I Concurso Literário Benfazeja

As horas em caixa alta




Conto enviado por Vanessa Ribeiro


Batia no relógio três da manhã. De acordo com os supersticiosos, era o início da hora morta, momento da madrugada em que supostamente portais são abertos para o plano etéreo permitindo que espíritos desencarnados influenciem os vivos com maior intensidade. Quisera eu fosse esse o caso. Minha hora morta começava quando Oliveira, um de meus vizinhos, o pai de todos os ratos, saía de sua toca e, furtivo, se locomovia rente aos muros das casas a fim de revirar sacos de lixo dispostos nas calçadas. Era-lhe peculiar emitir malditos ruídos que me impediam de pregar os olhos. Noite após noite meu limite para o sono era definido pela hora morta. “Oliveira, ainda não consigo decidir se você é uma criatura perversa ou uma verdadeira besta quadrada.” – disse eu certa vez para as paredes. Era um homem baixo, redondo e de cabelos escassos. Usava óculos com uma armação redonda e tinha um rosto sisudo e detestável. Era uma criatura obcecada por detritos e restos alheios cujos momentos de êxtase eram os que passava remexendo o lixo depositado em nossa curta rua sem saída. Sempre durante a madrugada. Certamente por não haver viva alma acordada que pudesse atrapalhá-lo enquanto se entregava à demanda. Pela janela eu o olhava e o odiava. Erguia-se na noite como o guardião dos restos. Imperava absoluto sobre sujeira.

Oliveira disputava o espaço e as imundícies com ratos e baratas. Impiedoso, afugentava as criaturas noturnas privando-as de tocar os restos imundos, azedos, embolorados. Os ratos ele chutava. As baratas esmagava. Soltava gritinhos cheios de uma fúria rouca quando algum camundongo conseguia enganá-lo abocanhando algo podre dentro de um saco preto. Poderia calçar luvas e botas, no entanto, preferia estar com as mãos nuas. Talvez tentasse sentir algum resquício de energia daqueles que haviam se livrado de fragmentos cujo odor nauseabundo dominava o ar fresco da madrugada.

“Vá dormir Oliveira. Morra Oliveira.” – gritava internamente enquanto o louco revirava abjetos objetos. Gostava de uivar num tom mediano quando encontrava algo que despertava seu interesse. Algo que fosse significativo. Certamente porque Oliveira, uma criança obediente ao cosmos, acatava sem queixumes as ordens enviadas por um deus matreiro com o fim de se tornar a plastificação da loucura, da estupidez. Nossos afortunados vizinhos aparentemente dormiam em quartos localizados nos fundos de suas casas já que ninguém demonstrava qualquer incômodo com o grotesco hábito daquela ratazana gigante e obesa. Eu, pobre alma, tinha logo à frente da janela do único quarto da casa a rua, a calçada, a lixeira onde Oliveira se refestelava.

Oliveira aparentava tentar decifrar cada morador da rua a partir dos restos que encontrava. Pegava as peças soltas e construía uma história cujo enredo era definido por sua mente imunda. Uma meia vermelha rasgada, um guarda-chuva quebrado, cabeças e cascas de camarão. Tudo no mesmo saco. As garrafas vazias com rótulos elaborados e texto indecifrável cuja língua não conseguia definir eram tidas por ele como o regalo dos incompreendidos uma vez que ultrapassava as limitações da capacidade de compreensão do imenso rato. A etiqueta bordada picada em mil pedaços, o batom bordô que chegara ao fim, a embalagem lacrada de iogurte de morango, o feijão azedo. Oliveira ruminava maquinações sobre como ordenaria a aparição de cada objeto em seu filme depravado cuja projeção interna me privava de mensurar o quão estúpido ou perverso aquele homem seria. Carcaças de peixes do almoço de domingo, bermuda rasgada entre as pernas, páginas batidas a máquina rasgadas ao meio, papeis higiênicos imundos. Certa noite, a última em que presenciei a aparição noturna de Oliveira, o insano regurgitou palavras sem muito sentido num monólogo odiável que repetiu diversas vezes. Tal qual um zombeteiro espírito inferior cujos cânticos infernais inundavam algum lugar abismal trazendo ao ouvindo das pobres almas que padecem em sofrimento o significado vivo e afogueado do desespero. “Natal é quarta-feira? Não, natal é quinta-feira. E quinta-feira é feriado? Porque se for feriado, o lixeiro não vai passar e quero só ver o que essa gente vai fazer com tanto lixo.”




Vanessa Ribeiro

33 anos, publicitária. Escrevo desde criança, no entanto, apenas ao longo dos último ano venho compartilhado alguns pedaços da minha escrita.
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Horas no lixo, por Américo Meira

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