I Concurso Literário Benfazeja

Biológica obsolescência



Conto, por Celly Monteiro.




Naquele dia ela bateu à sua porta cedo, não tão cedo que já não estivesse acordado. Acordava com as galinhas, e ficava ansioso que os outros também acordassem para que a casa ficasse movimentada, e o dia então finalmente começasse para todos. Aquela novidade para ele soou especial. Pressentiu alguma coisa escondida, alguma surpresa guardada para aquele dia em questão. A expectativa aumentou quando ela avisou que fosse tomar banho enquanto arrumava algumas coisas, pois iriam sair. Não perguntou o que era para não chateá-la com sua curiosidade.  Melhor obedecer e não aborrecer.

Ensaboou-se com certo friozinho na barriga. Pensou em quanto gostava de surpresas. Gostava também da casa movimentada, do zunzum de vozes, de passos apressados para lá e para cá, daquele alvoroço tão intimamente familiar. Talvez fossem sair todos juntos. Seria um dia bom então, mesmo que fossem apenas no supermercado. Afora o cansaço, seria bom, tinha certeza.

Às vezes se distraia olhando o movimentar dos outros, as conversas que muitas vezes não lhe fazia sentido, mas cheia de uma afobação entusiasmaste, de um calor tão apreciativo. De tão distraídos nem o percebiam escutando, observando. E ele se divertia só de ouvir, mesmo sem ser incluído na conversa. Ouvir e tentar acompanhar um assunto alheio era melhor do que aquele jogo de quebra cabeças que sempre se pegava fazendo, tentando preencher lacunas vazias de lembranças. Tentando fazer a custo tudo tomar um sentido. Esse jogo era chato, exaustivo, às vezes angustiante. Melhor era se distrair ouvindo os outros, com aquele entusiasmo quase inesgotável que possuíam.

Agora mesmo se perdeu tanto dele mesmo pensando que ela teve que o repreender. Estava demorando demais com o chuveiro ligado. Assim não havia conta de água que agüentasse. Que saísse logo do banheiro.  Ela havia deixado sua roupa preparada em cima da cama o esperando e os chinelos a um canto. Era mesmo verdade, iriam sair. E ele iria junto.

Ah como apreciava sair, passear pelas ruas, olhar pela janela do carro, sentir a brisa no rosto, ver gente nova. Esquecera de dizer a ela o quanto apreciava passeios. Na mesa do café diria, mas também acabou se esquecendo. Mas quando lembrou de dizer quando iam saindo, não entendeu por que ela o tratara com aquela impaciência dizendo que ele não precisava dizer aquilo novamente. Era só uma forma de agradecer a chance daquele passeio mostrando a ela que ele estava feliz, não queria aborrecê-la, mas sempre acabava fazendo, mesmo sem saber por que ou como. Prometendo não importuná-la mais resolveu guardar pra si mesmo aquela animação.

Todos haviam estado presentes a mesa do café, mas dos outros, só ele sairia com ela e o marido, e quilo aumentava ainda mais aquela sensação de importância. A mesma daquele primeiro dia na escola, quando havia uma roupa para ele preparada em cima da cama, um lanche reservado, a mochila com suas coisinhas e os três indo para um lugar que ele não imaginava o que era, ou como seria lá. A sensação de mistério, expectativa era muito parecida com aquela. Ela também aprontara suas coisinhas. Prepara um lanche só pra ele. Isso, além do suspense gostoso no ar, deixava nele a sensação de ser importante, de ser querido e lembrado, ao menos naquele momento. Sim, a sensação era muito parecida a aquele primeiro dia na escola.

Mesmo sendo tão cedo, todos já haviam acordado. Ela acordara a todos eles. Ela estava sendo impagável naquele dia. Na mesa do café estiveram todos reunidos, e a forma como passavam olhares para ele mais do que o comum só aumentava aquela sensação de notoriedade. Ah, como aquele dia começara bom! Sentira até lágrimas nos olhos quando na porta, num relance de olhar, dera com todos aqueles olhos nele, todos eles respondendo a seu acenar de até logo antes de sair para o corredor. Que sensação estranha sem um motivo aparente! Uma emoção incompreendida. Talvez aquela expectativa lhe deixasse emotivo assim de repente. Ou talvez tivesse ficado muito tempo esquecido em casa e a emoção fosse só gratidão.

Ela tinha estado especialmente carinhosa naqueles momentos seguintes do passeio, esperara paciente ele com seu andar moroso chegar até o carro, ajeitara o cinto para ele de bom grado. E depois, quando pararam, lhe dera o braço para apoio naquela aproximação tão confortante, tão alentadora. Era tão bom ter a atenção de sua menininha novamente. Ter seu carinho, sem precisar se sentir, ao menos naquele momento, apenas um empecilho para sua paz e felicidade.  E naquele instante em que pararam e entravam naquele recinto tão espaçoso onde as pessoas se moviam silenciosamente como se fossem espectros, fantasmas apagados sem energia alguma, se sentiu novamente emocionado, pela aproximação carinhosa, pelo cuidado, por estar com ela mesmo em um lugar estranho. Mesmo naquele lugar que de imediato lhe pareceu tão pavoroso, onde não havia os gritos dos netos ou sua movimentação desvairada.

Lá ele foi especialmente atendido, exatamente como naquele primeiro dia da escola. As pessoas de branco lembravam os professores, com aquela atenção artificial e até incômoda. Mas os seus outros companheiros tão apáticos e conformados nada tinham de parecidos com aqueles de outrora, do raso de suas parcas lembranças.  Ela esteve com ele durante alguns minutos. Passearam pelos corredores, sentaram-se em um banco no jardim e ficaram apreciando aquele silêncio que lembrava cemitério. Ele permanecia calmo, observando como sempre, apenas com não muito interesse dessa vez. Ela, no entanto, parecia impaciente. Duas ou três vezes a percebera se preparar para levantar e desistira logo em seguida. Enfim, decidindo-se finalmente, levantou. O entregou aquele lanche que havia preparado logo cedo, beijou rapidamente sua testa e partiu apressadamente sumindo logo em seguida com o marido pelos corredores.  Como um déjà vu daquele primeiro dia de escola ficara aquela mesma sensação de abandono, porém desta vez, tinha certeza; não era uma sensação falsa.  Ele havia sido entregue a seus fragmentos de lembranças e aquele silêncio quase inquebrável até quem sabe quando seu fim chegasse.

*

Créditos da imagem: Olhares.com
A VELHICE, por Rui Miguel

3 comentários:

  1. Celly, seu conto me mobilizou do início ao fim. Gostoso de ler, envolvente em suas palavras, em sentimentos que são revelados pelo personagem. Senti com ele sua felicidade ao reter todas as atenções, sua gratidão pelos afetos recebidos. Mas senti muito, demais, a dor de seu abandono e a sua decepção, pois tudo o que recebera fora nada mais do que uma preparação para a despedida, para o seu afastamento do convívio familiar e como deve ser doloroso para o idoso quando se sente assim, descartado, como uma peça que não tem mais utilidade.
    Parabéns, querida, pela sensibilidade aguçada, você, ainda tão moça... Um grande beijo.

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  2. Celly, parabéns pelo texto, muito bacana, continue!

    bjocas, inté!

    teo balaven

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  3. Agradeço muito a leitura Iane e Teodoro Balaven, abraços!

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