I Concurso Literário Benfazeja

A poética de Luís Carlos Patraquim: entre ossos e inovações

Elizabeth Gonzaga de Lima*

* Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas da área de Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da UFBA.

Uma das marcas da sociedade moçambicana é a resistência. Desde a chegada dos portugueses no século XVI, passando pela intensa política de assimilação que tentou apagar a cultura africana, à guerra anti-colonial, Moçambique resistiu. A literatura, em especial, a poesia converteu-se numa das formas de refletir sobre as circunstâncias de opressão impostas pela colonização e ao mesmo tempo reafirmar a identidade cultural africana. Nesse período, diversos poetas se engajaram nessa luta, como José Craveirinha e Rui Knopfli.

Com a proclamação da independência em 1975, a literatura viveu um tempo ainda sob o influxo da euforia em função da nova realidade, que buscava restituir os fragmentos identitários. Três décadas passadas da comoção da liberdade moçambicana, poetas como Luís Carlos Patraquim, Eduardo White, Nelson Saúte trilham novas veredas estéticas. Nessa direção, este trabalho pretende examinar o novo fazer poético moçambicano em O osso côncavo e outros poemas de Luís Carlos Patraquim.

Luís Carlos Patraquim pertence a uma geração poética que busca por meio do experimentalismo estético, da intertextualidade e da metapoesia, a entrada de Moçambique na cena lírica da modernidade, como assinala Ana Mafalda Leite:

Entre estes poetas, merece destaque especial Luís Carlos Patraquim, uma das vozes mais novadoras da atual poética moçambicana, recuperando e aglutinando tendências de escrita,reinventando tópicos, como a indicidade e os roteiros das ilhas do norte, reconfigurando uma língua herdeira da metáfora craveirinhica e do cosmopolitismo knopfliano, num ritmoelegíaco com o (desen)canto da guerra civil.(1)


O mergulho no universo dissonante da lírica moderna, soltando as amarras do real, a fim de captar o fenômeno poético em sua latência, torna a poesia de Patraquim hermética para o leitor desavisado. Segundo o poeta, apesar de alguns o acusarem de “ser hermético e difícil”, ele não dissocia “um texto poético e o projeto de vida do poeta que faz esse texto” (ii). Quando observado em suas dobras, tal projeto revela uma viagem poética interior, que se expressa através das forças do inconsciente.

Na obra O osso côncavo e outros poemas, de 2004, Patraquim integra parte de sua produção escrita entre 1980 a 2004, Monção (1980), A Inadiável Viagem (1985), Vinte e Tal Formulações e Uma Elegia Carnívora (1991), Mariscando Luas (1992) e Lidemburgo Blues (1997). Nesses poemas anteriores a O Osso Côncavo, o poeta alia as coisas do mundo ao mundo da palavra, convertendo assim a materialidade das coisas em signos poéticos:

afasto as cortinas da tarde
porque te desejo inteira
no poema.(iii)

e tenho sede com rumor e livros
apesar do desprezo à estante
sem o qual o jogo instante
nem rima. (iv)

Um outro desafio que se coloca ao leitor da poesia de Patraquim é não cair na armadilha de buscar, única e exclusivamente, as referências da realidade africana, em particular, das questões políticas e ideológicas que envolveram Moçambique ao longo do processo de colonização e descolonização. As imagens tradicionais e recorrentes que a poesia africana do período mais combativo apresentou, de certa forma, não freqüenta seu arsenal imagético, esbarrando, por vezes, no verso enigmático:

Que em ma-falo de Mafalala negra
é o sul quem grita, urgentemente?
A Pátria? Mártir matriz tatuada
ainda a caju e sêmen? (v)


Uma das linhas mais significativas da poesia de Patraquim é a reflexão sobre a criação poética, no compasso do raciocínio do poeta modernista brasileiro Mário de Andrade, que reivindicava “o direito permanente à pesquisa estética”. Nesse sentido, é possível que o conjunto de poemas de O Osso Côncavo e o poema homônimo ao título do livro sejam essa representação.

Salta aos olhos, em alguns poemas, a sedução de Patraquim pela combinação entre poesia e pintura, numa mistura de códigos que impressiona pela imagética da força interpretativa que os versos apresentam:

era a canção da partida três vezes
o vinho derramado e a voz
cor-de-rosa número de cada porta
bicicletando noivados
leque vermelho para esta janela sem lua. (vi)

Nesse exuberante cromatismo, é perceptível o liame indissociável entre poesia e pintura, como na inversão do estilo pictórico da natureza morta, para sua representação poética em “Natureza viva”:

Que o figo se avermelha a teu desejo,
ovo granular, constelação;
E a polpa verde-escura,
Túmido impulso ou queda arborizando-se
Dentro dos ossos, te envolva,
Como estirada jaz a pela da infância. (vii)

