O Abraço do trompetista ou A Despedida
Crônica, por Beatriz Gil.
"... não havia noite, apenas ocasional escuridão, mas sempre confortável, calorosa, amiga."
Para os lados do sitio havia um local bem iluminado, mesmo à beira-mar com areia entre, por cima e debaixo dos pés. Ouvia-se jazz acima de tudo, instrumental preferencialmente.
Existia a brisa pacifica com que o jazz acariciava o coração e as entranhas de quem lá permanecia sem nunca fazer questões.
Os dias não tinham horas, não havia noite, apenas ocasional escuridão, mas sempre confortável, calorosa, amiga.
Quem lá vivia não sabia gritar, não sabia da exaltação, da furia ou da raiva. Quem lá vivia aprendeu a ser e a representar o jazz melódico que acompanhava as rotinas. O som ecoava pelas ruas cuidadosamente limpas, com canteiros em toda a extensão. As casas eram brancas e as portas vermelhas ou azuis, as janelas eram habitualmente amarelas.
Ia de carro, sem rumo.
Desse dia lembro cada detalhe. por onde eu andava fazia frio, chovia torrencialmente e o meu interior estava partido em mil pedaços que se cravavam dentro e fora. No meu estomago, pulmões. Saíam-me das unhas e olhos fora, esses pedaços.
As mãos no volante sentia-as encharcadas em sangue que imaginava devia cobri-las, não confiava na negação disso pelos meus olhos, porque também eles eram só pequenas e cortantes particulas que brotavam, que rasgavam, que cegavam.
A amargura anunciada, as costelas a partirem-se de dentro para fora, o peito a abrir-se sobre si próprio, as entranhas despejadas no meu colo e eu sem poder fazer nada.
Eu a querer e a não poder. Eu a só ser capaz de segurar no volante e pisar os pedais.
Conduzi durante muito tempo, tenho quase a certeza de ter atropelado corpos que se estendiam no chão qual animal ferido em campo de batalha.
Quando inspirava só o cheiro a cinza, carne e podre.
Chovia muito, repito. Fazia um frio que se entranhava nos ossos, enfatizo. Era noite profunda e não havia luz.
Os corpos, deus, os corpos. Tantos corpos espalhados no chão. Pendurados nas varandas, nos candeeiros apagados, dentro dos carros parados. Os corpos inertes.
Os membros pendiam despreocupadamente, as roupas rasgadas, sapatos aleatoriamente perdidos e largados em estendais.
Os olhos vazios, quebrados, estáticos como em fotografias, pousados e cravados num horizonte que já não existia.
O trompete de Miles Davis a abraçar-nos a todos quase a compreender, quase a sorrir, quase a ser condescendente e a querer-nos num sitio melhor.
O som distinto e sôfrego da trompete a chorar copiosamente por todos nós, a pegar num lenço debruado a linha azul celeste e a limpar as lágrimas que ainda escorriam dos corpos. Ainda que inertes. Ainda que aparentemente mortos.
os meus dedos começaram a dançar em cima da pele macia do volante e os meus olhos fechei-os por não encontrar sentido em mantê-los abertos.
Devagar. Tão lentamente. Câmara lenta sem equipamento de video.
Os pedaços que me cortavam eram leves penas de veludo encarnado a acariciar-me o rosto. Como a melodia, a confortarem-me também. A saberem-me de fora para dentro, a gostarem de mim, a amarem-me ainda que eu fosse e estivesse danificada.
Quando voltei a abrir os olhos não ouvia gritos. Não sentia cheiro a morte ou podridão. O meu corpo não se quebrava ou abria. Não haviam vidros a cegarem-me.
Quando voltei a abrir os olhos vi casas brancas com portas vermelhas, senti areia quente debaixo dos pés, inspirei e só o mar ao fundo, escutei atentamente e só jazz, só a trompete de Miles Davis a sussurrar My Funny Valentine a abraçar-me ainda que sem braços, a amar-me ainda que incompleta.
