I Concurso Literário Benfazeja

O grande salão branco das palavras enclausuradas


Conto de Deanna Ribeiro

Era uma sala enorme de paredes muito alvas e incrivelmente limpas. No teto, bem alto, ventiladores sopravam leves brisas, responsáveis por arejar o ambiente - já que as janelas de vidro nunca se abriam. Luzes artificiais fluorescentes iluminavam o lugar, e o branco se fazia mais branco, reluzindo no ferro das estantes dispostas em fileiras. E era isso: uma sala com estantes.

Nelas, garrafas transparentes se dispunham em linha reta – lado a lado – numeradas, etiquetadas e em ordem alfabética. Dentro de cada uma, palavras de mesma cor boiavam, tentando uma vivacidade desgastada. Os recipientes tinham todos a igual forma longilínea, e variavam apenas quanto aos tons de seu conteúdo: uns, verdes; outros, vermelhos; havia também os amarelos, os alaranjados e demais colorações possíveis, representando categorias. Quanto mais alto se subia nas prateleiras, mais raros eram os engarrafados e mais escassos os contidos, que iam desbotando.

Ali não era permitido às pessoas manusear qualquer coisa:

- Você pode olhar, mas não pode pegar, nem tocar; tudo deve ser mantido limpo, fechado e distante de quem não saberia usá-lo da maneira correta.

E o correto era aquilo que os escolhidos para cuidar dos materiais estabeleciam como tal. Conferia-se aos elementos do interior dos vasilhames a aparência divina que nem eles gostariam de ter. Via-se: eram tristes, estáticos, melancólicos, encerrados em objetos de vidro sem poder interagir com o mundo lá fora. Por isso, poucas pessoas se preocupavam em adentrar a sala: era criterioso demais, homogêneo demais, silencioso demais, inalcançável. Os que entravam, geralmente, logo saíam, também cabisbaixos: cabeça pensa, olhar perdido. Não conseguiam relacionar-se com as palavras. Imaginavam até não serem, de fato, dignos de tocá-las – mesmo através do corpo sólido e diáfano- , quanto mais segurá-las nas mãos!

Jamais se podia abrir as tão bem vedadas vasilhas de gargalo comprido. Vai que uma palavra pula dali e se mistura às demais? Não! Definitivamente. E, assim, a ordem se mantinha: estantes classificatórias, garrafas categorizadas, fiscais canonizados e pessoas resignadas.

Ocorre que no salão branco havia uma estante em separado, com um recipiente fechado, repleto de “eis”, “ainda”, “senão”, “sequer”, “isto é” e outras expressões - furta-cores - , que viviam borbulhando, como feijão na panela de pressão. Misturadas, rodopiavam em círculos, brincavam, estavam sempre em movimento. Eram o desgosto dos cuidadores canonizados e ficavam, claro, num canto, para não influenciar as outras.

Certo dia, de tanto pularem os “eis”, “aindas” e “senões”, o objeto vítreo em que moravam destampou. De dentro, pela estreita garganta, brotou um arco-íris fervilhante, que, pouco a pouco, uma a uma, desarrolhou as demais garrafas, e as palavras tomaram vida. Sentiram o cheiro do mundo, respiraram até encher os pulmões, e foram rebentando de seus invólucros transparentes como tiros de fogos de artifício - até chegarem ao alto, numa explosão de cores, e caírem lentamente, flutuando pelos ares.

As janelas, agora abertas, deixavam entrar os raios amarelados de sol pelos seus vãos, e os passantes, curiosos, entravam para participar da festa. Nunca se tinha visto tanta alegria por ali, tantas cores espalhadas e confundidas. Dizem que uns recolhiam palavras ao vento com as mãos e lhes examinavam, estupefatos, a forma e o sentido: apresentavam-se pela primeira vez - mas logo conversavam e sorriam amigavelmente. Grandes círculos dançantes se formavam. Pessoas e vocábulos valsavam, pulavam freneticamente. Iniciavam uma agitada e harmoniosa convivência, com muita disposição e receptividade.

Dos fiscais, não se tem notícia exata. Fala-se em loucura, tristeza, e dizem até que se trancaram dentro das garrafas, sendo hoje peças de museu.


Lápis de côr., por Rui Melo

4 comentários:

  1. gostei muito,lembrei do conto do stivensom,"o diabo dentro da garrafa,um pouco mais, e se tornaria algo fantástico. Parabens

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