos Santos, em A escrita feminina e a guerra colonial. Trata-se do percurso existencial (infância, adolescência e idade adulta) de uma menina branca, filha de colonos portugueses em África, durante as décadas de 60 e 70. Ser descentrado e de fronteiras, transita entre Angola e Portugal (“puto seria sempre um país inexistente como outro qualquer, como a China por exemplo, mancha na geografia de papel, contorno rectangular irregular com veiozinhos e veias como de resto a própria angola, o era, salvo o rio dali, o luachimo que já apalpara”(xii)), e, vivencia a situação dilemática do colonizador versus colonizado. Sempre “remetida à diária solidão de filha transitoriamente única, sonsa na submissão aos pais, rebelde por dentro até lhe doer o corpo e se lhe esgotarem em monólogos as impaciências e fervores”(xiii), acaba por tornar-se esposa de um alferes-médico em um quartel em Cassamba e, ao descobrir que o marido encontrava-se “no frágil limiar do perverso,do maligno, enfim, do patológico”(xiv), propõe a dissolução conjugal para iniciar um “caminho de perdas múltiplas e subseqüentes reconquistas, apagar repetidamente a ardósia em que iam escrevendo-se novos desvarios e renovadas decepções”(xv). Convém observar que o sujeito da enunciação, singularmente, grafa os topônimos com minúsculas, relativizando-os; identifica as personagens com quem contracena apenas pelas iniciais (não é à toa que o marido, mantenedor de um “esquema de dominação perversamente segregado no côncavo da falsa liberalidade” e possuidor de “um ferrão sob a mansidão do discurso”(xvi), é referenciado como S., em uma analogia com Salazar), ou, ainda pelo grau de parentesco, hierarquicamente estabelecido na cena social (mãe, pai, irmã, avô, avó). O próprio sujeito feminino que assume o discurso das reminiscências é destituído de nome, o que insinua a ausência de uma identidade própria, no período da sujeição colonial, ou uma identidade em crise. A necessidade catártica de libertação, face a um passado traumático, leva-o a um processo de transgressão através da representação imaginária, passível de construir similaridades entre o “consumir-se enfim a euforia da escrita” e o consumir-se da relação amorosa. No capítulo denominado “Hiato”, por exemplo, lemos:
Como um qradro-negro. Produz-se a esponja e apagam-se os resíduos. Trata-se naturalmente de um troço doloroso ou frustrante. Por isso o súbito esvaziamento. O fluxo da fala congelado – a imobilidade da mão. Os ossos da cabeça estalam e tornam-se audíveis. Com que bater com ela nas paredes, assíncrono o estilhaço da palavra, recusa, raiva, letras desfazendo-se entre os dedos como algodão. E o vento pertinaz pela nesga entreaberta da angústia, noite côncava de febre. Consome-se enfim a euforia da escrita.*
*Ou então, há várias maneiras de nos deitarmos à água. Plonger. Tomber. Se débattre. Je me jette à l’eau des phrases comme on crie. Comme on a peur. Ainsi tout commence… D’une espèce de brasse folle, inventée. Don’t on coule ou survit
(i).
(i) Aragon, Je n’ai jamais appris à écrire ou les incipit.
*Ou então, há várias maneiras de nos deitarmos à água. Plonger. Tomber. Se débattre. Je me jette à l’eau des phrases comme on crie. Comme on a peur. Ainsi tout commence… D’une espèce de brasse folle, inventée. Don’t on coule ou survit
(i).
(i) Aragon, Je n’ai jamais appris à écrire ou les incipit.
