De mãos dadas: uma reflexão sobre o dever do autor
Artigo para a seção Escrita Criativa, por Carolina Bernardes.
Ao longo desses meses da coluna de Escrita Criativa, pudemos conversar sobre procedimentos, funções e conceitos da Literatura e do escritor, estímulos à criatividade, mudanças de perspectiva sobre o ofício e a leitura. A coluna tem recebido muitos leitores e comentários, o que revela a necessidade que todos temos de aprendizado e interação. Quero hoje fazer uma pausa em nossas “aulas” para refletirmos juntos sobre esse aspecto, tantas vezes despercebido, que marca nossa andança diária. Para isso, começo recorrendo ao autor grego Nikos Kazantzakis (1883-1957). Em sua obra híbrida Ascese (1927), encontramos a seguinte afirmação:
Somos um. Do verme cego nas profundezas do oceano até a infinda arena da Galáxia, um mesmo ser luta e corre perigo – nós próprios. E em nosso pequeno peito terreno, um mesmo ser luta e corre perigo – o Universo. (KAZANTZAKIS, 1997, p. 117)
É evidente o significado desta concepção da existência: todos os seres se originam de um mesmo princípio e estão, assim, interligados. Vegetais, animais, homens e o Universo se relacionam pela interdependência, o que significa que não se pode seguir a vida acreditando que somos entidades plenamente individuais, livres de qualquer compromisso com o outro. Pensando no relacionamento entre os homens, Kazantzakis sinaliza duas virtudes éticas: a responsabilidade e o sacrifício. “A solidariedade entre os homens não é um luxo de corações ternos, mas uma profunda necessidade de autoconservação”. (Idem, p.131) Autoconservação pela unidade originária entre os seres existentes no universo. A interdependência, que torna uma só essência a multiplicidade de seres num único corpo, vaticina a responsabilidade da salvação do universo como a própria salvação de si, em ambos os sentidos (o Universo depende da salvação humana e o homem depende da salvação do Universo).
Todo homem tem o seu círculo de coisas, de árvores, de animais, de homens, de idéias – e cabe a ele salvar esse círculo. A ele apenas, e a ninguém mais. Se não o salvar, não poderá salvar-se.
Tem por dever levar a cabo suas próprias lutas antes de morrer. De outro modo, não poderá salvar-se. Pois, escravizada, sua própria alma está dispersa nas coisas que o cercam – árvores, animais, homens, idéias – e para salvá-las ele tem de levar a cabo suas lutas. (Idem, p.139)
A salvação acontece pelo curso natural do universo, seguindo suas leis próprias. Cada homem, responsável por seu círculo de salvação, deve agir conforme sua natureza interna, em consonância com as leis da natureza externa. Se o homem for um trabalhador do campo, deve lavrar a terra e, assim, estará salvando a porção que lhe compete. Se for um sábio, deve matar as idéias antigas e criar novas. A salvação de si e dos demais está na ação, porém não exige a prática de esforços contrários ao pulsar interno de cada ser, e sim que a natureza humana e universal continue seu curso dentro dos limites inerentes a cada espécie de homem, de idéia, de animal e de vegetal. E o autor literário, qual a sua responsabilidade?
Se, ainda segundo Kazantzakis, nosso “corpo invisível são os antepassados mortos e os descendentes ainda por nascer” e o corpo visível são os homens, as mulheres e as crianças de toda a nossa raça, é certo que caminhamos juntos, unidos por motivações comuns, o que elimina qualquer tipo de concorrência e competição. É exatamente neste ponto que ensejei chegar.
Ainda que não seja explícita ou declarada, é notável a disputa entre os autores por um espaço no mercado (o que se traduz por: conquista de leitores e o interesse dos editores). O surgimento de tantos novos autores e as ferramentas de interação que mudaram a comunicação no mundo colocam a todos diariamente na batalha por fixar seu nome de autor, por fazê-lo destacar-se entre os milhares de outros nomes que buscam a mesma realização. O pedido “leia-me” salta em todas as telas de computador, aos borbotões. A competição se estende para os concursos, para as publicações sob demanda e independentes, para os blogs que clamam por seguidores e comentários. Até mesmo nas feiras e congressos, os autores estreantes encontram um jeitinho de presentear com sua obra o editor importante ou o autor renomado, esperançosos da possibilidade de serem descobertos. Vale tudo para tornar-se autor reconhecido.
Recentemente, senti que seguia pelo mesmo caminho, ao constatar que não avaliava com bom humor e contentamento o sucesso de alguns colegas e que eu precisava imprimir ao meu esforço criativo um ritmo alucinado para conquistar meu espaço. Não gostei do que descobri em mim. Interrompi a corrida, desci do cavalo e atravessei a arena em busca de outra motivação para a luta. A pergunta que todos devemos fazer é: estou agindo realmente por uma motivação interna ou para sobressair em relação aos outros?
