a primavera de allen ginsberg
ferida oculta pelo tecido azul da camisa e algumas notas enroladas num barbante madrugada em frente à estação de trem e alguns balões vermelhos despencam da janela doze tiros de cachaça, algumas doses de gim (o vagabundo que roubamos na quarta) e o olhar atento da outra boca sem dentes sabemos que dentro em breve a alegria de estarmos estirados no frio, surpreendentes, não bastará para estancarmos o rancor que rescende de seus olhos vermelhos de fósforo e tocar em seus dedos e lamber a cria, ou balançar em seu corpo - melancólico monolito - pode represar o suave olor de água morta - uma noite para amarmo-nos secos - enquanto os carros nos ignoram, cor acinzentada, passamos o dia sonolentos, escravizados, quedamo-nos como gafanhotos, devoramos o verde de nossos ventres e tolhemos os melhores vinhos na língua e na acidez de nosso abandono. 2 vão fluindo para debaixo da cama despreparada os sabores, o passado, o dia seguinte, a fotografia o gozo, a anedota, os afazeres, o cismo, abandonam nossos corpos como alimento esquecido fixam-se na lajota umedecida como sibila, o azul esvaecido dá lugar a noite e novamente, como as letras de um livro velho vou desaparecendo totêmico enraivecido, terno, com os joelhos dobrados é sonho, na verdade. é rio, na verdade. almejo o outro lado, na verdade. eu rio, na verdade. não estou aqui, na verdade. o homem, na verdade. a pele sem vinco, na verdade. a menina, feita de papel e música sábia cicatriz calada, risca os olhos de lua envolvida nas matemáticas do som ela vive e grita, gritemo-nos e no retorno do grave, quem me vai de um lado ao outro? da boca, algumas estações, de primavera, verão, alguns invernos, diversos outonos acarinham a boca que entre lábios quer falar orientes e morrer cinematograficamente ela poderia deixar verão e produzir o pão do próprio afeto não posso oferecer mais do que cano de aço frio e o mastigar do fruto de seu grande lábio uma cadeira grande, pintada à mão, algumas notas de perfume no banheiro, roupas, talheres, camisas, um pote de oceano pacifico transbordando comiseração, quadrinhos nostálgicos e luvas. como em psicologia o sofrimento vai mais longe que o preto que usamos nos olhos, até formar asas na ponta dos olhos. num puxar os olhos em que atrás da cabeça desce o castanho crespo que encaminha o desenho para o fim.
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Créditos da imagem: Bob Dylan e Allen Ginsberg visitam o túmulo de Jack Kerouac em 1975.
photo de Ken Regan
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