I Concurso Literário Benfazeja

O tempo que eu não vivi




Deparei-me com este trecho do Bukowski outro dia na timeline de uma amiga: “Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6:30 da manhã, por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se a força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”



Ler isso foi providencial. Foi como um tapa bem na minha cara, na verdade, seguido de um grito: ACORDA! Porque essa é a realidade da maioria, inclusive a minha. Me senti confortavelmente abraçada por alguém que me entende. É bom ser surpreendido com solavancos literários de vez em quando, sobretudo quando você sabe o que quer, mas de repente esmorece e esquece. Por algum tempo eu esqueci o quanto estou soterrada nessa vida meia-boca, que o mercado e as suas exigências apresentam como o único caminho possível. Uma vida mecânica, automática, nada autônoma, que nos faz conjugar em todos os tempos verbais os seus jargões, enquanto somos idiotizados e continuamos liquidando o nosso tempo. Uma permuta irrecuperável a longo prazo. Porque o tempo passa, e não damos conta do quanto não vivemos. Sim, Bukowski, isso não faz o menor sentido, a não ser que seja algo verdadeiramente prazeroso para alguém. Confesso que um dia já foi para mim.

Eu já tive sonhos mais ousados. Já sonhei com uma posição invejável no mercado de trabalho, com uma vida atribulada, com reuniões, viagens de última hora, e por conta dessa ilusão de ótica, abandonei a filosofia no passado, para não correr o risco de questionar as minhas próprias convicções. Parênteses: Mudei de ideia, obviamente; porque a filosofia mesmo quando não está, é. Entende?  Não se abandona a filosofia quando se deixa de estudá-la mais profundamente ou quando se esquece um diploma no fundo da gaveta, como eu fiz.  A filosofia é algo que nos absorve quando entramos em contato com ela - ou quando já nascemos predispostos a ver o mundo de uma maneira diferente. Uma pessoa filosófica por dentro, naturalmente questionadora, nunca deixa de ser, ainda que o mercado tente formatá-la com seus atributos e expressões nada romanescas. E quanto mais você mergulha no estado original das coisas, mais sem sentido elas se tornam. E aí você percebe o quanto estava equivocado e tenta recuperar o tempo perdido. Talvez esta seja a única maneira acertada de reviver o passado, sem prejudicar o desenvolvimento do tempo presente: quando voltamos atrás para recuperar elos perdidos que, reconhecidamente, farão falta no futuro.

Por sorte o tempo desfaz ilusões e quando você se desilude começa a sentir-se realizado tendo sonhos mais simples. Hoje, a minha maior ousadia é sonhar com o tempo. Não o tempo que contabiliza as horas, mas o tempo que alonga os meus dias, enquanto encurta a minha entediante e exaustiva jornada de trabalho. Sim, eu sonho com o tempo, mas ao contrário da maioria, não sonho com o tempo multifacetado, composto e extenso, para dar conta das bilhões de coisas que temos que fazer todos os dias para ganhar dinheiro. Eu sonho com o tempo da simplicidade que nos ensina absorver as sensações mais profundas e significativas. O tempo que devolve a vontade de fazer coisas além das coisas que a vida impõe. O tempo do prazer, não o prazer hedonista, mas o prazer além dessa superficialidade cotidiana, que arrasta contra a parede e esmaga a cada segundo até não sobrar mais nenhum vestígio de esperança. Eu sonho com a possibilidade de um tempo mais flexível, contrapondo-se às inflexibilidades ainda necessárias que me afastam da realidade mais bonita, e que eu guardo dentro da minha casa-coração: o tempo para ser mais mãe do que qualquer outra coisa. Porque é o tempo-mãe que me recupera, quando a inexatidão da vida atribulada por uma jornada extensa, me rouba de mim. Eu preciso dar um tempo para encontrar mais tempo. Um tempo com qualidade. Isso virou um mantra para mim. E são essas notas que compõem a melodia da minha expectativa: a expectativa do tempo. O tempo para ser mais mãe da minha filha, do que filha de um mundo corporativista e desigual, que dita as suas regras e faz de mim sua refém. Porque se alguém anda perdendo alguma coisa com esse acordo, esse alguém sou eu. Ando perdendo muito tempo.