Já afirmei em outro momento que “para ser verdadeiramente um autor literário, é preciso ouvir o chamado de nossa época, é preciso entender o que a literatura exige de nós e o que os leitores necessitam”. Essa deve ser a nossa motivação e não como o colega ao lado tem cumprido seu dever. Pois cada qual tem seu círculo de atuação, sua mensagem para deixar, seu grito individual ao qual deve dar expressão, sua responsabilidade em relação à raça, à humanidade, à Terra. Neste sentido, a concepção de Kazantzakis pode ser útil aos nossos corações e à nossa formação de autores/leitores. Caminhemos como exorta Drummond: de mãos dadas, neste mundo caduco, que tanto precisa de nossa palavra para fazer nascer uma flor em terra seca.
KAZANTZAKIS, Nikos. Ascese. Os Salvadores de Deus. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Ática, 1997.
Somos um. Do verme cego nas profundezas do oceano até a infinda arena da Galáxia, um mesmo ser luta e corre perigo – nós próprios. E em nosso pequeno peito terreno, um mesmo ser luta e corre perigo – o Universo. (KAZANTZAKIS, 1997, p. 117)
Todo homem tem o seu círculo de coisas, de árvores, de animais, de homens, de idéias – e cabe a ele salvar esse círculo. A ele apenas, e a ninguém mais. Se não o salvar, não poderá salvar-se.
Tem por dever levar a cabo suas próprias lutas antes de morrer. De outro modo, não poderá salvar-se. Pois, escravizada, sua própria alma está dispersa nas coisas que o cercam – árvores, animais, homens, idéias – e para salvá-las ele tem de levar a cabo suas lutas. (Idem, p.139)
A salvação acontece pelo curso natural do universo, seguindo suas leis próprias. Cada homem, responsável por seu círculo de salvação, deve agir conforme sua natureza interna, em consonância com as leis da natureza externa. Se o homem for um trabalhador do campo, deve lavrar a terra e, assim, estará salvando a porção que lhe compete. Se for um sábio, deve matar as idéias antigas e criar novas. A salvação de si e dos demais está na ação, porém não exige a prática de esforços contrários ao pulsar interno de cada ser, e sim que a natureza humana e universal continue seu curso dentro dos limites inerentes a cada espécie de homem, de idéia, de animal e de vegetal. E o autor literário, qual a sua responsabilidade?
Se, ainda segundo Kazantzakis, nosso “corpo invisível são os antepassados mortos e os descendentes ainda por nascer” e o corpo visível são os homens, as mulheres e as crianças de toda a nossa raça, é certo que caminhamos juntos, unidos por motivações comuns, o que elimina qualquer tipo de concorrência e competição. É exatamente neste ponto que ensejei chegar.
Ainda que não seja explícita ou declarada, é notável a disputa entre os autores por um espaço no mercado (o que se traduz por: conquista de leitores e o interesse dos editores). O surgimento de tantos novos autores e as ferramentas de interação que mudaram a comunicação no mundo colocam a todos diariamente na batalha por fixar seu nome de autor, por fazê-lo destacar-se entre os milhares de outros nomes que buscam a mesma realização. O pedido “leia-me” salta em todas as telas de computador, aos borbotões. A competição se estende para os concursos, para as publicações sob demanda e independentes, para os blogs que clamam por seguidores e comentários. Até mesmo nas feiras e congressos, os autores estreantes encontram um jeitinho de presentear com sua obra o editor importante ou o autor renomado, esperançosos da possibilidade de serem descobertos. Vale tudo para tornar-se autor reconhecido.
Recentemente, senti que seguia pelo mesmo caminho, ao constatar que não avaliava com bom humor e contentamento o sucesso de alguns colegas e que eu precisava imprimir ao meu esforço criativo um ritmo alucinado para conquistar meu espaço. Não gostei do que descobri em mim. Interrompi a corrida, desci do cavalo e atravessei a arena em busca de outra motivação para a luta. A pergunta que todos devemos fazer é: estou agindo realmente por uma motivação interna ou para sobressair em relação aos outros?