No entanto, a malha simbólica que envolve a poesia de O osso côncavo encontra, no título, logo de saída, através do substantivo “osso”, a dimensão que marca os poemas:

A contemplação do esqueleto pelos xamãs é uma espécie de retorno ao estado primordial, pelo despojamento dos elementos perecíveis do corpo. O uso de ossos humanos na Índia e no Tibete para a confecção de instrumentos de música não é alheio a estas considerações: ascese, superação da noção de vida e morte, acesso à imortalidade. (vii)

É provável que essa imagem leve o poeta a render homenagens, por um lado a poetas mortos que integram suas referências líricas, numa espécie de necrológio poético de “superação da noção de vida e morte”, como ocorre em “Gottfried Benn — uma fala”, “Sylvia”, e por outro, no poema oferecido, in memoriam, a uma certa Marília, que no espaço lírico, ressurge das águas como Iemanjá ou como as sereias mitológicas em “Praia do Tofo”:

Adornada de limos e seixos e de pedrinhas
As mil capulanas soltas ao vento
Da inteira absorta beleza de seus peixes,
Ó desnuda sobre as areias,
Marília ao longo do mar e das viagens,
À tua praia chegada! (ix)

O olhar do poeta para a paisagem urbana mistura os componentes histórico e ideológico, que irrompem numa sintaxe agressiva flagrando o tom da denúncia como em “Lisabona”:

Ó puta histórica, virtuosíssima, desalagar-me o cós desses peitilhos
Fedendo a leite coalhado, especiarias calibradas, normas espanejantes
...
À traição de Calabar, às areias onde se nasce,
Vulcânico; em verdade, Lisabona de Luanda e Maputo,
E os nomes da Guiné, a algaraviada crioulando-te os frisos

De gurupés e ouro preto,
Limpa-me esse branco, tão sujo, ó ultramarina cidade,
Lisboa alvoroçada!(x)

Em contrapartida, a visão poética da natureza deflagra uma percepção anímica, ao realizar, metonimicamente, uma espécie de fusão entre partes do corpo e os elementos da natureza, como pode ser observado nos seguintes versos:

Ela canta a sumptuosa luz
por um dia múltiplo
a manhã entreaberta dos lábios.(xi)

Patraquim opta, por vezes, pelo enigma, pelo obscuro, expresso pelas associações que apesar de desconcertarem, fascinam o leitor. Segundo Hugo Friedrich, essa junção entre incompreensibilidade e fascinação pode ser chamada de dissonância, que “gera uma tensão que tende à inquietude”(xii). É justamente no poema que intitula seu livro “O osso côncavo” que o poeta mergulha no simbólico, no hermético, convertendo se num mago que manipula uma alquimia lingüística e imagética, como se as forças do inconsciente e do fenômeno lírico se aliassem a fim de retornar à matéria-prima básica da criação poética, na tentativa de desvendar-lhe o mistério em sua origem ou ancestralidade.

O poema “O osso côncavo” possui nove estrofes irregulares e os versos são livres. O título instigante e carregado do simbolismo da “essência da criação” ganha força ainda maior ao se aliar ao côncavo, cujo sentido oposto à montanha liga-se à caverna, “cujo caráter de profundeza, de vazio ou de virtualidade acentua” (xiii). Ao longo do poema é possível encontrar os semas da profundeza e da interioridade: “água negra, das cavernas”; “dorso do abismo”; não há como negar que tais imagens evocam em última instância o sentido da exploração do eu interior, das profundezas do inconsciente, que reforça o significado do côncavo: “Significa o passivo ou o negativo, a outra face, ou verso, do ser e da vida: receptáculo virtual, mas vazio, da existência. Por tudo isso se faz dele a residência da morte, do passado, do inconsciente, ou do possível”(xiv). Essas referências abrem espaço para um sujeito lírico que promove uma viagem à interioridade, de forma quase dramática, como se buscasse restituir a subjetividade perdida:

Ó ímpeto do Espírito
radícula que o vento despenteia e o músculo imprime
travejado por dentro!(xv)

Tal possibilidade remete à reflexão de Patraquim ao relembrar o tempo em que a individualidade em Moçambique não existia, e que, mesmo depois da independência continuou sem existir. É provável que essa realidade provoque no poeta o desejo de reforçar em suas poesias as potências da interioridade, como forma de exaltar o eu, estabelecendo a diferença entre o espaço poético e o espaço da realidade. Esse movimento leva o eu poemático a buscar a plenitude de descobrir-se e redescobrir-se no interior do fenômeno poético. Nesse sentido, Patraquim assinala que arte da poesia é:

uma arte combinatória, onde a linguagem, a língua, a luta como instrumento maior, como o cerne da constituição do poema, onde haverá sentimentos, idéias, mas não são nem sentimentos nem idéias no sentido do expresso, da sua veiculação primária. A poesia é a permanente descoberta da surpresa, da combinatória que não se faz, que o dia-a-dia não nos deixa ver.(xvi)