Quando voltei a abrir os olhos, deus, tu não estavas lá e eu, eu senti-me em casa pela ultima vez.
Existia a brisa pacifica com que o jazz acariciava o coração e as entranhas de quem lá permanecia sem nunca fazer questões.
Os dias não tinham horas, não havia noite, apenas ocasional escuridão, mas sempre confortável, calorosa, amiga.
Quem lá vivia não sabia gritar, não sabia da exaltação, da furia ou da raiva. Quem lá vivia aprendeu a ser e a representar o jazz melódico que acompanhava as rotinas. O som ecoava pelas ruas cuidadosamente limpas, com canteiros em toda a extensão. As casas eram brancas e as portas vermelhas ou azuis, as janelas eram habitualmente amarelas.
Ia de carro, sem rumo.
Desse dia lembro cada detalhe. por onde eu andava fazia frio, chovia torrencialmente e o meu interior estava partido em mil pedaços que se cravavam dentro e fora. No meu estomago, pulmões. Saíam-me das unhas e olhos fora, esses pedaços.
As mãos no volante sentia-as encharcadas em sangue que imaginava devia cobri-las, não confiava na negação disso pelos meus olhos, porque também eles eram só pequenas e cortantes particulas que brotavam, que rasgavam, que cegavam.
A amargura anunciada, as costelas a partirem-se de dentro para fora, o peito a abrir-se sobre si próprio, as entranhas despejadas no meu colo e eu sem poder fazer nada.
Eu a querer e a não poder. Eu a só ser capaz de segurar no volante e pisar os pedais.
Conduzi durante muito tempo, tenho quase a certeza de ter atropelado corpos que se estendiam no chão qual animal ferido em campo de batalha.
Quando inspirava só o cheiro a cinza, carne e podre.
Chovia muito, repito. Fazia um frio que se entranhava nos ossos, enfatizo. Era noite profunda e não havia luz.
Os corpos, deus, os corpos. Tantos corpos espalhados no chão. Pendurados nas varandas, nos candeeiros apagados, dentro dos carros parados. Os corpos inertes.
Os membros pendiam despreocupadamente, as roupas rasgadas, sapatos aleatoriamente perdidos e largados em estendais.
Os olhos vazios, quebrados, estáticos como em fotografias, pousados e cravados num horizonte que já não existia.
O trompete de Miles Davis a abraçar-nos a todos quase a compreender, quase a sorrir, quase a ser condescendente e a querer-nos num sitio melhor.
O som distinto e sôfrego da trompete a chorar copiosamente por todos nós, a pegar num lenço debruado a linha azul celeste e a limpar as lágrimas que ainda escorriam dos corpos. Ainda que inertes. Ainda que aparentemente mortos.
os meus dedos começaram a dançar em cima da pele macia do volante e os meus olhos fechei-os por não encontrar sentido em mantê-los abertos.
Devagar. Tão lentamente. Câmara lenta sem equipamento de video.
Os pedaços que me cortavam eram leves penas de veludo encarnado a acariciar-me o rosto. Como a melodia, a confortarem-me também. A saberem-me de fora para dentro, a gostarem de mim, a amarem-me ainda que eu fosse e estivesse danificada.
Quando voltei a abrir os olhos não ouvia gritos. Não sentia cheiro a morte ou podridão. O meu corpo não se quebrava ou abria. Não haviam vidros a cegarem-me.
Quando voltei a abrir os olhos vi casas brancas com portas vermelhas, senti areia quente debaixo dos pés, inspirei e só o mar ao fundo, escutei atentamente e só jazz, só a trompete de Miles Davis a sussurrar My Funny Valentine a abraçar-me ainda que sem braços, a amar-me ainda que incompleta.
Quando voltei a abrir os olhos, deus, tu não estavas lá e eu, eu senti-me em casa pela ultima vez.
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Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online
Agonia, por Beatriz.
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