“Hiato”, portanto, evidencia o processo auto-reflexivo e auto-referencial da metaficção, o “lançar-se à água das frases” como se guarda os rios na memória; insinua que o “viver” é feito de “caminhos insuspeitos e quantas vezes sobrepostos”; evidencia a suspensão do sujeito em “hiatos” — “recipientes de vidas outras ou fragmentos delas”(xvii); — mostra a lacuna, o intervalo, a falha, o desencontro e a separação de iguais; alude a si próprio, ao processo de criação intertextual e ao “baptismo de áfrica a sério, essa que não é cidades nem vidas, riquezas ou misérias, revoltas e lutas, mas tão só a ausência, a imobilidade definitiva do espaço que o silêncio atravessa como gume”(xviii).
Após “Hiato”, surge “Interlúdio”, considerado um intermédio ou entreato; trecho de música instrumental que se intercala entre as várias partes de uma longa composição, do tipo ópera, missa ou cantata:
Quase inextricável memória hoje de rituais, esbatido perfilar de estatuetas, máscaras, artefactos de quioco, feitiços: nostalgia destes signos ou ícones que lhe retêm o universo, e também do fetichismo que se forja na paisagem avistada da janela a que agora se prende, voltar-lhe as costas sim, um dia será (...).
Regressar aqui enfim, tão pesada, para vestir o melhor dos sorrisos brancos, pôr-se por fora lisa e previsível, abandonar lá muito frente a pele que devia envergar, o fato da sua carne verdadeira de que esta é tão-só um arremedo, em lisboa antiquíssima e continental perfilar um corpo de estopa lida (brevemente sem cio nem menopausa, só terra-de-ninguém), despudoradamente fabricar inúmeras escritas, catarse mastigada, a fala do fim logrando recuperar-se.(xix)
Regressar aqui enfim, tão pesada, para vestir o melhor dos sorrisos brancos, pôr-se por fora lisa e previsível, abandonar lá muito frente a pele que devia envergar, o fato da sua carne verdadeira de que esta é tão-só um arremedo, em lisboa antiquíssima e continental perfilar um corpo de estopa lida (brevemente sem cio nem menopausa, só terra-de-ninguém), despudoradamente fabricar inúmeras escritas, catarse mastigada, a fala do fim logrando recuperar-se.(xix)
Como vemos, a encenação teatral ou musical, orquestrada na estrutura narrativa, no momento em que o “eu” feminino e viajante desloca-se entre África e Portugal, pressupõe a essência e o fingimento, inerentes à constituição da identidade do sujeito, o que “enfatiza tanto a inexorabilidade de sua natureza pré-determinada e individual, quanto suas flutuações de acordo com seu local de inserção, seu contexto social, cultural, político e ideológico”(xx). Em “Interlúdio”, o sujeito feminino assume o corpo em mutação e a liberdade da fala (“podermos dizer enfim coisas há tanto caladas no nosso desenraizamento”), propõe-se a ser outro, “insidiosamente desfazendo os laços, descolorindo as lembranças, travando os deslizes, afundando na realidade alguma evocação fugaz, forçando-se a constantes ajustamentos”(xxi). Nota-se que a consciência feminina da escrita permite que o corpo da linguagem se confunda com o corpo do sujeito ficcional, o que nos leva a concordar com Jorge Fernandes da Silveira, em Portugal: Maio de Poesia 61: o Corpo arruinado pela História-Documento (doente ou mutilado pela morte) é transformado pela linguagem-acontecimento.
