I Concurso Literário Benfazeja

O carrilhão do meu pai




... e então resolvemos dar ao meu pai aquele carrilhão que ele tanto desejava. Não chegava a ser um tradicional, tipo armário, imponente, desses que enchem uma sala. Juntamos nossas reservas - era caro! - e compramos um de parede, com um relógio grande e seu badalo indo e indo.

No dia 21 de dezembro entregamos o tão esperado presente. Impagável o sorriso de felicidade plena por um sonho realizado. Não era algo comum ver em meu pai um riso explícito, então, também me surpreendi. Lembro ter ficado de boca aberta, literalmente, extasiada com a alegria dele, escancarada na expressão.

Apenas não imaginava que, pra mim, começaria ali um drama, que duraria por muitos e muitos dias.

O lindo e sonhado carrilhão foi instalado em lugar nobre da sala, quase de frente para a porta, estrategicamente posicionado, de forma a atrair atenção e admiração de quem se dirigisse ao corredor. Seu toque e badalos ecoavam por toda a casa. Era possível ouvi-lo até mesmo da rua. Uma coisa linda. No primeiro dia.

A cada quinze minutos o relógio tocava parte de uma frase musical, que se completava ao fim de uma hora, seguida da quantidade de badaladas correspondente ao horário. Deitei pra dormir, empolgada com o som que me remetia à antiguidade e às histórias contadas por meu pai. Na primeira hora foi pura emoção: ficava esperando a próxima batida e a próxima e a próxima, até a hora cheia. E foi assim durante toda a madrugada. E foi assim por noites e noites. Sem dormir.

A alegria de papai se tornou minha tortura. Não pegava no sono, sempre à espera do próximo “bim-bim-bom-booom!” e se conseguisse embalar um cochilo, despertava poucos minutos depois. O dia amanhecia e já estava de olhos bem abertos, aguardando que o carrilhão badalasse seis vezes.

Vinte dias depois consultava um médico que me receitasse um sonífero poderoso. Acreditava que com uns dias dormindo pesado pudesse esquecer a existência do bendito relógio e finalmente voltar a dormir normalmente (ou quase). O médico recomendou: “Tome quando já estiver na cama.”. Não obedeci; engoli o comprimido na cozinha, passei pelo banheiro, de onde já saí de quatro, me arrastando até meu quarto. Não sei como subi na cama e arriei corpo e espírito. Só sei que acordei às quatro da tarde do dia seguinte.

Custou, mas acabei me acostumando com o carrilhão. Algum tempo após a morte do meu pai, minha mãe o travou. Não tocou mais a bendita musiquinha, limitando-se ao indo e indo do badalo e a marcar as horas. Hoje ele está na casa do meu irmão. Olhei-o demoradamente na última vez que o vi. Lembrei meu pai, as noites sem dormir, as incontáveis vezes que o relógio precisou de manutenção e era preciso uma operação de inteligência para o transporte até a joalheria. Sorri, virei-me e fui pra casa dormir, com o som do toque e das badaladas soando na memória, embalando meu sono.

Imagem: Theeradech Sanin

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