I Concurso Literário Benfazeja

Três dias




Segunda-feira, feriado de um fim-de-semana de três dias, e eu penso que todos os fins-de-semana deveriam ter três dias pois é impossível recuperar-se de qualquer semana em dois apenas; sábado tanta gente trabalha e todo o comércio aberto e aquele gosto de “hoje preciso resolver o que não tive tempo durante a semana”, e então o domingo parado com jeito de preguiça até o meio-dia e jeito de ressaca do meio-dia até a meia-noite, primeira hora de segunda-feira. O fim-de-semana de três dias, bom para ir ao cinema e colocar a leitura em dia, como se isso fosse possível - colocar a leitura em dia é de uma grande hipocrisia literária, há tanto para ler e a vida é tão pouca que fico pensando que jamais colocarei, em toda a minha vida, toda a leitura em dia. Hoje comecei o dia lendo Ferlinghetti - o Amor nos tempos de fúria-, porque preciso de inspiração para escrever o meu romance, que tem algo a ver com o tempo em que Paris é alvoroçada por uma greve geral e a revolução estudantil, e então pego o livro e após o primeiro parágrafo digo e sei que estou lendo um escritor beat, pelo jeito mesmo de escrever que é exatamente esse, penso eu, que mostro neste texto, neste relato de uma segunda-feira meio cinza, meio molhada, que fecha um feriado de três dias. Mas também houve o cinema e a descoberta de Stefan Sweig e sua carta de despedida antes do suicídio em 1942, pela desilusão com o mundo, como se o mundo não nos abortasse todos os dias, desiludidos com ele mesmo, e no entanto penso que viver é tão urgente, e tão mais urgente do que morrer. E houve a peça de Sartre, e o inferno com os outros, e sinto sempre que esta é a frase crucial de uma lucidez que apenas acorda para o seu cansaço lúcido. E então o filme e a guerra e a ascensão do nazismo na Europa me fazendo lembrar que todos morremos pela mão de um idiota. Houve leitura e cozinhar. Houve incensos e música de Camille, e o francês se mostra cada vez mais inevitável e a solução para meus ouvidos ansiosos por ouvir algo que não se assemelhe a um grunhido ignóbil como tantos que aí estão. Não penso ser eurocêntrica, sou, antes de tudo, egocêntrica, mas me enlevo com o que me cerca, principalmente quando o que me cerca me eleva para além de mim. Hoje segunda-feira fim de feriado e eu sentada, computador ao colo, na “chaise long” vermelho-carne da sala de estar, ao lado o livro do Ferlinghetti e o celular desligado.  À frente, Nietzsche me observa com o olhar longo, e o livro sobre moda e sobre arte, e o livro de fotografias de Albert Watson, e Casa Grande e Senzala na sala de estar, no centro da mesa de centro, para quem quiser ler, e meu livro de anotações com a capa de Santo Antão, que comprei em Lisboa, e as árvores balançando, suaves, rente à janela, o abajur e sua luz esquivada - prisma irregular-, meus pés cruzados e as pernas estendidas, computador ao colo e um texto interminado.

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Crédito da imagem:
Portrait de Dora Maar (Retrato de Dora Maar), de Picasso Pablo

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