Após “Interlúdio”, seguem-se mais algumas reminiscências numeradas em ordem cronológica e uma postergada na linearidade narrativa e, após a reprodução de um poema escrito, superpõe-se um trecho de “Lawrence Durrell, “Je est un autre- Rimbaud”(xxii), o que acentua o dialogismo e evidencia o referente cultural formador da identidade mutável do sujeito. O último capítulo denomina-se “Proscénio” e possui, como epígrafe, um trecho de Luandino Vieira, Nós, os do Makulusu, que traz para o palco a cena da guerra, o desejo de “fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe”(xxiii). Há referências ao “leste” — “esse flash de fel e mágoa incrustado na pele” e a transcrição de um belo poema, alude-se à “cortina fechada após dez anos” e aos “fragmentos respigados dum caderno” que, “refundidos”, “assumem progressivamente uma qualidade de produto”(xxiv). E o passado vivido no período da ocupação portuguesa em África transforma-se em escrita e representação:
Serão então escrita, negativo de película ansiosamente projectada, código para o que der e vier, forma a que se retirará talvez fundo (esse ficando onde sempre esteve), tempo, mina, onda, floresta, pântano, casa, recipiente, vaso comunicante, comunicação.(xxv)
E, “como dizer é não ter medo em expor o que existe por detrás de um texto”(xxvi), encerra-se o processo fragmentário e descontínuo da memória e da escrita, o que incita à “decifração” e à experiência da leitura, à necessidade de se “avançar como um carro de combate, por entre emaranhados de lianas”, e destrinçá-las”(xxvii), caso se deseje ter a ilusão do sentido pleno.
Em Corpo colonial, de Juana Ruas, também podemos observar a mise-en-scène do “eu” feminino no tempo das solidariedades ameaçadas, uma vez que os fatos narrados passam-se em Timor, com recordações da guerra na Guiné-Bissau. O próprio título remete, ambigüamente, ao corpo individual do sujeito, que se auto-define, no processo de construção identitária (“Sou um corpo colonial que se não sonha sem estar ocupado”(xxviii) e ao corpo histórico-social, ocupado, a princípio por Portugal e, posteriormente, pela Indonésia. O olhar de uma mulher apresenta-se como testemunho indiscutível da guerra colonial e registra cenas e ideologias assinaladas pela pseudocivilização e pela barbárie. A agonia pessoal e coletiva reflete-se através de vivências, viagens e deslocamentos, digressões e transgressões. A consciência dos sujeitos envolvidos dá origem a inúmeras reflexões filosóficas e psicanalíticas, e a alternância entre o narrado e o comentado produz um gênero híbrido – quase um romance-ensaio, monótono, às vezes. Observa-se, através dos diálogos e monólogos interiores, “o gosto lúdico da duplicação, da reflexividade”, o propósito “de criar uma espécie de vertigem, de horizonte infinito, em que sujeito e objecto, linguagem e metalinguagem, se acabam por dissolver num diálogo interminável de espelhos”(xxix. O fato de a “essência” do ensaio aparecer em cena reflete um sentido humanista: “é o ensaio como afirmação da razão, do livre exercício da razão, e da livre afirmação da liberdade do homem”, como nos ensina Eduardo Prado Coelho em O cálculo das sombras. Em Corpo colonial, podemos afirmar que as sombras, o interdito ou o que se pensa ou se deseja, inconscientemente, nos são revelados de forma calculada, sob medida. Os atos das personagens são sublinhados e ponderados, o que faz com que o leitor acompanhe “uma forma de pensamento em que se pesa o valor das ações e das idéias”, em que princípios e conceitos são veiculados. De modo geral, há “verdades subjacentes a todas as instabilidades” e que pertencem ao “próprio ‘eu’ enquanto foco central da experiência”. No cenário da guerra e de seus bastidores (messes, casa da Administração, casas dos colonizadores e dos nativos), “as palavras emprestam aos objetos sentidos novos”(xxx) e desencadeiam a busca da libertação. Alitia, por exemplo, circunscrita ao espaço doméstico, com “o coração fatigado de amar”, “renunciara-se a si própria” e evadia-se, através da memória. Ao bordar um tapete, “onde, quieto, se escondia um pássaro radioso,” “percorria”, através da sua interioridade, “distâncias onde fora outras