Esse pensar sobre a poesia e o mistério que envolve sua criação leva o poeta distribuir, ao longo do poema, palavras que remetem a esse campo semântico, “onde nascem”, “concebeste”, "fetal”, além da alusão simbólica ao útero materno que a caverna e a barca carregam. A partir desses sentidos, os fios do poema vão se conectando de maneira que “O osso côncavo”, a partir do título, vai se reconstituindo em corpo ao longo do poema, quando o poeta lança mão da figura da metonímia: “anca”, “dorso”, “fauce”, “carne”, “língua”, “testa”, “esterno”, “ilíaco”, “pulmões”,
“ventre”, “pele”.

No Gênesis a terra era sem forma e vazia quando recebe luz, água por meio da Palavra do Criador, que vai nomeando as coisas à medida que são criadas. Já o poeta, de posse de seu espírito criador, e de seu “sibilante enigma”, não consegue nomear: “Ó força, Ó inominado”, “E concebeste o indizível!/Como dizer o que há no vazio” (xvii), para afirmar de maneira cortante: “Não te nomeio. Caminho”(xviii). Nessa viagem interior plasmada pelas reflexões metapoéticas, a voz de Patraquim se une a dois poetas moçambicanos, Virgílio de Lemos, igualmente seduzido pelas viagens e Eduardo White pela metapoesia, demonstrando assim a face lírica inovadora de Moçambique.

Ao longo de “O osso côncavo”, as imagens dissonantes, a princípio incompreensíveis, vão se constituindo no corpo do poema e no corpo da criação poética, que se expressa com uma força tal e se torna também em um mistério para o próprio poeta, como se surgisse do inconsciente. Nesse sentido, em O ser e o tempo da poesia, Alfredo Bosi assinala esse liame entre a constituição das imagens e o inconsciente, que em última instância tornam-se o substrato da criação poética:

Das matrizes materiais da matéria (mater-matrix), o Id, resultam para Freud as andanças e as formas do Imaginário. Uma pulsão (Trieb) aflora, na vida da psique, como uma representação (Vorstellung). A imagem é transformação de forças instintivas; estas, por sua vez, respondem, em última instância, pela sua gênese. Nunca é demais insistir: para Freud, a força e sentido alimentam-se no inconsciente.(xix)

E a última estrofe confirma que sem que o sujeito lírico nomeie ou controle, o milagre da criação poética acontece e o vazio se transforma:

E tu, intacto, flutuante onde ninguém te disse
e a palavra se acoita, espasmódica.
fetal. Seu silêncio enformando-o, ao osso,
côncavo.(xx)

Luís Carlos Patraquim para além do hermetismo ou mesmo do dissonante, leva seu leitor a um encontro com a alquimia poética, ora mergulhando nas profundezas do eu, ora no abismo insondável do fenômeno lírico, numa sedutora viagem pela contemporaneidade poética moçambicana.

Referências bibliográficas:

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1993.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Trad. Carlos Sussekind [et al]. 10 ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1996.

FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curion. São Paulo:
Duas Cidades, 1978.

LEITE, Ana Mafalda. “Poesia moçambicana, ecletismo de tendências”. In: Poesia
Sempre: Angola e Moçambique
. 13. Rio de Janeiro, n. 23, pp. 139-142, 2006.

PATRAQUIM, Luís Carlos. O osso côncavo e outros poemas. Lisboa: Caminho, 2005.

SAÚTE, Nelson. Os habitantes da memória: entrevistas com escritores moçambicanos.
Praia-Mindelo: Embaixada de Portugal Centro Cultural Português, 1998.

*
(i)LEITE, 2006, pp. 141-142.
(ii) SAÚTE, 1998, p. 183.
(iii) PATRAQUIM, 2005, p. 27.
(iv) Idem, ibidem, p. 32.
(v) Idem, ibidem, p. 76.
(vi) Idem, ibidem, p. 124.
(vii) Idem, ibidem, p. 136.
(viii) CHEVALIER, 1996, p. 666.
(ix) PATRAQUIM, op. cit., p. 143.
(x) Idem, ibidem, pp. 128-129.
(xi) Idem, ibidem, p. 155.
(xii) FRIDRICH, 1978, p. 15.
(xiii) CHEVALIER, op. cit., p. 650.
(xiv) Idem, ibidem, p. 650.
(xv) PATRAQUIM, op. cit., p.160.
(xvi) SAÚTE, op. cit., p. 183.
(xviii) PATRAQUIM, op. cit., p. 161.
(xviii) Idem, ibidem.
(xix) BOSI, 1993, p. 18.
(x) PATRAQUIM, op. cit., p. 161.

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