I Concurso Literário Benfazeja

A Lua de Sírio




Da janela da balsa, a metade da lua resistia em minguar. Faixas fragmentadas de um clarão amarelado contornavam a embarcação e apontavam seu caminho. Arquiteturas antigas esverdeavam-se no silencioso horizonte do mar. Embora o horário fosse avançado, uma gaivota desgarrada pipilava perto da única janela a receber a aragem da saudade. Além de Sírio, três pessoas, dois homens e uma mulher, espalhavam-se no interior daquele gigante flutuante. A mulher dormia com a cabeça pendurada para frente de tal maneira que seu queixo mal se acomodava entre os seios avantajados. Um dos homens lia o jornal do dia seguinte, um domingo, já quase batendo à porta do tempo. O outro espanava, com a mão direita, um pequeno inseto teimoso, persistindo em se aventurar em suas intimidades.

Quanto mais a barca deixava espumas brancas para trás, mais Sírio puxava o negro passado para frente. Como bijuterias, o passado dourado descascava e escurecia. A água cristalina cedia espaço às borbulhas, turvando a visão. Bolhas de oxigênio que encapsulam macilentas memórias. Logo em seguida abrem mão, explodem a fina película, desfazendo-se de toda história retida até então. Sírio esticou o braço e tentou enxugar uma lágrima da lua. Mesmo valente e obstinada em não desaparecer, minguava à nudez do olhar de quem se arriscava em ver. A lágrima teimosa, driblando a mão que tentou recolhê-la, escorregou e caiu no mar, revoltando-o. A embarcação chocalhou. Foi para um lado, para o outro, imbicou e depois bateu com a popa na água, levantando os passageiros de seus assentos.

A mulher abriu os olhos assustada. Levou a mão esquerda ao pescoço, sentindo um leve torcicolo pela má posição. Um pequeno volume de saliva deslizava pela acentuada curvatura do busto. Limpou-se discretamente com a ponta dos dedos médio e o indicador. Espreguiçou, relaxando-se outra vez e se ajeitou no assento para voltar a dormir. Arrumou o pescoço para evitar dores pela postura incômoda. Mas mal pegou no sono, a cabeça novamente desequilibrou para frente e seu queixo apontou para o centro dos seios fartos. Pelo solavanco, o jornal do outro passageiro, antes devidamente esticado, fora severamente amassado pelos braços desencontrados que outrora o mantinha liso. Algumas folhas se soltaram e se misturaram no chão da balsa. O homem se levantou, abaixou-se e catou folha por folha até ajeitá-las na dobradura adequada e se sentar no mesmo lugar de antes para voltar à calmaria da leitura.

O terceiro passageiro quase não sofreu o impacto da sacudida brusca da embarcação. Permaneceria no assento, praticamente sem se mover, se não fosse por uma repentina inspiração na hora errada. Além de ar e maresia, levou para dentro de suas narinas aquele mesmo inseto, bicho incansável, que não cessava de lhe importunar e de rondar seus orifícios faciais. Em franco desespero, bateu repetidas vezes na nuca com o pulso esquerdo. Acreditava, assim, expelir o infeliz que já lhe fazia cócegas nas vibrissas do nariz e ameaçava aprofundar até o muco da garganta. Inquieto, quase enlouquecendo, saltou da cadeira com os braços erguidos, rodopiou, sacudiu as mãos, prendeu a respiração e, sem que pudesse suspeitar de tal acontecimento, outro inseto vindo do mar entrou, sem titubear, na outra narina. Seus olhos lacrimejaram, sua face contraiu e um espirro estrondoso, estremecendo os demais passageiros pelo susto do barulho inusitado, fora capaz de eliminar os dois insetos de uma vez só. Inertes, ambos caíram no assoalho da balsa, envoltos numa estranha viscosidade. Mais sossegado, o terceiro passageiro sentou-se novamente até que um terceiro inseto aparecesse e desencadeasse a repetição da série de espanadas.

Sírio, que navegava com o braço espichado para fora, enxugando a lágrima da lua, com o sacolejo pela queda da triste gota salgada, projetou tanto o seu corpo pela janela que conseguiu tocar a superfície lunar. Sua carícia imprevista arrancou do satélite tristonho um sorriso espontâneo. Subitamente, o sossego retornou ao ambiente marítimo e ao interior daquele gigante flutuante. Com a sutileza de um giro, a lua deixou de ser minguante e se tornou crescente. Olhou para Sírio com ternura e recuperou seu aspecto habitual a olho nu. Ainda contemplando-a, visualizou o semblante de sua antiga amada. Parecia um retrato refletido no rosto gelado da lua, ondulado pelo movimento do mar. Demorou-se observando a imagem que logo se dissipou. Um sabor amargo invadiu seu paladar. Pegou uma balinha no bolso de sua camisa, desembrulhou-a e a colocou entre os lábios para amenizar o gosto ruim. Crispou os dedos e apertou os lábios, derrubando a bala no chão.

A janela de madeira envelhecida estava escorada por uma frágil presilha que se desprendeu, fechando-a. Do vidro imundo, a lua perdeu o brilho. A imagem da mulher ficou borrada, disforme, parecendo mau agouro ou assombração. Empapado por uma inesperada suadeira, tentou afastar os pensamentos que clamavam pela angústia de uma perda irremediável, espanando-os, assim como seu vizinho afastava em vão os insetos teimosos que lhe rondavam a cabeça. Sírio se levantou para mudar de posição e se surpreendeu ao notar que na balsa havia um quinto passageiro. Com ele, contara apenas quatro. Mas havia mais uma mulher. Estava encolhida na poltrona justamente em frente à dele. Ela mantinha também o olhar fixo para a lua. Sua janela ainda estava aberta. Sabe-se lá o que ela imaginava ao contemplar a paixão lunar. Provavelmente, a lua dela não era a mesma que a dele. Para Sírio, estava crescente. Talvez, para ela, continuasse minguante. Ou, quem sabe, lua cheia ou nova?

