I Concurso Literário Benfazeja

À mestra, com carinho




A farda de esgrima, saiote curto, meias brancas, máscara e um coração de feltro vermelho, bordado no lado esquerdo da túnica. Naquele tempo, quando fazia o curso de Educação Física na Escola do Largo de São Francisco, esgrimia-se. En guard!, a disputa começava e, enquanto eu me distraía, minha oponente espetava o florete que tocava reto no meu coração exposto. “Defenda-se, menina, defenda-se! Olha o coração desprotegido!” – gritava o treinador.Professor... É o meu ponto fraco. – colocava a mão em cima do recorte em forma de coração - Meu ponto fraco...

O trecho acima descreve uma lembrança que Lygia Fagundes Telles contou em uma entrevista e acho que é bastante sugestiva para a maneira como ela escreve sua obra, como se falasse diretamente ao coração e atingisse nossos pontos fracos com verdades ácidas.

Pensei em deixar aqui uma breve homenagem a essa maravilhosa escritora brasileira pelo seu aniversário que aconteceu no mês passado (19 de abril) e também por motivos pessoais. A obra de Lygia é provavelmente a que mais me influenciou na escrita e que mais emocionou até hoje.

Em uma primeira leitura, a escrita de Lygia Fagundes Telles pode causar estranhamento. A mistura de realidade e fantasia de forma extremamente natural, o uso do discurso indireto livre, e a mudança, às vezes abrupta, de foco narrativo.

Apesar da narrativa de Lygia ser difícil às vezes, de uma tristeza latente e até um pouco amarga, o humor está presente, frequentemente de maneira satírica, principalmente nas personagens que gostam de soltar o verbo, “esculhambar” fatos corriqueiros, se afundar na realidade cotidiana e, por isso mesmo, fugir dela.

Lygia ocupa hoje uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e tem uma obra farta em contos, arte na qual é mais consagrada. No entanto, neste artigo falarei um pouco sobre os romances de Lygia Fagundes Telles e seu estilo peculiar.

A grande trama dos romance e contos de Lygia Fagundes Telles acontece na mente dos personagens, é uma narrativa muito introspectiva, rica em devaneios, memórias e fantasmas do passado. Portanto, o enredo da história em si, às vezes se torna secundário e a importância da narrativa é centrada nos personagens e em seus dramas.

Apesar de Lygia ter iniciado sua carreira e ter sido consagrada como exímia contista, decidi expor neste texto apenas seus romances para conhecermos melhor este outro lado de sua arte.



Ciranda de Pedra

A “ciranda de pedra” a que se refere o título do primeiro romance de Lygia é uma roda de anões de jardim de mãos dadas. Essa roda é para a protagonista, Virgínia, o lugar onde seus irmãos estão e ela está impossibilitada de participar.
Assim, Virgínia se encontra solitária, sem ter com quem formar laços e sem saber qual é o seu lugar.




As Meninas 

É uma das obras mais politizadas de Lygia, pois abrange de forma particular o período da ditadura no Brasil. Em sua maior parte a história se passa em um internato de freiras e as três personagens principais são Lorena, menina de classe alta, que praticamente vive trancada em seu quarto fazendo exercícios, ouvindo música e tomando chá; Lia, ou como é chamada Lião, é militante, preocupada com problemas sociais; Ana Clara, ou como é mais chamada, Ana Turva, enfrenta problemas com drogas, sofre de depressão e tem memórias frequentes de abusos que sofreu na infância. Drummond descreveu este livro como “matéria viva e lancinante”. Acho que ele tem razão.

Verão no aquário

Neste romance, a personagem central, Raíza, se encontra aflita por imaginar que sua mãe tem uma relação amorosa com André, por quem nutre uma paixão. Ela também remói o passado, a dor de nunca ter investido na carreira de pianista e a vontade de voltar a praticar, a angústia de estar solitária desde o falecimento do pai, vítima do alcoolismo, e de não conseguir se aproximar verdadeiramente da mãe. Lygia aprofunda assuntos presentes em Ciranda de Pedra, como, por exemplo, o desprendimento involuntário e a vida desordenada da personagem principal que não consegue se apegar a nada por sentir que não pertence ao meio em que vive.

As Horas Nuas 

Os gatos são animais que aparecem frequentemente na obra de Lygia. Ela expõe como os compreende e como começou a nutrir uma empatia maior com os gatos em A Disciplina do Amor. Em seu último romance, um gato, chamado Rahul, incorpora um importante personagem. Em alguns momentos ele é dono do foco narrativo, lembra de suas vidas passadas, quando foi humano e vê espíritos de pessoas pela casa, que ninguém vê além dele. Rosa Ambrósio, atriz aposentada, teme envelhecer, faz terapia com uma mulher em seu prédio e raramente sai de casa. É nessa obra que Lygia atinge plena maturidade de romancista e aborda temas atuais e problemáticos tanto particulares aos personagens como abrangentes da sociedade em geral. É um livro que como o próprio título diz, desnuda a realidade, dispensando o dramático e o glamoroso.


Algumas frases do discurso de Lygia se destacam do texto e ecoam como se quisessem dizer algo muito além do que dizem de forma denotativa. “Besouro que cai de costas não se levanta mais” (Ciranda de Pedra), “É tarde no planeta!” (As Horas Nuas)

Algumas imagens e expressões são recorrentes. O “roque roque” aparece em mais de uma obra entre romances e contos e sugere que o personagem está remoendo alguns sentimentos, ou maquinando certas ideias ou pensamentos recorrentes. Algo como um princípio de obsessão ou neurose. O “roque roque” é uma perturbação mental, muito embora não signifique insanidade ou loucura.

A imagem da esfinge parece ser fascinante para Lygia. Os gatos sempre voltam para a “posição de esfinge” e frequentemente algumas personagens também evocam a mesma imagem. Enigmática, portadora de um segredo que, ela sabe, ninguém conseguirá desvendar.

Lygia é uma das escritoras mais importantes de nossa época e com certeza uma ótima fonte de inspiração para quem deseja escrever contos e romances. Seu estilo é seu principal atrativo, suas histórias revelam o que há de inusitado e fantástico nas relações pessoais cotidianas.

Para finalizar, assista ao documentário Narrarte, dirigido pelo filho de Lygia, Goffredo Telles Neto e co-dirigido por Paloma Rocha, premiado no Festival de Cinema de Gramado.


Créditos da imagem:  http://oglobo.globo.com/cultura/conheca-os-brasileiros-ganhadores-do-premio-camoes-de-literatura-4957940 Capas dos livros: Companhia das Letras

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