pessoas”:
Estas viagens da memória transportavam-na aos lugares onde sentia que tinha vivido sem o ter percebido. A mente filmara e fixara cenários, rostos, situações. Julgava-se, nessas noites calmas, situada num lugar definitivo e fixo. Mas a montagem da memória mostrava que esse lugar, esses lugares e essas situações se criavam através da ausência, da distância da morte, num espaço novo onde ensaiava a metáfora de uma metamorfose”.(xxxi)
No entanto, o “processo de descoberta do próprio eu, como ponto de partida absoluto”, somente irá emergir no interior do sujeito feminino no último capítulo do romance, no momento em que “as suas mãos tremeram ao bordar o seu nome na tapeçaria”(xxxii). O desenho do pássaro, referido em “Motivo Tropical” (1º Capítulo), insinua-se como extensão da própria identidade do sujeito recluso e, uma vez recoberto, no último capítulo (“O Vestido de Ramagens”), espraia-se como a “metáfora de uma metamorfose”. A interrogação inicial de Alitia — “Terá a minha vida um desenho único que não consigo vislumbrar?”(xxxiii) — encontrará uma resposta ao empreender o vôo da divagação, com a sensação de se ter transformado no “longo vestido negro onde dançavam ventos de grandes folhas de plátano cor de oiro arrefecido”(xxxiv). Ela própria voava sobre ela, “na espessa gravidade verde na trama de arabescos de sombras redondas”(xxxv). Convém, aqui, convocar as reflexões de Bachelard, a respeito da “fenomenologia do redondo”: “Mais uma vez, as imagens da redondeza plena ajudam a nos congregarmos em nós mesmos, a darmos a nós mesmos uma primeira constituição, a afirmar o nosso ser intimamente, pelo interior. Pois, vivido do interior, sem exterioridade, o ser não poderia deixar de ser redondo.” Acrescente-se a isso, o fato de que para Michelet (L’oiseau) “o pássaro é uma redondeza plena, é a vida redonda”:
O pássaro, quase totalmente esférico, é por certo o ápice, sublime e divino, da concentração viva. Não se pode viver, nem mesmo imaginar, um grau mais elevado de unidade. Excesso de concentração que faz a grande força pessoal do pássaro, mas que implica sua extrema individualidade, seu isolamento, sua fraqueza social.(xxxvi)
Não será à toa, portanto, que o “eu” feminino, ao resgatar o vivido, através da memória, defina-se como máscara e sobrevivente de si mesma: “Sobrevivi a mim mesma, íncola que sou da ilha que fui. Apelo para a minha lucidez. Ela ilumina uma terrível mistificação”(xxxvii). E, em seu isolamento, questione-se e responda: “Quem sou?”, perguntou-se Alitia ao perceber que os rostos seus não tinham rosto. “No espaço fraternal e verdadeiro dos sonhos, eu sou o que sou: os outros que amei”(xxxviii). Conclui-se que todos os rostos se desvaneceram e só resta a “redondeza do ser”, frágil em sua solidão e renúncia. A personagem fecha-se em seu devaneio e abstém-se de inventar o seu futuro, mas certa de que a sua verdadeira identidade é devolvida a ela pelo olhar dos outros que amou. A “mulher sentada numa cadeira de três pernas” (2º. Capítulo) da geometria euclidiana, que antes a enterrava na terra para se equilibrar(xxxix), descobre a necessidade de completude:
Não tenho necessidade de resistir. Sou. E ser é ordenar o espaço à nossa volta. É agir. É sentir a vida, as suas marés, a sua temperatura e o seu odor. É ver cada ser nitidamente, tal como ele é, volumes em movimento, impulsos, história. A nossa vida assenta na cadeira de três pernas da geometria euclidiana. É necessário descobrir a quarta dimensão da vida. E a quinta. E, na nossa vida afectiva, o AMOR..(xl)
No entanto, fechada em si mesma e auto-suficiente, virá a recusá-la, ao “não partir para o que se não conhece”(xli), ao rejeitar a presença de Artur na sua vida, ao admitir que a sua “única fidelidade é a noção nítida e precária do desencontro”, pois “nunca estamos onde pensamos estar”(xlii). Afinal de contas, aprendera com Fernando Pessoa que “Sentir é estar distraído”(xliii).
