I Concurso Literário Benfazeja

Nossa Senhora de Copacabana



O carro acelerou na sua direção. No meio da pista, intensificou o movimento de chegar ao outro lado da avenida. Até isso pode ser perigoso pro seu tipo de gente. Equilibrava-se sobre o salto, que ressoava na batida contra asfalto. Apertou o passo em direção à calçada. O carro mudou de faixa. Só podia ser sacanagem. O sujeito a podia partir no meio com aquela brincadeira. O coração já disparado. Emendou dois ou três passos em ritmo de corrida e o carro acompanhou o movimento. Subiu no meio-fio a tempo. O carro passou zunindo. Quase lhe esmaga o calcanhar. Virou-se na direção do sedan vermelho e esticou o dedo médio no ar. “Filho da puta!”.

Algumas pessoas no bar a olhavam. Um punhado delas faziam cara de choque com a violência gratuita. A maioria não parecia impressionada. Ela ajeitou o longo cabelo negro, endireitou a coluna sobre o salto e empinou o nariz. Olhou por alguns segundos para a praia escura do outro lado da rua. Pé ante pé, forçando uma elegância que seus dezenove anos não possuíam, atravessou a fachada do bar. Não dava trela para aquela gente dali. Cambada de esnobes do caralho. Subiu a Avenida Atlântica, em direção aos pontos menos movimentados, onde as regras daquelas esnobes não se aplicam. Onde qualquer um pode ser quem quiser, sem ninguém ligar pra quantos anos você tem.

Caminhou até depois do Palace. Assim que atravessou a Siqueira Campos, avistou quem era do seu interesse. As três não estavam em frente aos bares que se esticam por parte da calçada. Por política da boa vizinhança forçada goela abaixo do elo mais fraco. Jéssica estava sentada sobre o capô de um Vectra. À sua volta, Nicole e Aya conversavam num tom alto. Não viu Suzan nem Paola. Aproximou-se das três companheiras decidida a não contar sobre o carro que lhe ameaçara. Mas assim que Jéssica a recebeu com um “Porra, Kimberly... Demorou pra caralho, hein!”, chorou e contou o que lhe sucedera.

Kimberly fungou, cortou o choro e secou os olhos antes que borrasse a maquiagem barata. Um tanto envergonhada da própria fragilidade, restabeleceu a ordem. “Cadê as outras duas peruas?”. Com clientes, responderam as três. Aya completou a informação. “A Suzan tá com aquele neguinho bonitinho que vem aqui direto. A Paola saiu com um bacana num carrão, disse que ia levar ela prum motel na Barra.” Kimberly aquiesceu. “Vocês anotaram a placa do carro?”. Ninguém respondeu. “Não, né!? Porra, vocês são foda! Já falei pra não dar mole com essas coisas, cacete! Tá cheio de safado aí querendo sacanear a gente! Puta merda, vocês são de fuder...”.

***

A noite avançava. Um homem se aproximou do grupo. Kimberly apresentou-se a recebê-lo. Na casa dos trinta, o sujeito trajava calça jeans e uma camisa social azul, com a manga dobrada até o cotovelo. Uma pequena mochila nas costas. Um tanto acima do peso ideal, foi a avaliação unânime das moças. Kimberly aproximou-se devagar. O homem hesitou. Ela pegou-lhe a mão e pousou sobre o próprio seio. Passou o braço pela cintura e puxou o corpo do gordinho contra o seu. Desceu a mão até a bunda do sujeito. Num movimento rápido, pescou as notas de dinheiro que encontrou no bolso da calça. O homem não pareceu perceber o movimento, ocupado que estava em firmar os dedos no seio jovem que guardava na mão. Kimberly escorregou a outra mão até a virilha do cliente. Ele repetiu o gesto, pousando a sua mão pesada entre as pernas da jovem. Sentiu o volume que o short curto guardava. Acariciou-o, apertou de leve. Sentiu enrijecer. Pousou os lábios no ouvido de Kimberly e perguntou quanto ela cobrava. Ela respondeu que eram cinquenta paus pelo programa completo. “Porra, não tenho isso tudo. Não dá pra fazer por vinte?”. Kimberly, com um movimento rápido, arrancou a mão do homem de seu sexo. “Dá não.”. Virou as costas e voltou para junto das amigas.

