I Concurso Literário Benfazeja

Falando da vida


Crônica de Erica Gaião

Há uma lógica que governa a vida que, às vezes, me causa espanto. Talvez pela ironia latente, quase imperceptível, que dá o tom às cenas pessoais que experimentamos enquanto a vida passa diante dos nossos olhos, fugaz, independente, autônoma. Onipotente. E nós, espectadores de nós mesmos, enquanto somos distraídos por ela, e impedidos de fazer alguma coisa para mudar totalmente o enredo, vamos aprendendo a rir das nossas pequenas tragédias diárias.

A vida é trágica. É uma tragédia composta por sucessões, alternâncias e alteridades. E viver, um exercício de paciência que inclui entregas e renúncias, pontos de partida e pontos finais, conclusões e recomeços, altos e baixos. É... A vida é dura e não é fácil mesmo administrar tantas contradições. Viver é o ato contraditório da vida. Viver é uma ousadia, porque a vida nos condena a sua insensatez logo quando nascemos. Viver é uma dúvida eterna entre permanecer intacto – conformando-se com as exigências da vida - e buscar sentido. Nossas escolhas não são essencialmente nossas. E, embora tenhamos a capacidade de deliberar sobre isso ou aquilo, nossas escolhas são sempre escolhas impostas, porque escolhemos a partir de algo que a vida nos apresenta, e nunca a partir de algo que realmente desejamos vivenciar. Nossos medos são sempre os grandes espectadores dos nossos fracassos. Nossas certezas são sempre confundidas pelas novas possibilidades que cintilam diante dos nossos olhos, nos seduzindo e nos tirando do caminho. E nós, enquanto tentamos driblar o medo, construir certezas e acertar nas escolhas, vamos estabelecendo escalas de necessidades para se chegar a, sem nenhuma garantia de que, dentre as nossas incontáveis necessidades, exista algo que seja realmente necessário, ou que chegaremos efetivamente a algum lugar com isso. O que é necessário para você é realmente necessário ou só uma ilusão criada pelas imagens irrefletidas da vida? Pois é, já se perguntou? Eu já, mas não saio do lugar, pelo menos não como gostaria, porque a realidade acaba impondo outras necessidades e outras escolhas. E é essa cadeia ilógica de necessidades e escolhas que nos leva a criar vínculos e dependências. Falta espaço para a liberdade de ser sem amarras, porque quase tudo está conectado à outra coisa ou depende de algo para acontecer. Entendeu por que a vida é trágica? Mas, há algo de poético nisso...

Viver é ir além do que se vê. É dominar a realidade para seguir na direção do infinito e daquilo que não cabe somente na vontade. Viver é assumir riscos, quando tentamos extrapolar limites. Viver é o inexplicável que explica, em parte, a vida. É o ato de fluir por ela, atravessando o próprio caos, sem grandes sequelas. Viver é mágico quando a existência faz sentido, do contrário, viver é um fardo. Já a vida? Ah, a vida é um tumulto cotidiano; uma tensão inevitável, que nos observa com seus olhos ditatoriais, e nos condena ao seu poder absoluto, quando nos impõe acontecimentos, sem que estejamos preparados para recebê-los; sem que estejamos predispostos a cercear o nosso pensamento livre com suas imposições que nada acrescentam, mas, pelo contrário, nos eliminam aos poucos. É... Uma verdade que dói: A vida elimina nossa essência aos poucos com a sua potência. E nós vamos aprendendo a lidar com ela, enquanto cicatrizamos por dentro. Da vida eu já esperei muito, mas hoje confesso que espero muito pouco. E não pensem que eu me conformo com isso, porque não me conformo. Eu queria esperar muito mais, mas não consigo voltar ao que era antes, quando a esperança não flutuava, quando a esperança era plana e mais consistente. Condicionamento, estímulo-resposta, cansaço, sei lá... Mas, para ser sincera, no fundo, no fundo, não gosto dessa esperança pacífica e inerte; a esperança da expectativa, que nos arrasta, nos infantiliza e nos desencoraja quando somos frustrados pela vida, quando os nossos sonhos se desfazem com um sopro inesperado. Há um pouco de dureza emocional nisso, confesso, mas endurecer é inevitável quando se está vivo. Por outro lado, amo viver exatamente por isso: para compreender a vida com toda a sua tragédia; com toda a sua precariedade, e encontrar nela algum sentido, além dela mesma. Ou, quem sabe, um sentido em mim, no além de mim e da minha idêntica precariedade-humana-vivente-trágica-e-mínima, limitadora, que me faz ser menor do que eu gostaria, e me deixa tão pequena diante dessa imensidão que recobre o universo. Outra verdade que dói: É difícil ser grande quando a vida nos delimita com as suas intercorrências. Há vontade no passo, mas nem sempre o cenário se movimenta impulsionado só pela vontade. É preciso força, além da força que normalmente alimenta a coragem. É preciso muito para viver e crescer. É preciso acrescentar sentido à falta de sentido.

Enfim, eu vivo, você vive, nós vivemos para dar sentido a essa vida que nos condena, todos os dias. O que seria da vida se não fôssemos, se não existíssemos? Eu penso nisso! Haveria algo mais, além da natureza, do sol, da luz, das estrelas, dos gotejos de chuva que molham a nossa pele viva? Haveria suspiro? Haveria encantamento? Haveria amor? O que faz a vida ter sentido para quem vive de fato, é o próprio ato de existir, com todas as culpas e desculpas humanas, para amar, para ser, para se envolver, para fazer parte ou para desfazer-se de tudo não sendo nada, negando a própria existência. Há um mundo além de nós, é verdade, mas ele só existe como é, porque o vemos com os nossos olhos de experiência. Porque damos nomes as suas coisas. Porque o absorvemos e ele nos absorve também, com todas as implicações que tal relação possa trazer. Nós somos as escolhas que fazemos - ou melhor, que somos obrigados a fazer - e se escolhemos viver, que seja da melhor maneira possível. Viver em si, não é fácil. Mas não se pode evitar a vida. Porque nela há coragem, há encanto, há força. Nela há acontecimento. Nela há impulso. Nela existe o que existe em nós. E eu, você, nós, somos a coragem, o encanto, a força vital, mesmo com toda essa precariedade que nos circunda. Eu, você, nós, somos o fio condutor entre o que é e o que será até o fim dos dias. Há um abismo que nos separa da vida, mas viver é o que nos aproxima. Viver é tão profundo que, às vezes, dói. Mas tem as suas compensações... Acredite!

Créditos da imagem: Corbis Images
City skyline of Bangkok with an asian woman in emotional state in front, por David Terrazas Morales

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