I Concurso Literário Benfazeja

Ventania



Eu vim de São Sebastião da Ventania,
e quem nasce em Ventania é furacão.
Há quem diga que sou príncipe,
mas prefiro ser bufão.

Aqui a lua brilha mais forte,
venha para debaixo de minha lona,
onde os sorrisos são mais largos,
e em meu sonho você pega carona.


Não sou homem de deixar barato o que tem valor. Moro logo ali, depois da última curva de uma das avenidas da capital. Meu relógio é o metrô — de dez em dez minutos sei que o tempo passou, mas de dia, ele passa mais rápido, é de sete em sete que envelheço.

Não sou homem de deixar passar o que não é trem. Meu trabalho é social. Caminho pelas ruas a conscientizar a população de que mesmo um coxo pode transitar por entre aqueles que se julgam completos.

Não! Não sou homem de me alimentar de o que é efêmero. Sorvo beijos, ainda que distantes e constrangidos por minha pobreza. Abrigo sorrisos, gentilezas me dão sustança.

Minha essência é poética-musical:

Pelas rugas que sinto ter no corpo — marcas de tudo o que não é metrô —
e pelos parcos cabelos que percebo já terem mudado de cor,
calculo que já guardei muita coisa de valor.

Sou tantos e quantos. Ao mesmo tempo sou nenhum. A cada janela parada no sinal, conto
1……… 2………………. 3, 4……………………………………………………..5……………….
os que temem a violência por não saberem quem eu sou e os que vieram abertos para dialogar com isto, um produto daquilo que me restou.

Entre bolas de plástico que jogo ao ar, olho meus espectadores. Ainda que eu nem sempre seja visto…

Mas hoje, sem poder fazer minha mágica, quero apenas me expressar sobre o encontro dos diferentes. Não sei quando nem onde, porque disso não consigo me lembrar.

Eu poderia arriscar uma quantidade de metrôs, mas já perdi as contas. Além do mais, houve dias em que me levaram de minha tenda e eu perdi a noção.

De qualquer coisa que não fosse… Não. Dentro daquele quarto branco, sozinho, perdi a noção de tudo, até mesmo de mim.

Eis o que me aconteceu

:

Ela tinha o rosto mais intrigante que jamais vi. Ângulos retos, marcas profundas, olhos grandes e lábios finos. O vestido, uma composição de flores do campo em fundo negro combinava com o chapéu que fazia sombra no colo e escondia os cabelos, mas deixava uma amostra: mecha vermelha a escorrer pelo canto do olho direito. Em uma das mãos, ela puxava, com dificuldade, um carrinho de feira, na outra, cerrada, trazia um mistério.

Andávamos em direções opostas. Ela seguia para a zona sul; eu, à procura de um norte.
Encarei a bela: as folhas de alface, os tomates vermelho-sangue, as cenouras e sua mão fechada.
Ela me encarou, em minha falta de coisas que ela trazia à mostra.

Em alguns passos estaríamos bem próximos.

Ela olhou para o lado. A mecha vermelha movimentou-se como se apontasse em minha direção para então, apontar o homem, em pé, no canto da calçada. Ela pareceu movimentar os lábios.

O homem colocou a mão da cintura. Seu uniforme era impecável.

Éramos diferentes.

Andávamos agora os três em direções — ainda que superficialmente — opostas. Cada qual em sua intenção, seu medo, sua coragem.

A alface, o tomate, a cenoura e ela em seu vestido florido de luto aproximavam-se.

O revólver, o uniforme, e aquela diferença entre nós, aproximavam-se.

Coloquei as mãos nos bolsos — pensei que alguns truques pudessem me render algo de comer — e planejei malabarismo que pudesse encantar a dama — mulheres gostam de mágicas, brincadeiras e alguma descontração.

Eu tirava as mãos dos bolsos enquanto o homem puxava a arma.

Ela abria a mão que não puxava o carrinho.

A distância entre nós era ainda menor.

Nossos passos podem nos levar daqui para outro lugar, mas gestos também são capazes de nos transportar.

De um lado minha bola de plástico vermelha, do outro, a verde e a amarela, lembranças de um sinal que um dia foi meu.

Na mão do homem, o metal.

E o mistério dela se revelava em brilho de lâmina.

Hoje, transito entre o ter e o não ter metrô, tenda, beijos para sorver. Ainda sou coxo e o único malabarismo que faço é com a memória.

Tento compreender o encontro dos dois opostos, um canivete suíço e um palhaço de sinal.

Do homem que segurava o metal só me lembro de um disparo, mas quem atira no vento nada acerta.

E como do que tem valor não me aparto, vejo você no próximo sinal.


*para Maurílio, Gilbert, Xandinho e Zeca

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