I Concurso Literário Benfazeja

Luzinha vermelha



Conto de Arnaldo Pagano

Foi dar um gole da cachaça que já sentiu aquela mão inconfundível sobre o ombro. Mão de mulher que trabalha pesado, que não tem moleza não, tá ouvindo? E automaticamente ele deixou o copo sobre o balcão do bar, fez um sinal breve com a cabeça para o dono do buteco - esse não sabia de nada, mas desconfiava, ah como desconfiava – e caminhou a passos lentos pelos pouco mais de 50 metros até o sobrado onde moravam. No meio do caminho parou para escarrar. Atitude nada incoerente com a aparência daquele verdadeiro brutamontes: cabelos despenteados, barba por fazer - há alguns anos, diga-se de passagem -, unhas sujas e mal cortadas, camiseta regata, calção rasgado e chinelo em pleno dia de semana.

Ao entrar na casa, deparou-se com as mesmas cenas que lhe conferiam repulsa e tristeza todos os dias. Ouviu o choro do nenê, as desajeitadas tentativas da filha adolescente de confortar a criança, as mãos do filho à louça e o canto tímido do rapaz. Caminhou dolorosamente até o cômodo mais escuro da casa, onde ao centro havia uma cadeira de bar. E só.

Acomodou-se e respirou fundo ao ouvir a mulher trazendo toda aquela aparelhagem, aquele equipamento, acho que filmadora. Ele não sabia bem o nome.

Luz. Que cena bizarra aquela figura grotesca com as mãos sobre os joelhos, suando feito um porco e esperando uma maldita luzinha vermelha.

A mulher liga a câmera e um monitor posicionado à frente do homem. Gravando.

- Ooooiii. Então, eu tenho uma dúvida sim. Ai eu queria saber o seguinte: eu e meu namorado a gente tá junto há seis meses já né, e sabe como é...ele tá me pressionando já porque a gente ainda não avançou em tudo no nosso relacionamento, se é que você me entende. A gente se ama muito, sabe, só que eu não sei se é a hora certa de perder a virgindade. Me ajuda?

Ele respirou fundo, ameaçou desconcentrar-se, mas manteve o olhar firme na maldita luzinha vermelha. Sentiu que suava mais ainda e decidiu responder logo.

- Não há uma hora certa para perder a virgindade. Você precisa estar segura do que quer (falava rápido para não esquecer ou perder-se no que havia decorado). E essa precisa ser uma decisão sua. Não faça o que não estiver à vontade para fazer. Procure um ginecologista (parou por uns segundos, mas súbito lembrou-se). E o mais importante: não deixem de usar a camisinha.

Terminou a resposta e foi como se tivesse se livrado de um caminhão que estava às suas costas. Respirou fundo e fez um sinal positivo com a cabeça.

- Olá, tudo bem? Eu gostaria de perguntar se...é assim, eu tenho 19 anos e já saí com meninas, mas sempre senti algo diferente perto de outros homens. Agora eu estou convivendo de maneira mais próxima com um amigo meu, mas estou muito inseguro. Eu acho que sou homossexual. O que eu faço? Eu não queria.

Passou a suar mais ainda, o que, misturado à gordura e à sujeira da face, deixou-o com um aspecto ainda mais fétido. Mexia o pé e balançava a perna rapidamente num sinal claro de apreensão. Olhava para o chão e fazia um sinal negativo com a cabeça. Mirou de rabo de olho a mulher e, como se estivesse sob a ameaça de uma arma, súbito virou-se para a câmera e concentrou-se na luzinha vermelha.

- Éeehh....você...N-não tem problema nenhum em você sentir atração por outros homens (suava cada vez mais). Isso é normal. Ser...gay. Eee...você pode ser holmos...ho-mo-sse-xual ou bissexual. Pode experimentar o que quiser se tiver dúvida. A vontade é sua.

Passou a olhar para o chão como se estivesse procurando um alfinete caído naquele quarto escuro. Parecia ter vergonha de levantar a cabeça. A mulher fez um barulho para chamar sua atenção. Ainda faltava uma pergunta. Ele levantou a cabeça e apresentou o aspecto de quem acabara de levar uma surra. Luzinha vermelha.

- Porra...eu tenho uma coisa pra perguntar sim. Minha mulher não quer mais dar pra mim. Tá com uma puta frescura. Acho que aquela vagaba tá me pondo chifre, tá ligado? E só reclama que eu não faço nada. Que que eu faço? Tô pensando em dar um jeito nela.

Pressionou as mãos sobre os joelhos para tomar impulso para levantar, mas rapidamente abortou a ideia. Estava ainda mais inquieto. Isso não, não, não pode ser, é muito, é demais. Ofegante, emitia sons estranhos ao respirar. Passou o punho sobre o rosto e, em vez de limpar qualquer coisa, sujou-se mais ainda. Quem o visse ali e não soubesse a história teria dó daquela figura. Foram dez segundos que pareceram uma eternidade de pensamentos alheios e imagens que passavam pela sua cabeça. É muita humilhação, muita humilhação. Interrompeu a respiração, a inquietação e experimentou cinco segundos de um silêncio absoluto e torturante. Agora vai.

- Se sua mulher não quer nada com você...a culpa pode ser sua (falava com a velocidade de um locutor de rodeio). Converse com ela. Se ela quiser se separar, você precisa aceitar. Você não manda nela. E se bater nela, você será um...um criminoso, um escroto imundo, que merece mofar na cadeia pro resto da sua vida!

Assim que terminou a resposta, pulou da cadeira e saiu correndo daquele cômodo. A mulher ficou ali parada, petrificada, como todos os dias daquela pena, até aquela luzinha vermelha desaparecer e ficar só o roxo do seu olho.



Arnaldo Pagano
é jornalista formado pela USP e atualmente graduando em Filosofia na mesma universidade. Atua como redator desde 2009 no Portal R7, da Rede Record.


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Créditos da imagem: Olhares.com
Camera Lens, por Pedro Alves

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