Parece papo de bicho grilo, eu sei; papo de quem quer abandonar tudo para se refugiar em alguma comunidade pacifista - o que não seria má ideia - e viver de luz, mas não é. Eu estou falando de qualidade de vida. De uma vida mais saudável e mais feliz. De um espaço maior para si mesmo e menos espaço para o que é só moeda de troca: eu vendo a minha força de trabalho, enquanto você me paga e absorve todo o meu tempo. A verdade é que damos muita importância a quem pouco se importa - porque de certa forma nos ‘sustenta’- e esquecemos de agregar mais valor àquilo que tem um valor incalculável: os nossos afetos. Tem sentido mesmo entregar parte da sua vida e do seu tempo a quem não se preocupa nem com a sua vida, nem com o seu tempo, porque a única ocupação com você é se você dá ou não algum resultado? Tem sentido deixar de participar da vida e da conquista dos seus filhos porque não pode faltar um dia de trabalho para deixá-los na escola, por exemplo? Para mim, não mais. Ouvir da minha filha a pergunta clássica sobre o porquê de eu quase nunca levá-la à escola, enquanto as mães dos seus amiguinhos conseguem fazer esse gesto simples, mudou tudo aqui dentro. O que não quer dizer que eu não goste de trabalhar e considere o trabalho pouco importante. É claro que não. Vivemos em um mundo administrado pelo capital, onde tudo tem um valor acima do próprio conceito de valor, e é com o meu trabalho que eu sustento a mim e a minha filha. Não vivo de utopias. Mas o que eu desconsidero é a tal da alienação. Desconsidero, também, a subserviência imposta, quando na verdade só existe um acordo: o do eu trabalho para você e você me paga. Mas isso não torna quem paga maior do que eu ou acima de mim.

Por isso, quando me chamam de mãe simbiótica, por exemplo, eu não ligo à mínima. Porque na verdade meu único desejo é compor o meu horário de trabalho com os horários da minha filha. Também não me importo quando dizem que eu estou na contramão da modernidade, querendo reverter uma situação histórica de emancipação feminina, porque desejo acima de outras coisas, ser mãe por mais tempo. Ou quando reivindico um tempo com jornadas mais flexíveis, porque, além de outras coisas, não desejo mesmo passar o meu tempo delegando a função de educar e cuidar da minha filha a outra pessoa, à televisão, à escola... Não me importo, e sabe por quê? Porque é a minha filha que me salva, cada vez que a vida me afoga. E quando olho para o tempo, eu vejo o quanto o tempo passou, o quanto ela cresceu, e eu não. Criamos os filhos para o mundo, eu sei. Mas, existem caminhos que são irreversíveis. Um deles é a negligência. Negligenciar o tempo pessoal em função do mundo corporativo, em troca de um salário que não consegue cobrir todas as suas despesas – porque somos induzidos pelo hábito do consumo a buscar outras necessidades - é abrir mão da liberdade. Ser livre é poder escolher, ainda que a vida não nos dê muitas escolhas. Mas escolher o que fazer dela, ou como transformá-la em algo melhor, é usufruir o direito à liberdade. É nesse aspecto que eu e Bukowski nos indignamos: Porque eu, assim como o seu personagem, também não sou grata pelo tempo que perdi e pelo que eu não pude viver.


* A frase de Charles Bukowski foi extraída do livro Factótum. O Romance de Charles Bukowski serviu de base para o longa-metragem de mesmo nome, do diretor norueguês Bent Hamer, lançado em 2005.


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Créditos da imagem:
O velho e triste despertador, por Tiago Gracio

Um comentário:

  1. Olha o tapa na minha cara tbm.
    Acho que as vezes a gente faz coisas menores por um sonho maior, como arrumar um emprego que page bem, para juntar dinheiro e depois passar um ano sabatico (?).

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