O homem levou a mão ao bolso de trás. Sentiu que algo faltava. “Devolve meu dinheiro.”. Kimberly olhou-o com uma das sobrancelhas em pé. “Devolve a porra do meu dinheiro, se não eu chamo a polícia.”. Nicole sussurrou “Acho que é melhor tu devolver.”. Kimberly sacou as notas de dentro do decote. Duas notas de dez. Botou na cara uma expressão de asco, pegou uma das notas e jogou no chão. “Toma. Pega.”. O homem abaixou-se, tomou a nota nas mãos e guardou no mesmo bolso. “Me devolve a outra também.”. Kimberly fungou discretamente e guardou o catarro espalhado sobre a língua. Andou em passos lentos. O homem não se mexeu, mas os olhos estavam inquietos, mais abertos que o normal. A moça prendeu as bochechas do sujeito entre os dedos, forçando-o ao ridículo de um bico. Aproximou seu rosto do dele e falou em tom duro, sem o esforço habitual para suavizar a voz masculina. “Se você acha que eu vou ficar me roçando em maricona gorda por nada, você tá muito enganado. Maricona gorda que gosta de pau. Se quiser, chama a polícia, mas eu não roço em viado de graça. Seu lixo.”. Cuspiu o catarro no meio dos olhos do homem. Deu meia-volta e sentou-se no capô do carro ao lado de Jéssica, olhando com escárnio para o gordinho. Ele cambaleou, incerto de como proceder. Olhou nos olhos de Kimberly. E de cada uma das outras. Ameaçou falar, mas os lábios não responderam ao comando. Por fim, aceitou a derrota, cravou os olhos nos próprios sapatos e andou. Não sabia bem para onde, mas sabia que para longe daquela puta dos infernos.

Um Gol branco parou na esquina da Siqueira Campos. Suzan desceu, fechou a porta às suas costas e juntou-se ao grupo a tempo de ouvir as outras comemorarem a vitória e lamentarem o lucro tão baixo de apenas dez reais. Baixada a euforia, Kimberly olhou por cima dos ombros em todas as direções. “Onde diabos será que tá a Paola?”.

***

O Fusion parou na mesma esquina. Quando o sinal abriu, contornou o grupo pela Atlântica devagar. As moças apertavam os olhos, mas os vidros escuros impediam que vissem dentro do carro. Ainda devagar, o carro entrou na rua seguinte, sem deixar o quarteirão. Parou na esquina. O vidro baixou e a buzina soou rapidamente num toque único. A mão do motorista fazia sinal para que uma delas se aproximasse. Kimberly desceu do capô e caminhou. Não muito devagar, mas sem pressa.

Deu a volta no carro e parou ao lado da janela do motorista, um coroa, que achou bonitão. “Boa noite.”. “Boa noite.”, ela respondeu. O homem precisou de alguns segundos para começar a falar. “Quanto é pelo oral?”. Kimberly respondeu que eram trinta reais. “E se for pra eu fazer em você?”. Kimberly sorriu. “Deixo por vinte e cinco.”. “Ok. Mas sem camisinha.”. “Fechado.”, ela respondeu ameaçando dar a volta para entrar no carro. O homem não deixou que ela se movesse. “Não. Pode ser por aqui mesmo.”. A moça desabotoou e baixou o short. Deu um passo à frente, encostando as coxas à porta do carro, e enfiou o pau para dentro da cabine. O homem pegou o membro com as duas mãos, beijou-lhe a base, apoiou a cabeça na própria língua e pôs os lábios em volta. Sugou.

Kimberly precisou de dez minutos para gozar. O cara engoliu tudo. Limpou as bordas da boca com as costas da mão enquanto a moça guardava o pacote de volta no short. Quando estendeu a mão pelo pagamento, o homem já virava a chave do carro na ignição. “Hoje você trabalhou de graça, garoto.”. Kimberly jogou o corpo para dentro do carro pela janela, agarrou o par de óculos escuros que estavam no console e os trouxe nas mãos quando o automóvel arrancou e seu corpo foi ao asfalto. O homem parou e desceu do carro. Uma nove milímetros na mão. Kimberly rosnou “Garoto é o seu cu, seu viado filho da puta. Me dá o meu dinheiro.”. O sujeito apontou a arma na direção da moça. “Não brinca comigo que eu te mato, moleque. Me devolve logo essa merda e tu não se machuca.”. Ela não fez menção de devolver os óculos. As outras, ao terem a atenção chamada pela cena, correram na direção de Kimberly. O homem apontou a arma para elas e gritou que não avançassem mais. Depois voltou a arma na direção da puta que chupara. Não tinha mais a intenção de atirar, com tantas delas ali. Enfiou a mão livre no bolso da calça e sacou o celular. Polícia. Atlântica com a Figueiredo Magalhães. Confusão com as meninas da noite. “Agora vocês tão fodidas. Acho melhor me devolver logo essa porra desse óculos, e eu deixo vocês irem nessa antes da polícia chegar.”. Kimberly olhava fundo nos olhos do homem. E ele entendia perfeitamente que ela o estava mandando tomar no cu. “Porra de quadrilha de travequinhos do caralho.”

