I Concurso Literário Benfazeja

Alvos delírios: insana-mente


O meu cavanhaque está ficando branco. Ainda não denuncia, mas eu vejo.
Dizem que sou jovem, não aparento a idade que tenho. Discordo. Todos os dias encaro rugas e esse fio de cabelo branco. Sem contar no brilho eterno da cabeça grisalha. Eterno enquanto este corpo durar. Dizem que depois que a pessoa morre, os cabelos ainda crescem. São eternos. Até que apodreçam. Isso no caso de o corpo não ser cremado, é óbvio.
Já transmiti o legado de nossa miséria, mas não esperava que tudo acontecesse tão rápido.

Eu andava de um lado para o outro, em movimentos bruscos.

Os braços eram erráticos, cada um em um ritmo pareciam tentar acompanhar o corpo que já não se sentia habitado. As pernas pareciam não dar conta do peso que precisavam transportar.

Parei.

Diante do espelho, a mão direita, inconformada com o estado em que o rosto se via, cobriu a área que pode, levantou-se espalmada, dona do momento, como se comandasse o que seria refletido no espelho: calou a boca; obstruiu o nariz, que se esforçava para buscar ar por entre os espaços deixados pelos dedos; não alcançou, mas quase vendou os olhos — eles conseguiram, no entanto, espiar por sobre as unhas o reflexo que o espelho insistia em mostrar.

Eu tentei me virar. Contorci-me.

Correr significaria apagar minha existência, já que o espelho falharia em sua reflexão.

Então, depois de tudo que passei…
Não corri.

Os joelhos se dobraram, os músculos das coxas se contraíram enquanto os da panturrilha pareciam se contorcer. A mão direita esticou-se e o braço já não viu saída, precisava acompanhá-la. Os dedos se juntaram para abraçar a maçaneta da porta com cada uma das falanges. A porta mexeu.

— pare, olhe, inspire! — 

“Está com cheiro de perfume velho aqui. Espero que as lâminas não tenham envelhecido também.”

Os olhos procuraram de um lado ao outro do armário. Precisaram ser levemente fechados para encontrar o foco necessário antes de mirar o objeto desejado.

No fundo do armário, as lâminas enfileiradas na máquina parecem estar esquecidas, largadas.

“Venham. Eu tiro vocês dessa. Já estou cansado disso tudo. Agora é a hora.”

A mão aproxima-se da máquina que, ao toque dos dedos, entrega-se por inteiro ao calor daquela carne há tanto tempo distante.

Não demora muito, a máquina deita-se na pedra, troca a maciez da pele, por toda frieza que um pedaço de mármore pode oferecer. Mas em breve estremecerá, quando seu fio penetrar a tomada, lá onde a energia espera.

A máquina vibra. Ecoa um estridente zumbido.

No mesmo instante em que o espelho reflete a porta do banheiro se abrir.

Enquanto as lâminas caminhavam por meus cabelos, a porta ainda se movimentava para escancarar-se.

Eu sentia o prazer do toque das lâminas em meu couro cabeludo que se arrepiava com a vibração.

“Amor? É você?”

A porta terminou seu deslize e encontrou a parede gelada.
O espelho, insistindo em refletir o que se passava no ambiente, não deixou de anunciar o perigo:
— um homem e seu revólver —

A arma não demorou e logo acariciou minha pele. O homem não deixou de anunciar-se.

“Sou corrompido pelo sistema, faça o que lhe peço, porque eu acredito ter poder.”

A máquina não parou de passear por minha cabeça.

“Vamos, largue essa máquina.”

“Minha esposa chegará a qualquer momento. Eu tenho muito ciúme e uma espingarda.”

“Eu disse: largue essa máquina.”

Em momento algum a máquina parou.
A mão, ziguezagueava, parecia, de repente, ter perdido a prática.
A arma cutucava meu ombro erguido, rijo.

“Eu disse: minha esposa chegará a qualquer momento. Eu tenho muito ciúme e uma espingarda.”

“Você quer morrer?”

“Não. Só quero raspar meus cabelos. Sempre quis isso.”

A máquina ziguezagueava como se fosse inexperiente.
A arma pressionou minha pele que foi forçada a entrar pelo cano, frio.
O espelho insistia: refletia tudo.

“Vamos! Desliga essa máquina!”

“Mas se eu...”

“Se eu…? Se eu nada! Faz logo o que eu tô mandando!”

No couro cabeludo, já despido pelas lâminas, a arma pousou sua ameaça gélida.

“Eu tenho uma esposa...”

“Mas que merda é essa? Desliga a máquina!”

“Eu só quero terminar de raspar meus cabelos.”

“Quer terminar? Então eu vou terminar para você. Vou acabar logo com essa história.”

“Eu só quero...”

“Você não tem direito de querer! Está a mercê do conto. Sua vida é uma trilogia e você acaba de chegar ao terceiro episódio.”

“Mas logo agora que consegui fazer a barba sem me cortar, constituí família, tive sucesso na carreira de escritor de discursos e finalmente resolvi meus problemas de auto-estima?”

O dedo do homem movimentou-se como se fechasse o punho.
O dedo estava no gatilho,
que se recolheu,
no segundo antes de o espelho parar de me refletir.

A máquina, no chão, continuou a vibrar, agora sem o êxtase de cortar meus cabelos. Eu que tanto havia sonhado com esse momento.

“Eu falei que era pra desligar a máquina. Eu sou corrompido…”

A boca do homem pronunciou as primeiras palavras escutadas por minha esposa. Desejei que ela se salvasse. Mas sua história também teria um fim.

Eu que estava caído no chão, ao lado da máquina que continuava a vibrar, mesmo sem ter para quê, apenas pude desejar que meus filhos não me vissem daquele jeito. Meu cabelo estava mal cortado, meu couro cabeludo machucado.


Mas eu vi.
Através do espelho.
No meu corte de cabelo.

Dedico este conto “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”.

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