I Concurso Literário Benfazeja

Cotidiano




Conto de Maurem Kayna

Todas as manhãs, no caminho para a biblioteca onde trabalha, Célia passa pela casa desbotada e lá está o velho, varrendo o pátio de terra batida. A casa é mal conservada, já foi branca mas exibe cascas de tinta laranja e madeira despida; o telhado parece cansado com o peso dos musgos que lhe entristecem o barro. Mas os movimentos do velho são quietos, lentos, próprios das horas em que o trânsito ainda não impôs sua agitação inconveniente.

Quando consegue sair mais cedo, encontra-o onde deveria estar a calçada externa, resgatando folhas secas do chão de poeira e acumulando-as ao redor do cinamomo sofrido de tantas podas. Célia supõe que ele tenha mais de setenta anos e se encanta sempre com a vagarosidade obstinada, quase religiosa, do velho negro. Ele transmite a calma com a qual ela raramente começa o dia. Ao avistá-lo consegue antecipar a satisfação sentida no interior da biblioteca, onde o silêncio afetuoso a envolve. Várias vezes teve vontade de cumprimentá-lo, mas ainda não teve coragem. Da visão dos cabelos brancos sob o chapéu de palha, Célia constrói memórias ternas e alimenta sua vaga fé em um futuro bucólico – pensa em ser velha e calma como aquele homem.

Hoje, uma dia comum, sem nada especial na cor ou força do vento, Célia reteve a figura do velho por mais tempo. Nas quadras seguintes à casa deteriorada, desprezou os retalhos de notícia cuspidos pelo rádio e se entregou à fantasia sobre os trajetos dos supostos antepassados do varredor de folhas secas, ainda no continente africano. O jogo de inventar um passado para o protagonista de seu trajeto matinal tornou o percurso mais suave. Ao estender, com detalhes e ramificações, a brincadeira de inventar avós, mazelas e alegrias cotidianas para o morador da rua em aclive, restaurou qualquer coisa de alegria ou esperança no paladar. Quando disse bom dia à colega, o velhinho já era apenas cena que poderia ressurgir na manhã seguinte, caso o itinerário escolhido não fosse outro, mas a voz lhe saiu menos encolhida, limpa como chão bem varrido.

Para Emílio o dia não teve qualquer componente de novidade. Acordou junto com o sol, como sempre foi seu costume, preparou o café ralo e comeu o pão de milho preparado na véspera pela filha que mora na casa dos fundos. Depois de ouvir notícias e intrigas trazidas pelo rádio – o mais solene ocupante da cozinha iluminada parcamente pela janela entreaberta, alimentou as galinhas. Três aves de compleição acanhada que vivem no quintal. O aposentado é de pouca conversa com a vizinhança, mas tem palavras brandas para os bichos – uma companhia afável – que anunciam, diária e pontualmente, o depósito dos ovos graúdos e rosados no ninho de palha oferecido pelo vô Lilio.

Findas as rotinas elementares do cuidado consigo e com as aves, o velho abençoa o neto que sai com a mãe para ficar na creche enquanto ela segue para a casa de família onde lava louças e roupas, cozinha dietas e cuidados, ouve ordens e queixas para ganhar o minguado sustento dela e do menino que porta o nome do tio morto por equívoco numa batida policial. Ambos já andam longe da casa quando o avô afetuoso e sua vassoura determinada ocupam o olhar de Célia. Ele não se imagina personagem dos devaneios da moça que organiza a seção de livros de arte e fotografia, apenas repete os gestos sem cansaço, enquanto gasta a energia que não lhe sai na voz, com sonhos de ambição pouca e poesia muita.

O trabalho sai autômato porque Célia deseja saber o que pesa na existência do velho quando acaba a varrição. Ela não descobrirá que, enquanto varre e depois amontoa as folhas, Emílio replanta, na memória colorida, a lavoura de grãos variados e a horta que cultivava, sempre faceiro, ao lado de Amanda, a companheira e amante com quem repartiu metade da vida longa que ainda carregava. Sua sina era lembrar as colheitas e cantos da mocidade e repetir os dias enquanto as galinhas o acordassem. Qualquer mistério que houvesse ele atribuía a um deus que não exigia rituais. Para seu bom sono bastava o catre limpo e o corpo isento de mal-estar. Emílio tinha dias sólidos, pensamentos de contornos claros, não se perdia em abismos difíceis de descrever. Se não era uma existência feliz, ao menos não lhe afligiam dores maiores que a saudade de Amanda.

Célia não conheceria de perto a mansidão que vestia Emílio, nem sua viuvez e o convívio curto com a filha e o neto. Não saberia nada além do que a cena matinal lhe sugeria e também não entenderia nunca o motivo de se impressionar tanto com esse contato tênue entre vidas que supunha paralelas.

Havia muitos novos volumes por catalogar, o dia não parecia disposto a permitir espaço para divagações, por isso resolveu usar o horário de almoço para registrar as impressões sobre o ancião – escrever costumava trazer-lhe alívio.

A caneta demorou-se um pouco, suspensa sobre a folha pautada, e logo desatou a largar tinta no papel. Ao invés de discorrer sobre sua inveja das atitudes tranquilas do velho, Célia inventou uma vida inteira para Benedito (sempre acreditara que ele tivesse um nome assim antigo), encerrando o causo no dia em que ele teria partido das terras onde vivia para estabelecer-se com a família na cidade cheia de promessas onde agora o contemplava quase diariamente. Não sentiu o alívio esperado, mas a sensação de ter cumprido algo necessário.

À noite, em sua casa, grande demais para o frio que fazia, releu com insistência o resultado de seu não-almoço e riu de si mesma, achando-se pretensiosa. Só faltava isso agora, querer bancar a escritora. Na manhã seguinte acordou antes do despertador, mastigou devagar os minutos de silêncio que ganhara, substituindo o café que não era mesmo um hábito. Não quis esmiuçar os sonhos da noite, escolheu com calma a roupa que vestiria e, ainda no banho, decidiu percorrer um caminho diferente para chegar ao trabalho.

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Créditos da imagem
RECORDAÇÕES XXI .. por JORGE NEVES

3 comentários:

  1. Maurem,

    mais um de seus textos gostosos de ler. Muito bom!

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  2. Muito obrigada, Renê! É gostoso ter retorno de quem lê. ;o)

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  3. Naurem Kayna,um texto muito bem escrito.Uma imaginação criativa,com poesia e imagens reais por apoio à história.Dá gosto ler com interesse até o final.Gostei!

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