Torna-se, portanto, extremamente sugestivo verificarmos que a ficção de autoria feminina, do final do século XX, transita por outras formas de crueldade e violência, implícitas à guerra colonial – a dissolução das relações amorosas, o desrespeito ao semelhante, a recusa ou dificuldade do “ensaiar-se a si próprio, de se pôr a si próprio à prova face à mudança das coisas”. Embora corpos precários e falhos espelhem a identidade do seu país, no contexto de ocupação das colônias portuguesas no Ultramar, afirmam-se através da escrita e do imaginário libertador, e, acreditam descobrir uma “verdade” na reconstituição de suas vidas. Caberá à memória (e à sua dimensão psíquica) e à história acreditar nelas e na sua retórica testemunhal.
Referências bibliográficas:
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CULLER, Jonathan. “Literaty Theory – a very short introduction”. Apud: BARCELLOS, Sergio. “Aproximações: Teorias contemporâneas da Literatura, Identidades e Diários”. In: Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, vol. 9, 2007, pp. 45-124. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa.
DERRIDA, Jacques. Otobiographies: L’enseignement de Nietzsche et la politique du nom propre. Paris: Galilée, 1984.
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. Alice e Penélope na ficção portuguesa contemporânea. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras, UFRJ, 1999.
MAN, Paul de. “Autobiography as de-facement”. MLN, Comparative Literature, vol. 94, no. 5, dezembro de 1979.
MICHELET, Jules. “L’oiseau”. Apud: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução António de Pádua Danesi; revisão da tradução Rosemery Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fonte, 1993. (Coleção Tópicos).
RAMOS, Wanda. Percursos (do luachimo ao luena). Lisboa: Editorial Presença, 1980.
RUAS, Juana. Corpo colonial. Coimbra: Centelha, 1981.
SANTOS, Carina Faustino. A escrita feminina e a guerra colonial. Lisboa: Vega Editora, 2003.
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SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Portugal, Maio de Poesia 61.[s.l.] Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.
1 SARLO, 2007.
2 Idem, ibidem. p. 31.
3 MAN, 1979.
4 DERRIDA, 1994.
5 SARLO, op. cit.,p. 33.
6 Idem, ibidem, p. 45.
7 Idem, ibidem, p. 18.
8 Idem, ibidem, pp. 24-25.
9 Idem, ibidem, pp.31-32.
10 RAMOS, 1980, p. 43.
11 Idem, ibidem, p. 68.
12 Idem, ibidem, p. 27.
13 Idem, ibidem, p. 30.
14 Idem, ibidem, p. 84.
15 Idem, ibidem, p. 48.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, ibidem, p. 68.
18 Idem, ibidem, p. 60.
19 Idem, ibidem, pp. 79-80.
20 CULLER, apud BARCELLOS, 2007, pp. 45-124.
21 RAMOS, op. cit., p. 90.
22 Idem, ibidem, p. 94.
23 Idem, ibidem, p. 95.
24 Idem, ibidem, pp. 95-96.
25 Idem, ibidem, p. 96.
26 SANTOS, 2003, p. 92.
27 RAMOS, op. cit., p. 96.
28 RUAS, 1981, p. 139.
29 COELHO, 1997, p. 18. As frases e expressões entre aspas, que se seguem, pertencem ao mesmo artigo citado.
30 RUAS, op. cit., p. 17.
31 Idem, ibidem, p. 09.
32 Idem, ibidem, p. 241.
33 Idem, ibidem, p. 10.
34 Idem, ibidem, p. 244.
35 Idem, ibidem.
36 MICHELET, apud BACHELARD, 1993, p. 240.
37 RUAS, op. cit., p. 10.
38 Idem, ibidem, p. 244.
39 Idem, ibidem, p. 17.
40 Idem, ibidem, p. 79.
41 Idem, ibidem, p. 236.
42 Idem, ibidem.
43 Idem, ibidem.
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