I Concurso Literário Benfazeja

Mãe, eu quero amar




Mãe, acordei mais cedo hoje, fui preparar o café como há tempos não fazia. Ultimamente eu tenho me rastejado tanto que nem apertar o botão da cafeteira eu tenho feito. Mas hoje, eu coloquei o celular pra despertar mais cedo e fui preparar o café. Na padaria, pedi dois pães, um pra mim, outro pra ele. Também fiz duas medidas de café, talvez ele goste com duas colheres de açúcar, não sei. Achei melhor deixar o pote de açúcar sobre a mesa e deixar que ele coloque o tanto que desejar.

Se ele come pão pela manhã? Não sei. Mas então comprei torrada e algumas frutas, vai que ele faz o tipo saudável, né? Tem cereais no armário, também. Você sabe que eu sempre comprei cereais tentando me alimentar melhor, mas ele embolorava e crescia uma árvore dentro da caixinha sem que eu nunca o comesse. Eu sempre abria a caixinha de cereal só pra me despedir do bolor, lamentar e jogar fora. Mas se ele gostar de cereais, mãe, tudo vai ser diferente. E se ele gostar de mim será melhor ainda.

Separei alguns DVDs mais interessantes. Nunca fui muito eclética mas, como ainda não sei se ele prefere rock, MPB ou jazz, tá tudo ali, na mesinha de centro pra ele escolher o que mais agradar. Você sabe que não importa o som, desde que meu coração esteja pulsando feliz pode ser no tunt tunt tunt de uma balada ou dois pra lá, dois pra cá... Meu coração quer dançar, apenas.

Mãe, também aluguei alguns filmes pra que ele fique até mais tarde. Tirei a cortina daquela enorme janela porque você diz sempre que a luz que entra por ela é tão bonita. Quem sabe seja exatamente ela que o faça ficar mais um pouco?

Não sei se ele gosta de livros, mas, como tenho mais livros do que sapatos, eles estão todos enfileirados na estante. Separei por gênero para parecer que sou um bocado organizada. Se ele não ficar pela música ou pela luz que entra pela janela, talvez ele demore até ler todos os títulos dos livros e eu tenha tempo de dizer o quanto esperei por aquela companhia. Fica!?

Eu não sei o nome dele. Nem o formato do rosto. Nem sei se joga bola ou gosta de pizza. Se ele também troca a melhor balada da noite por ficar abraçado deitado no sofá ouvindo a vida acontecer do lado de fora. Mas, mãe, eu quero tanto amar alguém que deixei meu corpo, minha mente e minha casa preparados para as nossas diferenças. Não vou me importar se ele preferir suco enquanto bebo vinho, nem vou questionar se ele disser que não acredita em anjos. Eu quero amar, mãe! Com todas as dificuldades e as consequências. Com toda a dor que isso causa e também as expectativas, ainda que frustradas. Quero amar mesmo que isso me custe perder algumas coisas, já que nessa vida não se pode ter tudo ao mesmo tempo e eu já perdi tanta coisa mesmo. Quando se tem um amor, vale a pena perder algumas coisas. Mas ultimamente eu tenho andado no deserto e sem ninguém para amar.

Mãe, eu quero amar porque nada torna esse mundo mais sombrio do que estar de coração vazio. Já gosto tanto de ser quem eu sou e aprendi tanta coisa sobre mim mesma, sei que estou pronta. Por isso, preparei tudo com cuidado, mesmo sabendo que quando alguém chegar a minha vida vai virar do avesso e tudo o que eu deixei bonitinho vai ficar bagunçado de novo e a linha do trem vai virar trilhos de uma montanha russa. Você sabe o quanto eu gosto das coisas fora do lugar. A felicidade bagunça a gente mesmo e está tudo certo demais, mãe. Organizado e muito solitário.


E eu quero amar pra vida voltar a ser o que tem que ser: contraditória e surpreendentemente linda.


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Créditos da imagem: We Heart It
Camila Heloíse

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