I Concurso Literário Benfazeja

Corto o rosto quando faço a barba




“Eu precisava tirar férias. Precisava de 5 mulheres. Precisava tirar a cera dos ouvidos. Precisava trocar o óleo do carro. Perdi o prazo da declaração de imposto de renda. Uma das pernas de meus óculos de leitura quebrou. Havia formigas no meu apartamento. Precisava ir ao dentista. A sola de meus sapatos já estavam bem gastas. Tinha insônia. O seguro do meu carro venceu. Toda vez que faço a barba, eu me corto. Há seis anos não dou uma risada. Costumava me preocupar quando nada me preocupava. Quando havia algo com que me preocupar, eu bebia.”

Tomava meu tarja preta. O bom e velho Joãozinho Andante, ou Johnnie Walker Black Label, para os íntimos.

Jamais me esqueci dessas palavras. Eram uma oração. Dessas coisas que aparecem na vida, sem mais nem menos, e tem tudo a ver.

Esse foi e é quem sou.

Mas não é. Trata-se do trecho de um romance escrito por Bukowski.

Li em 1994.

Nessa época eu já tinha barba. Nasci na revolução. Hoje quem faz revolução são meus cabelos. Até meu cavanhaque já começou a ficar branco. Tenho medo do dia em que descobrirei, lá embaixo, cabelos reluzentes e claros. O problema não é a cor, mas o modo da descoberta. Eu não sou muito de olhar naquela direção. Ou seja… É, você já entendeu. Por favor, diga que sim.

Em 1994 eu já havia feito barba por, pelo menos, doze anos. Mas eu continuava a tirar pedaços do rosto. Pura barbeiragem.

O tarja preta me acompanha desde que fiz amizade com um carinha rico. Ele me apoiava em tudo. Sei lá porquê. Talvez amor à primeira vista? Pare de dar risadinhas aí; pode ter sido isso mesmo. Você nunca me viu, não sabe o quanto sou gostoso e nem como sou simpático. Lógico que o cara entrou na minha.

Mas que coisa chata. Você precisa mesmo tentar entender se sou ou não gay? Dá pra levar a história sem esse detalhe?

Como ia dizendo, o carinha me apoiava em tudo. Eu gostava de Uísque, tomava Old Eight. Concordo. Eu gostava de me embebedar, porque essa merda aí não é uísque nem aqui nem na China. “Blended Whisky, elaborado com maltes escoceses selecionados, envelhecidos…” Caraca! O negócio é chique. Mas não o suficiente. E meu amigo sabia. Trouxe para mim, do Free Shop, uma garrafa de Joãozinho Tarja Preta. Mudou minha vida. Nunca mais tomei porcaria. Sei lá se isso é bom ou ruim.

Mas eu estava falando da barbeiragem, não é isso? Então… Provavelmente devido ao uso de lâmina cega. Você já passou por essa situação? Acontece que quando a Gillete está velha, não dá — ganhei uma grana para falar a marca, não vem dar uma de intelectual, analisar meu texto e dizer que criei uma metonímia. É marketing. O negócio nem é caro e a gente fica numa pão-duragem danada, daí quando passa no rosto ela não desliza, dá uma agarradinha básica na pele e “vapt”, tira um pedaço. Solução: um pedacinho de algodão para parar o sangue. Tem cara que coloca sal. Mas eu sou mais… Sei lá, o negócio arde pra caramba. E quando a lâmina é muito nova, a gente esquece que é nova e vai metendo com vontade nas bochechas e… isso mesmo: “vapt”. Lá vem o algodão. Entre Gillete nova e Gillete velha, temos um tempo para a cicatrização dos cortes.

Por falar em arder. Estou com dor de dente. Não posso ir a minha dentista. Estou apaixonado por ela. Fico de boca aberta para aqueles olhos azuis brilhantes e o sorriso branco (imagino que seja branco, afinal ela é dentista, mas está sempre de máscara, nunca vi os dentes). A última vez que fui lá estava chovendo demais. Não sei se já te contei, mas eu não tenho carro. O negócio é busão, metrô e pezão mesmo. Táxi nem pensar. Os tempos são de recessão. O transporte coletivo é bom, pero no mucho (não recebi para falar bem da prefeitura, então sinto muito, o transporte urbano é uma merda mesmo), cheguei na dentista igual um pinto molhado. Os sapatos estavam nojentos. Fiquei sem saber se deveria entrar descalço ou não. Olhei bem, nada de sapatos perto da porta. Olhei quem estava lá dentro, todos calçados.

