Confessional - parte 1
“Minha feiúra me conservará isolada até a morte”, escreveu Violette Leduc. A minha foi companhia. Andou comigo pelas alamedas, quando me surpreendiam com algum desaforo. Andou comigo, como memória colada à pele da testa, quando me ofendiam nas festas da família. Na rua, enquanto caminhava rumo à escola, depois à faculdade. Andou comigo suja nos tênis velhos, quando voltava da academia. Àquela noite, quando o mendigo me chamou de desengonçada. Num outro dia, quando me disseram ter dentes de cavalo. Andou comigo e me fez apoio, porque nela eu não me calcava me forçando a olhar para mim. No espelho, quando as roupas sobravam. Na praia, enquanto escondia o corpo, amparada pelo guarda-sol. Na escola, sentada na carteira mais distante da classe. Nas festas, enquanto esperava ser chamada para dançar. Grudou-se a todos os meus apelidos, resignou-me da falta de amores, da falta de amigos, de não ser chamada às festas, aos grupos de amigas. Tentei superá-la por uma timidez que não me cabia. Tentei vivê-la corajosamente como os justos. Martirizei-me na minha posição. Fiz-me de calçada, de tapete. Sorri mais do que precisava, queria ser amada a qualquer custo. Reduzi meu preço, tanto que quase não suportei os descontos na minha personalidade. Coloquei-me ao lado do abajur da sala de estar, entre o livro e a estátua de madeira, perto do cinzeiro de minha mãe e da taça de vinho de meu pai. Escondi-me embaixo do berço de meus irmãos, dentro da casinha do cachorro, no porão de uma casa imaginária, no fundo de meus pesadelos. Ela me salvou de um ou dois cretinos insuportáveis, me revelou os amigos menos volúveis, segurou-me no colo enquanto eu chorava sozinha. Foi a estrela mais distante de um céu sem nuvens, foi a luz no fim do meu jugo. Eu a martirizei, e a mim também, porque isso me orgulhava. Revi a genética de meus avós mal misturada, coloquei-a na lixeira da maledicência. Um dia, não sei bem quando, ela foi embora. De vez em quando sinto-a me espreitando enquanto passam os anos. Deu-me férias transitórias enquanto não envelheço. Voltarei a ela melhor acostumada. À companhia verdadeira de meus cabelos brancos, que não me julgarão. Serei velha ao seu lado, pobre ao seu lado, plena ao seu lado, sentada na cadeira de balanço, olhando o sol me pôr.
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Créditos da imagem: Retrato de Mariana (desenho assêmico, por Marcello Sahea)
http://dedosleves.tumblr.com/
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