Ficou na ponta dos pés, atrás do assento dela, e esticou o pescoço para melhor vê-la sem ser notado antes do tempo certo de se apresentar. Estava de pernas cruzadas. Sua saia de tema florido permitia que as coxas grossas e bem torneadas ficassem à mostra um pouquinho acima dos joelhos, também bem modelados. No colo, um romance aberto, abandonado, com a capa virada para cima. Ela pousava sua mão esquerda na lombada do livro, enquanto a outra, apoiando o cotovelo no parapeito da janela, sustentava o queixo sobre sua palma aberta, com o olhar perdido no horizonte. Seu rosto harmônico era constantemente afagado por fios esvoaçantes dos seus longos cabelos lisos e loiros, encaracolando suavemente nas pontas pelo sopro do mar. Sírio retornou ao seu assento, ainda meio indócil.

Sentiu outra vez um frio na barriga, como há tempos não sentia, ao ver aquela mulher. Em seu próprio assento, esboçou um leve sorriso, assim como a lua outrora também esboçara. Tentando vencer a timidez e puxar assunto, sem abordá-la diretamente, comentou qualquer coisa sobre a beleza melancólica daquela noite. Apesar de nada verbalizar, a mulher se mexeu no assento da frente, erguendo o corpo. O tom loiro das madeixas ao luar despontara, ao inebriante olhar de Sírio, como o frescor perfumado de margaridas do campo. Ele arriscou a introdução de um possível diálogo ao ver que a mulher endireitara o corpo no assento:

- Desculpe-me. Não sabia que tinha alguém sentado aí. Estava só pensando alto. É que esta noite, nestas circunstâncias, há algo de tão sublime no ar que não resisti e exclamei o meu entusiasmo. Você estava dormindo? Eu a acordei? Desculpe-me novamente.

Ela relutou um pouco, permanecendo na mesma posição, sem se mexer. Mas não resistiu para conhecer o dono daquela voz e se virou, apoiando-se no encosto com um sorrisinho tímido no canto da boca. Ela então concordou sobre a beleza daquela noite, afirmando que era exatamente o que fazia, contemplando a luz diáfana do luar. Contente pela postura receptiva da moça, Sírio prosseguiu o diálogo:

- Foi falta de educação começar uma conversa sem me apresentar. Eu me chamo Sírio. E você?

- Prazer... Ângela! – E estendeu a mão para cumprimentá-lo.

Ao retribuir o aperto de mão, segurando gentilmente a mão de Ângela, ela o puxou, dizendo:

- Venha aqui, mocinho! De onde eu venho damos três beijinhos para selar uma amizade.

Surpreso e um tanto acabrunhado, Sírio embarcou no fascínio e sedução de Ângela e perguntou de onde ela veio.

- Vim da lua!

- Da lua? Como assim?

- Dizem que sou meio aluada, alienada, apaixonada... Sei lá... Dizem que eu não raciocino direito, que me entrego e me estrepo.

- Acho que eu também sou meio assim. O que você busca da vida?

- Amar o amor.

- Como? Você ama ser amada? Ama amar? É isso? Não compreendo...

- Eu amo amar o amor!

- Acho que eu sou cimento...

- Hum... Você cola e endurece?

- Não. Não sei. Talvez. Mas eu falei a palavra faltando uma letra. Faltou a letra “u”. Quis dizer “ciumento”. Acho que sou ciumento...

- Não ajudou muito. Continua colando e endurecendo!

Os dois riram gostosamente até Ângela observar que eles riram juntos. Coincidentemente, riram ao mesmo tempo.

- Será que nossos nomes combinam? – Perguntou Ângela saindo do seu assento e indo se sentar ao lado de Sírio.

- “Sirângela”!! – Ele exclamou olhando diretamente para os olhos de Ângela, deixando despontar um leve sorriso.

- Que horrível! – Exclamou Ângela novamente caindo na gargalhada.

Sírio a acompanhou numa gargalhada febril até que, interrompendo o riso para que o fôlego fosse recuperado, suas mãos se esbarrassem num toque agradável no braço da poltrona dele. O rápido roçar cedeu lugar às mãos dadas. Nesse instante, ambos subiram vagarosamente o olhar até que se encontrassem, recheados de ternura. Uma troca de toques singelos antecedeu o beijo que os tirou do envolvimento lúdico inicial e os transportou para a delicada seriedade do amor.

Com a cumplicidade de uma lua cheia de fineza e afeto, Ângela e Sírio seguiram viagem juntos. Rumavam pelo caminho do coração. Aquele gigante flutuante substituíra de vez a frieza da solidão pelo manso calorzinho de carinhos e canduras. Mesmo antes de conhecer aquela doce mulher, os dois já estavam conectados. Sírio se encantou ainda mais ao se dar conta que o fato de não ter visto Ângela desde o início não significava que ele não lhe desse atenção, mas sim, nada mais nada menos, que ela e ele se completavam, formando uma única e só pessoa. Ela estava nele e ele nela, por isso ele não pôde vê-la antes da hora. Estavam apenas, sem saberem, à espera daquele encontro. A lua minguou, cresceu, mas jamais se encheria ao ponto de uma ruptura. O amor deles se renovava continuamente. O amor jamais deixou de ser lua. Sempre uma lua nova.

Escrito por Alex Azevedo Dias.

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