I Concurso Literário Benfazeja

O tempo de um livro



Conto, do autor convidado Newton Emediato Filho.


Numa pequena cidade, provavelmente nos fins da década de 50, o trem de passageiros, com atrasos imprevisíveis, teve que ficar parado por algum tempo, naquela distante estação. Os viajantes se acomodaram como puderam dentro dos vagões e outros ficaram pela plataforma a zanzar. A notícia primeira seria que o trem atrasaria algumas horas, porém veio a notícia de que passariam a noite toda ali. Como os vagões não ofereciam comodidades nem conforto, os viajantes saíram para satisfazer emergentes necessidades.

Quem mais aproveitou dessa situação fora a dona do café que no meio da plataforma vendia quitandas, salgados... Ela trazia uma enorme chaleira de café quente, na mão direita, enquanto subia por uma escada perpendicular, que ligava a rua de baixo com o nível ferroviário e dona Alzira com uma agilidade impressionante, deixava qualquer artista circense com inveja. Logo em seguida, vinha sua única filha, dona de um corpo escultural e que atraía os olhares maliciosos dos homens. Anina, na trilha da mãe, trazia um cesto apinhado de pastéis a exalar aromas e fumaças... Dona Alzira pedia à filha que buscasse tudo que podia ser vendido. Ah, lá de dentro ia e vinha Anina!...

– Agora sim, a coisa melhorou muito – alguém dentro do trem de passageiros, com a cabeça fora da janela, dizia com brilho no olhar.

Enquanto isso, a cantina improvisada no meio da estação logo enchia de gente... Um daqueles passageiros, com trajes excêntricos, usava terno com gravata borboleta e com ar circunspecto, saboreava a xícara de café e pronunciava com reverência:

– Maravilha de sabor. Por gentileza, mais um bolinho de chuva!...

Os bares rústicos se transformaram em restaurantes e ficavam lotados. Bêbados em um bar de esquina brigaram e xingaram palavrões. Os passageiros de segunda classe, aproveitando a ocasião, se infiltraram nas algazarras, pois com esses divertimentos o tempo logo passava. Um homem, com ar de europeu saía do hotel, ansioso e caminhava pela cidade. Circulava, observava e registrava em sua mente trejeitos e paisagens humanas. Os ouvidos dele funcionavam tal como orelhas de um coelho assustado a perscrutar o eventual risco de vida e seu olfato era semelhante ao das abelhas em busca de néctar...

O cenário era de frio e desolação. Tal senhor desejava enxergar o impalpável, o que pudesse. E procurava ao redor uma companhia, amigo que seja. Queria alguém que dissesse qualquer palavra... O que faz um homem a acreditar em algo impossível e, mesmo diante do deserto, acreditar nas miragens que são as imagens vindas de uma vereda longínqua – imaginava o nobre homem. Pudesse carregava no seu âmago o sertão... Com olhos penetrantes trazia numa das mãos dois volumes de Corpo de Baile e ainda passara horas a caminhar pela cidade, e embora já exausto, não se resignou ao perceber a vacuidade humana.

Pela manhã saía do único hotel que ali havia e que não acomodava a todos. Prosseguia vicejante até que se aproximou de um provável vaqueiro e o saudou: bom-dia...
Como não obteve êxito para um bom início de conversa, logo adiantou a abordagem:

– Bom dia, amigo! Aceite um presente cordial, de bom agrado! – Disse numa tentativa de presenteá-lo com aqueles dois livros.
A perplexidade do sertanejo lhe trouxe um incômodo ainda maior.
– É apenas um presente!... – Completou o senhor.

– Eu não quero! Eu não aceito... Nunca vou ler um livro desse tamanho! Ainda mais dois!

– Pode aceitar, é apenas um presente...

– Mas por que eu? Eu não conheço sua pessoa – e encarava pela primeira vez, aquele homem de rosto radiante, sem entender tamanha ousadia, assim do nada.

O viajante, por fim, depois de muito insistir, conseguiu seu objetivo de deixar naquele fim de mundo, dois livros de sua autoria que teve traduções em diversas línguas. O homem fino e atilado, perfilando-se em seu sorriso fechado, agora de mãos livres, caminhava rumo à estação erma daquele território das Gerais. Prosseguiria viagem à capital do Brasil e de lá voaria até o velho continente com o qual ele também tanto se encantava.


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Newton Emediato Filho
Um Carro de Bois que Transportava Logos é o seu primeiro romance com comentários (orelha) feitos por Luís Giffoni: [...] Já disseram que Minas são muitas. A literatura também. Um Carro de Bois que Transportava Logos viaja por algumas delas [...].

O conto intitulado: Um Papagaio Palimpséstico recebeu prêmios como: Projeto Manuelzão/UFMG e Menção Honrosa pela Editora Guemanisse/Teresópolis/Rio de Janeiro/RJ.

O autor também participa da antologia Asgard: A Saga dos Nove Reinos que foi lançada em maio de 2011 pela Editora Jambô, com o conto Em Transe. Deste projeto sobre mitologia nórdica fazem parte vários escritores e ilustradores do Brasil e do exterior.

O conto O Tempo de Um Livro acaba de receber prêmios na IV Jornada Guimarães Rosa 2011. Comemorando o centenário da Faculdade de Medicina/UFMG. O conto foi publicado no livro: Anais IV Jornada Guimarães Rosa, novembro/2011.

Todos os Dias de Ontem será o segundo livro solo do autor com vinte contos inéditos. A edição deste livro é um projeto aprovado pelo Ministério da Cultura – Lei Rouanet – Lei de Incentivo Cultural/2011

Blog

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Créditos da imagem: Site olhares - fotografia online
Estação de trem, por Toshiro Sasahara.

3 comentários:

  1. Newton.
    Muito bom e instigante o seu conto.
    O tempo de um livro assusta pela veracidade!
    Parabéns.
    beijo grande

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  2. Mais um conto seu amigo,uma viagem,um improviso em um lugar quase ermo a não ser pelos quitutes de dona Alzira,todos iam ficar com fome,mas não foi ela que saiu ganhando não e sim o homem elegante Europeu,esse atingiu seus objetivos,que era deixar seus dois volumes de Corpos de Baile,depois disso partiu,parabéns Newton Emediato Filho,um conto excelente,apreciei muito a leitura,grande abraço.

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