Transtorno no transtorno
Conto, por Valentina Silva Ferreira.
- Marcela. Em que lhe posso ser útil?
O coração subiu pela traqueia e estacionou na boca, impedindo a língua de responder. Três gotas de suor derraparam pelo escorrega do pescoço e empaparam a camisa branca. Desligou a chamada e sentou-se, fazendo exercícios de respiração que nunca acalmavam e só relembravam a sua nulidade enquanto homem. Limpou o copo, encheu-o de cerveja, remoeu um punhado de amendoins, passou pelos canais de televisão duas vezes, apagou a luz e escolheu um canto escuro da sala. Varreu-o e sentou-se, cruzando as pernas e marcando o número. Fechou os olhos e esperou.
- Marcela. Em que lhe posso ser útil?
Concentrou-se na voz: feminina, irrequieta, borbulhante - uma voz que, se pudesse beber, seria champanhe e faria cócegas na sua garganta. Desenhou o seu rosto numa só pincelada imaginativa. Tinha cabelo castanho claro, olhos amendoados num tom escuro, pele branca. Vestia o 40 de calças, um L de blusa, e os seios redondos tinham dificuldade em encontrar um soutien decente. Gostava de roupa interior sem grandes folhos ou dificuldades, tomava banho todos os dias, e andava sempre cheirosa. Roía as unhas, tinha uns dentes brancos e ainda não dera com o jeito de encontrar a forma perfeita das suas sobrancelhas. Sim, fazia a depilação em casa.
- Marcela, depilas-te toda?
Um silêncio do outro lado recebeu-o sem meiguice. Ouviu-se um estalo com a língua, ou talvez a bola de uma chiclete que rebentava e, por fim, ela respondeu.
- Sim, querido.
Ele abriu os olhos, limpou o copo, bebeu um pouco da cerveja, comeu um amendoim. Desligou a chamada. Na sua cara: a desilusão. Acendeu as luzes, espreitou a varanda, suspirou, acendeu a televisão, passou três vezes pelos canais. Depois, foi até ao quarto, esticou-se na cama, fechou os olhos, marcou um número e esperou.
- Sandrinha ao seu dispor.
Mel. Uma voz de mel. Daquelas que escorre, que emporcalha, que deixa nódoa. Cabelos pretos, pele chocolate, boca de morango, uns olhos profundos, cheiro a caramelo. Magra, pouco alta, rabo empinado, seios pequenos. Provavelmente um piercing no umbigo, três sinais na coxa e uma tatuagem ao fundo das costas. Uma cicatriz no braço, uma pulseira no pé esquerdo, um colar com um coração ao pescoço. Orelhas mal lavadas, dentes tortos e uma barriga bem definida.
- Sandrinha, depilas-te toda?
- Não, querido.
As pálpebras mantiveram-se fechadas e um sorriso aflorou-se na sua boca. Suspirou como quem bebe o ar pela última vez. Viu Sandrinha na sua cama - nua e fêmea - pernas abertas, olhar guloso, suja por outros homens, mastigada pela vida: puta. E ele, animal, manchando-se nela, borrando a sua pele imaculada na saliva dela, lambendo as suas bactérias, o azedo da sua boca, o avinagrado da sua gruta, o esgoto da sua alma. No lânguido gozo da sua imaginação, veio o orgasmo, em segundos, quente e espasmódico.
- Quer companhia, querido?
Beeeeeeeeeeeeep. Fim da chamada.
O homem lavou-se, escovou os dentes, vestiu o pijama escrupulosamente dobrado, esticou os lençóis, ajeitou as almofadas, expulsou poeiras transparentes da cama, desinfectou as mãos e deitou-se. Deixou a luz acesa, inspeccionou o tecto à procura de rastejantes, sossegou o corpo e adormeceu.
*
Créditos da imagem: Site olharees - fotografia online
Quarto de hotel (I), por ©onceição ©ardoso.
Texto delicioso pra ler e ficar com
ResponderExcluirele um bom tempo. Prende. Parabéns,
Valentina. Que grande contista/cronista
você é.
Um abraço
Lúcia
Valentina, você alcança num conto compacto como este uma grande riqueza de detalhes. Leva o leitor a "degustar" seus personagens ( voz de mel, pele chocolate, boca de morango, cheiro de caramelo; e isto após a metáfora mais bela: "uma voz que, se pudesse beber, seria champanhe") e, ao final, joga o leitor, sem dó, numa realidade suja e corrompida. Sensacional.
ResponderExcluirRogério Miranzelo
Brasil
Queridos Wll, Lúcia e Rogério, escrever para vocês é um prazer que não tem comparação :) Muito obrigada pelas palavras de incentivo.
ResponderExcluirBeijo,
Valentina.