Manual prático de utlização
Crônica de Erica Gaião.
A alma humana carrega verdades impenetráveis. É difícil decifrar as entrelinhas daquilo que se esconde atrás de um sorriso. É difícil saber o que realmente se passa dentro do outro. Relacionar-se não é tarefa fácil. Manter um relacionamento, também não. Requer habilidade e uma dose considerável de boa vontade, para driblar situações desconfortáveis e não desejar sair correndo logo no primeiro obstáculo. É difícil lidar com o outro e com os seus pormenores. É difícil lidar com as nossas próprias vulnerabilidades. Mais difícil ainda é manter o equilíbrio e o bom senso, diante das avalanches emocionais que percorrem a natureza humana. Aliás, quando o assunto é a natureza humana, a complexidade é garantida.
Foi pensando nessas dificuldades de entendimento, que de repente me ocorreu a seguinte ideia: Como seria mais fácil se as pessoas viessem acompanhadas de um manual prático de utilização. Já pensou? Em algumas circunstâncias o seu uso facilitaria muito a vida e a durabilidade dos relacionamentos. Cada pessoa deveria conter informações básicas como, por exemplo, o seu modelo de estrutura emocional, a composição dos seus sentimentos, os possíveis defeitos condicionados ao tempo ou ao mau uso. Um guia rápido e prático para a solução de problemas, além da indicação de uma assistência técnica, claro! Já imaginou como seria ter um local especializado para levar o outro quando o problema se agravasse e não pudesse ser solucionado em casa? Um lugar seguro – e neutro – para deixá-lo por algum tempo, caso o seu bom funcionamento estivesse totalmente comprometido?
Com um manual nas mãos, teríamos a ideia exata daquilo que estaríamos adquirindo; a sua vida útil e o nosso tempo de permanência na sua vida. Saberíamos mais sobre os seus gostos e preferências, seus melindres, a delicadeza dos seus sentimentos. A forma como a pessoa lida com os seus problemas; a forma como a pessoa lida com o outro, quando se depara com o primeiro obstáculo no relacionamento. Saberíamos se seria um bom pai ou uma boa mãe, por exemplo. Ou uma boa companhia para nos abrigar quando chovemos por dentro. Saberíamos em quem confiar, quando a desconfiança fosse o tom da nossa conversa interior. Conheceríamos a nobreza do seu caráter, sem precisar testá-lo; seus possíveis vícios e manias. Saberíamos como agir e teríamos o controle nas situações mais adversas. Evitaríamos as perdas e os desperdícios de afeto. Saberíamos o que dizer e o momento exato de dizer o que pensamos, sem causar tanto estrago na vida de alguém. Tudo isso seria revelado e nós viveríamos na mais absoluta calmaria emocional. Teríamos a certeza da estabilidade, da constância… E, ao primeiro sinal de dificuldade, abriríamos o manual, consultaríamos a página correta e pronto, tudo resolvido! Aí, talvez, cometêssemos menos erros ou errassem menos com a gente. Talvez vivêssemos menos preocupados em fazer a coisa certa, pois teríamos o caminho certo das coisas. Talvez tudo fosse bem mais fácil no campo minado das relações.
Por outro lado, com a existência de um manual, perderíamos o prazer da descoberta; a emoção da construção do afeto; a alegria do compartilhamento; os atos incoerentes em uma discussão acirrada, que se desfazem com o perdão, com a força de um pedido sincero de desculpas… Viveríamos a certeza absoluta e perderíamos o encantamento da vida, que está na nossa capacidade de administrar as duas parcelas de cinquenta por cento - temos cinquenta por cento de chances de dar certo ou não. Que está na possibilidade de reinventá-la a partir de um novo recomeço, quando, por algum motivo, perdemos a rota e naufragamos. Que está, sobretudo, no amor que doamos, nas relações de afeto que construímos e nas experiências emocionais que acumulamos. Tudo seria um vazio absoluto. Não haveria naturalidade. Seríamos como peças de uma engrenagem, prontos para sermos manipulados a qualquer momento. Imporíamos aos relacionamentos uma austeridade e uma rigidez desconcertantes. E aí, talvez não fôssemos felizes. Talvez não conhecêssemos a verdadeira alegria de amar espontaneamente; a alegria de sermos amados com espontaneidade. Talvez não houvesse a entrega absoluta, sem a certeza da reciprocidade.
Não obstante, ainda há os que preferem viver sob a custódia de um manual. Que preferem imputar ao pensamento e às relações de afeto, uma norma, um roteiro, uma regra fria e desgastada, que não se encaixa em qualquer pessoa, porque as pessoas são diferentes; não compartilham dos mesmos valores, tampouco dos mesmos sentimentos. Há os que preferem as superficialidades e os enfeites. Os que deixam de viver e mergulhar nas interrogações do outro, por medo de serem abduzidos afetivamente. Entretanto, não podemos condenar ninguém por isso, pois, de certa forma, saber o que fazer e ter respostas práticas para se desviar de algumas insídias da vida, deve ser bom. Deve ser bom, também, estar no controle pelo menos uma vez, sem precisar perder a razão ou mutilar algum sentimento tentando descobrir o caminho da tal felicidade.
Créditos da imagem: olhares.pt
Leitura, por Rui Quaresma
Nossa!! O que dizer?
ResponderExcluirSou fã. Beijooo!!
"Por outro lado, com a existência de um manual, perderíamos o prazer da descoberta; a emoção da construção do afeto; a alegria do compartilhamento; os atos incoerentes em uma discussão acirrada, que se desfazem com o perdão, com a força de um pedido sincero de desculpas…"
ResponderExcluirQue incrível! Concordo plenamente!!
Gosto muito das tuas crônicas! Esta, em especial é uma reflexão leve, sutil... Parabéns e que venham muitas outras!!!