***

A viatura parou na calçada da Atlântica. Os dois policiais desceram rapidamente do carro e mandaram que o homem baixasse a arma. “Elas vão fugir, porra.”. “Cidadão, eu não quero ter que repetir a ordem.” E virando-se para Kimberly, “Se você correr, eu mesmo te pipoco.”. O homem baixou a arma. Um dos policias manteve posição, às costas da moça. O outro caminhou até o homem e perguntou que porra era aquela. “Vim aqui pegar uma garota, aí me entra no carro essa porra aí. Quando vi que não era mulher, mandei descer do carro.” Kimberly gritava que era mentira, mas o policial só fez um gesto com uma das mãos. Significava para ela calar a merda da boca antes que ele se irritasse. O homem continuou, “Ele pegou o meu óculos, tentou me roubar. Eu tenho licença pra arma, só tava me defendendo.”. O policial tomou a nove milímetros nas mãos. “Me mostra identidade e a licença da arma.”. O homem andou até o carro e voltou com os documentos em uma das mãos. A identidade vinha encapada em couro vermelho, com o Brasão da República embutido. Foi o que entregou primeiro.

“O senhor sabe que a licença não é pra arma automática, né doutor?”. Kimberly se desesperou. “Doutor!? Tu vai acreditar nele, vai me foder!?”. O policial olhou mais uma vez para a moça e disse, pausadamente e em tom duro, “Não falei com você ainda, então cala esta merda desta boca.”. Kimberly parou de falar, mas agitava o corpo impacientemente, indignada. O policial devolveu os documentos do homem. Caminhou até a moça e esticou a mão espalmada em sua direção. “Devolve o óculos do homem.”. “Mas é mentira dele, ele me chupou e não quis pagar. Peguei essa merda porque é o meu direito, o cara não quis me pagar!”. O policial respirou fundo por três segundos. Olhou Kimberly nos olhos e deitou a mão em sua cara, estalando um sonoro tapa. As outras moças ameaçaram avançar, mas o outro policial sacou a arma e apontou-lhes. “Não perguntei nada. Mandei devolver o óculos.”. A moça não se moveu. O policial não hesitou. Agarrou Kimberly pelo braço e girou-o. O estalo foi quase tão alto quanto o tapa. A moça foi ao chão. Gritava. O policial tirou os óculos das suas mãos e devolveu ao homem. “Vai pra casa, doutor, tá tudo certo.”
Quando o carro arrancou, o policial voltou-se para Kimberly, que ainda se contorcia no chão. "A próxima vez que eu pegar você e sua quadrilha de sacanagem por aqui, eu vou fazer igual os parceiros da Quinta da Boa Vista, vou passar metralhando os traveco na calçada. Tá ouvindo? Porra." Virou-se para o restante das moças. "Tira uma voluntária de vocês aí pra liberar uma de graça pra mim e pro meu parceiro. Cadê aquela mais escurinha? Paola?... Não sabem, né... Deve tá fazendo merda, pra variar. Tem problema não, decidem aí entre vocês mesmo quem que vai pro sacrifício. E é pra hoje!"

***

No dia seguinte os jornais, como de hábito, traziam notícias. Encontraram um corpo nas pedras, abaixo da Avenida Niemeyer, na altura da favela do Vidigal. Um travesti identificado pela polícia como Paulo Henrique de Oliveira, mas a notícia só trazia sua idade. Dezesseis. A polícia acredita que tenha sido empurrado pela ribanceira à beira da rodovia por algum cliente com quem tenha brigado. É o segundo caso de travesti morto nas mesmas circunstâncias este ano. A taxa de criminalidade na área, no entanto, vem caindo vertiginosamente desde que as Unidades de Polícia Pacificadora foram instaladas.

*

Créditos da imagem:
Prostituição, por Paula Moura

Nenhum comentário