Já afirmei em outro momento que “para ser verdadeiramente um autor literário, é preciso ouvir o chamado de nossa época, é preciso entender o que a literatura exige de nós e o que os leitores necessitam”. Essa deve ser a nossa motivação e não como o colega ao lado tem cumprido seu dever. Pois cada qual tem seu círculo de atuação, sua mensagem para deixar, seu grito individual ao qual deve dar expressão, sua responsabilidade em relação à raça, à humanidade, à Terra. Neste sentido, a concepção de Kazantzakis pode ser útil aos nossos corações e à nossa formação de autores/leitores. Caminhemos como exorta Drummond: de mãos dadas, neste mundo caduco, que tanto precisa de nossa palavra para fazer nascer uma flor em terra seca.
KAZANTZAKIS, Nikos. Ascese. Os Salvadores de Deus. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Ática, 1997.
Uma curiosidade: Kazantzatkis nasceu no mesmo ano de Ortega & Gasset e eles escreveram coisas parecidas (será a atmosfera da época ou os pensamentos filiados a uma mesma corrente filosófica? "Eu sou eu e minha circunstância. E se não salvo a ela, não salvo a mim." Esta afirmação dele é muito semelhante em termos de significado com a citação do outro aqui.
ResponderExcluirBom mas o que importa é que seu artigo é uma fonte límpida para reflexão acerca da competitividade que nos toma de assalto na luta pela sobrevivência com visibilidade e reconhecimento. Acho que o instinto predatório biológico tem sobressaido muito mais do que os aprendizados civilizatórios oriundos de um contrato social. Eu também vejo muito mais competição do que solidariedade (esta só ocorre nas desgraças humanas); como uma espécie de expiação de culpas sociológicas, morais, religiosas.
Estou escrevendo diuturnamente mas também lendo na mesma proporção (ou até mais) e tenho observado que há autores cujo intuito é apenas obter reconhecimento (sempre houve, mas parece que com o advento da internet, as coisas ficam mais escancaradas). Por outro lado, os editores que proliferam no meio estão em sua maioria, apenas atrás de níqueis dos iniciantes e contando com alguma sorte para que algum deles se sobressaia para fazer-lhes fortunas.
Obrigado pela oportunidade da reflexão e um abraço.
Caro amigo Cacá, excelente sua reflexão e me encheu de ânimo! Começo a acreditar que podemos, sim, andar em comunidade, como nossa grande família Benfazeja. Concordo plenamente com todas as suas colocações. Só fico pensando se o aprendizado civilizatório se distancia do instinto predatório. A sociedade, culturalmente, é baseada na competição, como se pudéssemos viver isolados e como se houvesse lugar para um só. Talvez, uma maneira de se destacar, de atrair olhares de leitores e editores, fosse o investimento na própria escrita, no conhecimento literário. É melhor aplicar nossa energia naquilo que realmente pode dar frutos. Que autor não se orgulha de ler um bom texto de um companheiro? Faz a gente crescer, querer mais, fazer mais de nós mesmos. Não há necessidade de correr contra o outro. E esses editores existem porque descobriram um filão: autores e mais autores esperando para publicar.
ResponderExcluirE por último, não sabia da coincidência de datas entre Kazantzakis e Ortega y Gasset. Já li alguma coisa dele e me interessei muito. A sua informação só veio aguçar minha vontade. Concordo, de fato, que há uma correspondência entre os dois, que tanto pode ser pela atmosfera da época como corrente filosófica. Vou procurar ler o autor para ter uma visão melhor. Você indica algum livro em especial?
Abraço grande e obrigada pela interação, que só gera boas reflexões!
Carolina
Ótima e necessária Reflexão. Escrevi um pensamento já publicado algumas vezes: “Poesia é o Amor em movimento”.
ResponderExcluirDepois generalizei... obviamente:
“Arte é o Amor em movimento”
Como preconiza a corrente Aristotélica: “A Arte além de Bela, deve servir ao Bem”.
Esta competitividade vazia é a pequenez do Ego. Percebo também escritores movidos por grande carência afetiva-amorosa, familiar , social ; acham que o sucesso de um livro vai resolver o vazio que sentem na vida. Editoras exploram às vezes, a perversora vaidade e enganosa ambição dos autores de livros bons ou ruins.
O Mercado como interesse primeiro macula muitas outras criatividades e atividades do homem hodierno. A inteligência sem sensibilidade, desprovida de ideais elevados é trôpega, separa o que poderia unir, fortalecer e semear Harmonia no mundo.
A maior aquisição que o exercício Literário- Ler e Escrever pode trazer, creio ser o enriquecimento interior- pelo conhecimento e possível aproximação de Almas com ideais semelhantes, afinidades, sutilezas sentimentais que dançam no Cosmo, e nos entrelaçam quando abraçamos a Brisa perfumada de Natureza.
Luz e Paz
Cléo Reis
www.cleoreis.com.br
http://cleoreispazepoesia.blogspot.com/