Entrei.

Sentei.

Peguei um livro.

Olhei para a porta e lá estavam elas.

Minhas pegadas.

Olhei para a secretária, ela estava ao telefone. Olhei para os pacientes, um cochilava — já estava até de boca aberta, preparado para a consulta — e a outra lia aquela revista de fofocas. Voltei para a porta como se ninguém tivesse me visto entrar.

Tirei os sapatos.
A meia estava furada.

“Foda-se.”

O dorminhoco foi atendido, a fofoqueira também e eu ali, naquela sala abafada com cheiro de queijo. Alguma coisa podre. Devia ser a chuva.

Finalmente chegou a hora de abrir a boca para a linda dona dos mais brilhantes olhos azuis. Sentei-me na cadeira. Ela começou a fungar.

“Cheiro estranho…”

“Não estou sentindo.”

“Talvez seja a chuva.”

“Talvez…”

“E veio hoje por quê?”

“Dor.”

“O de sempre?”

“O de sempre.”

“Acho que vamos ter que fazer uma peça.”

“Do Shakespeare?”

“O quê?”

“Estou brincando. Peça. Teatro. Shakespeare…”

“Ah! Não. Uma prótese.”

“Eu sei.”

“Então?”

“Então o quê?”

“Vamos fazer?”

“Não sei.”

“Nossa! Mas que merda de cheiro é esse? Opa. Desculpa. Vou abrir a janela.”

Com o olhar, acompanhei minha doutora até a janela, depois até ela se sentar na cadeira novamente. Foi nesse momento que notei meu dedão. Parecia dar um “Curti” naquele Facebook real. O que era pior: a unha estava grande.

O que acabou comigo? O cheiro podre vinha deles. De meus pés.

Nunca mais quis voltar.

Saí tão rápido que deixei para trás meus sapatos. Depois a secretária ligou:

“Sr. Belizário, os sapatos pretos, couro, envelhecido, com a sola bastante gasta, esquecidos no consultório…”

“Não, querida. Eu não tenho sapatos com solas bastante gastas e também não vou a consultórios. Até logo. Quer dizer, tchau. Porque se não vou a consultórios, não irei aí, dessa forma, “logo” não é opção. Ah! E não sou o Sr. Belizário.”

Desliguei o telefone pensando em como eu precisava ir logo ao oftalmologista. Nada a ver, não é? Mas pensava que minhas vistas, até então impecáveis — jamais usei óculos de grau — começaram a titubear, principalmente quando, de madrugada, só me restava assistir aos entediantes programas de TV, se não quisesse fritar ali mesmo, na cama. Quinze minutos de um lado, quinze do outro e assim sucessivamente até dormir, ou não.

A insônia era resultado da preocupação.

Você tem razão. Eu fazia nada. Sentava no trono do meu apartamento com a boca escancarada cheia de dentes tratados pela gata de olhos azuis e tomava uísque de terceira, até o dia que comecei a tomar o de primeira e nunca mais vi aquele par de olhos porque minha meia estava furada, minhas unhas grandes e meus pés podres.

Mas agora estou preocupado. Meu dente dói, estou sem mulher há muito tempo, nunca me lembro de comprar cotonetes, meu apartamento está infestado de formigas, preciso ir ao oftalmologista e, como disse, estou preocupado, então vou tomar meu tarja preta.

Acho que é ele o responsável pelos cortes em minhas bochechas quando vou me barbear. A culpa não é da Gillete.

Ah! Puta merda, esqueci: tenho que trocar o óleo do carro e fazer a declaração de imposto de renda.

Ufa! Não tenho carro. Mas preciso fazer a declaração de imposto de renda.

Talvez eu continue alguns anos sem rir.

Dizem que formiga faz bem para as vistas. Será verdade?

2 comentários: