I Concurso Literário Benfazeja

Cinema e Literatura: desencontros formais

Mirian Tavares

Resumo
A relação entre Cinema e Literatura data do momento em que o cinema descobre seu potencial narrativo. Assim, ele absorve o modelo narrativo do romance do século XIX para ajudá-lo a melhor contar histórias ao mesmo tempo que liberta a literatura desta “obrigação”. Na era da imagem digital, onde a plasticidade do meio permitiria grandes vôos formais, por que o cinema ainda continua preso a um modelo narrativo que já foi superado pela própria literatura?

Palavras-chave: cinema, narrativa, era digital



Introdução


O cinema, muito cedo, atraiu para si a atenção das chamadas Vanguardas Históricas. E é neste meio que ele é alçado a condição de sétima arte. Porém, poucos anos depois, muitos artistas declararam a sua grande decepção com o meio – as possibilidades de criação vislumbradas não chegaram a se efectivar e um outro cinema triunfou, um cinema que nada tinha daquele caminho traçado para ele por surrealistas, dadaístas e futuristas, dentre tantos outros. Quando o cinema aparece, os artistas acreditaram que tinham nas mãos um dos maiores meios de criação, superior a pintura e a literatura, segundo os futuristas. Completamente novo e, portanto, absolutamente plástico e cheio de possibilidades. Poderia se fazer tudo o que os mais ousados escritores sonharam, mas que o papel não permitiu. Era finalmente a hora da imagem fazer vir à superfície a imaginação – torná-la visível e palpável. Aqueles que começaram a trabalhar com o novo meio tentaram inventar maneiras de usá-lo. Não havia regras, não havia limites. Era uma obra que se inventava enquanto se fazia. A riqueza do pré-cinema estava justamente aí: o momento mágico e máximo da invenção e do experimento. E é este cinema que encanta as vanguardas. É este cinema que faz surrealistas tentarem finalmente concretizar o sonho de ver o sonho exposto e compartilhado.

A vitória dos medíocres

Proust chegou a conclusão que só os sonhadores medíocres não revisitam os lugares sonhados por saberem-no sonho. As vanguardas, por sua vez, chegaram a conclusão de que os medíocres venceram a batalha. Não há realmente sonho no cinema. O que encontramos são imagens domesticadas que reflectem uma outra fase da história do cinema – o nascimento de uma linguagem cinematográfica. Um momento em que ele, já cansado de experimentar, decide agarrar o público e cimentar gramáticas, normas, sintaxes e semânticas que o acompanham até a era do digital. E grande parte destas normas deriva da literatura. Não de uma literatura de invenção, mas daquela que foi feita para as massas, daquela que, independente de sua qualidade, tinha o público em vista no momento mesmo da sua escritura: a narrativa típica do século XIX, que tentava espelhar, ou criar a ilusão de espelho, onde as pessoas podiam identificar-se e desgarrar-se, por um momento, da Realidade, nem sempre agradável. Ou como quer Clement Rosset, CRUEL, pelo simples facto de ser REAL. O novo meio era perfeito, arte dos novos tempos, arte de e para as massas, incultas e analfabetas em sua grande maioria. Alguns escritores do século XIX criaram verdadeiras máquinas narrativas: estruturas que se repetiam livro a livro, mudando apenas o enredo e as personagens. A história era diferente, mas o modo de contar era sempre o mesmo (com maiores ou menores variações). Uma das marcas deste modo de contar era uma certa linearidade obtida pelo entrelaçamento meticuloso das subtramas. A linearidade das narrativas dá uma falsa sensação de controlo: o homem ciência, que quer competir com o criador, torna-se demiurgo a partir do instante que controla o fluxo de uma história que escorrega inexorável para o fim. Uma metáfora do curso da vida e da morte que espreita. Mas um curso desviado de seu caminho natural e aprisionado em uma fórmula controlada. Sei quando acaba. E sei como acaba.

O nascimento de um novo olhar
A passagem do século XIX para o XX foi marcada por um novo enquadramento do homem dentro do espaço que o circundava. Surge um outro sujeito, detectado por Baudelaire (1), um homem que vagueia, cercado de espelhos, cercado de imagens: o homem da multidão, do conto de Edgar A. Poe, desconhecido, sem rumo certo e sem propósito definido; um homem assustado e encurralado num espaço que se transforma diante de seus olhos atónitos. Em síntese, um novo homem que precisa de uma nova forma de expressão.

Mais que contemporâneo das vanguardas do início do século, o cinema participa activamente do processo de criação de uma outra forma de se apresentar o mundo, bem como da desestabilização de um olhar quotidiano que é desequilibrado pela força dos projécteis atirados nos espectadores a uma velocidade incrível (2). O cinema é utilizado para recriar a noção de tempo e espaço, além de estabelecer novos parâmetros na relação homem-máquina.

O fascínio exercido pelas máquinas atinge, de uma maneira ou de outra, as vanguardas, que viam nas novas tecnologias não só um factor de desumanização, mas uma possibilidade de integração com esta nova realidade, como é o caso dos Futuristas. Conforme Umbro Apollonio, quando Marinetti afirma que “a roaring motor car is more beautiful than the Victoria of Samothrace”, além de proclamar a sua iconoclastia ele propunha uma importante questão: a necessidade de uma alteração completa nos estatutos da arte vigente. A arte não pode ser confinada aos museus e academias: “it is widely admitted that schools of all kinds are in need of substantial change, and that art should not be created to sit in museums, in shrine full of dead heroes, but exist for the people”(3) (o sublinhado é meu).

O cinema: veículo do sonho
Dentre todos os movimentos de vanguarda, podemos destacar um que, em especial, pensou no cinema como a resposta às suas angústias criativas. Falo do Surrealismo. “Les surréalistes s’enthousiasment pour le cinéma qui fait apparaître «les ombres des grandes réalités»”(4). O carácter onírico do filme, a imagem que surge das e nas sombras, vai permitir o nascimento de um cinema dito surrealista. Nos ecrãs, tenta-se recriar a poesia feita de palavras e de objectos pertencentes ao mundo da pintura. Para os surrealistas, a possibilidade de recuperar o curso do pensamento, ou seja, a correnteza do inconsciente e deixá-la aflorar na sua própria extensão temporal é componente essencial do seu fazer artístico, o cinema surge como algo que possibilita tecnicamente a realização desta arte. Outra componente importante da arte surrealista é a tentativa de recuperar não só o curso dos pensamentos como o do próprio sonho. O espírito que está presente na criação de La révolution surréaliste em 1924 é o espírito de empreender uma luta contra o domínio cartesiano da razão. Conforme Breton, os colaboradores da revista estavam de acordo quanto aos seguintes pontos: “o mundo circundante, que se diz cartesiano, é insustentável, mistificador, sem graça, e são justificadas quaisquer formas de insurreição contra ele” (5). Era necessário alterar o estado das coisas e buscar uma via que não mais dividisse o homem em dois: razão e instintos. Partindo dos  ensinamentos de Freud, o que os surrealistas buscavam, principalmente no campo dos sonhos, era mostrar a capacidade destes de revelar mais sobre o homem que a razão pura dos estados de vigília: “Para Freud, este mundo é o símbolo de desejos inconscientes, de tendências inconfessadas; e, ao decifrá-lo, o homem chegaria a uma consciência integral de si próprio”(6).

Tendo então o cinema a capacidade de reproduzir a estrutura dos sonhos, permitindo uma circularidade promovida pelas condensações e deslocamentos presentes nos mesmos, a atenção que os surrealistas vão dedicar a esta arte será ainda maior do que o que o movimento irá efectivamente realizar neste campo. Os surrealistas não admitiam o uso de truques que buscavam o efeito pelo efeito. Mostrar o imaginário ou o fantástico através de truques que, sem dúvida, participaram da criação do e no cinema, não era exactamente a ideia de um cinema surrealista. Antes do truque, o que eles buscavam era a desestabilização da narrativa e a instauração de uma anarquia visual e narrativa que o cinema teria meios de executar.

O que eles propunham era desmontar a construção da lógica narrativa (tanto a nível “sintáctico” como “semântico”), o que explica largamente a sua atração por autores como Mallarmé, Rimbaud e Isidore Ducasse. O que explica também a atração por um meio, como o cinema, capaz de, através da montagem e de suas outras possibilidades técnicas, romper com regras de “escrita” e construir uma narratividade completamente imagética. Mas este rompimento não prescindia de uma ligação com o real. Pois eles buscavam o “maravilhoso” e, conforme Bréchon, o maravilhoso para os surrealistas nascia de uma presença adivinhada e desejada, ao contrário do mistério que era sempre uma ausência.

Os surrealistas não poderiam tolerar artificialismos, por isso é que, segundo Ferdinand Alquié:

“l’activité surréaliste échappe à la rhétorique: elle s’efforce d’entendre
l’expérience humaine, de l’interpréter en dehors des limites et des
cadres d’un rationalisme étroit, de prendre, en un mot, les mesures de
l’homme”(7).

Assim sendo, os surrealistas não aceitavam um cinema que, para eles, era construído apenas como retórica, um discurso vazio que não preenchia os seus ideais de transformação e da busca de meios originais para transformar a arte e, através dela, o mundo.

É sintomática, porém, esta afirmação de Buñuel (aliás, escudada por Breton, Péret, Dalí e vários outros que participaram do movimento surrealista): “Em nenhuma das artes tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e realização”(8). Podemos usar esta afirmação para falar do novo momento do cinema, a era do digital, que poderia ainda mais aprofundar o ideário das vanguardas, mas que, pelo menos até o momento, exceptuando aventuras experimentais, permanece profundamente ligado uma estrutura narrativa pouco imaginativa e revolucionária.

A sedução da imagem: entre a forma e o conteúdo



O mundo das imagens é também o mundo da sedução e do reconhecimento. O escritor e realizador africano Ousmane Sembene, disse certa vez que, quando a palavra não atingia seu público, ele usava o cinema para enviar sua mensagem. O cinema, para ele, não é um meio em si, mas um veículo, como o livro. Não importa o suporte, mas a mensagem. E assim, a forma é sacrificada pelo conteúdo. A clareza é uma das regras básicas para a sedução no cinema, o que fere as regras da própria sedução, que é cheia de desvios, sombras e não-ditos. Talvez Sembene não seja o melhor exemplo, pois seu cinema, apesar de ser usado como suporte, não faz parte do grande sistema, daquilo que se convencionou chamar “cinema industrial”. Mas, o que nos interessa aqui é ver um escritor, que é também realizador, dizer que o que produz são idéias e não importa o meio em que elas chegarão ao seu público. Desde que possam ser compreendidas.

Ao contrário, por exemplo, da obra do cineasta alemão Harun Farocki, que realiza documentários cuja função primordial é levar ao extremo as capacidades do meio cinema para desvelá-las, para provar a sua construção ideológica que, ao partir do modelo de imagem (e de mundo) do Renascimento, busca uma especularidade que não existe de facto. Tudo é mera construção: desde a perspectiva à nova organização do espaço plástico que privilegia apenas um ponto de vista diferindo assim do que se usava convencionalmente no período anterior (múltiplas imagens em simultâneo no mesmo espaço pictórico). Aqui o cinema não é um suporte apenas, mas é a própria mensagem do realizador. É através dele que sua mensagem contra o cinema da opacidade se constrói. Nenhum outro suporte poderia substitui-lo.

Em “Stilleben” (Natureza Morta, 1997), Farocki reflete sobre o papel da imagem nas sociedades de consumo. Ao apropriar-se de quadros holandeses dos séculos XVII e XVIII, ele tenta mostrar como a publicidade ao utilizar um modelo já plasmado por estas pinturas como a forma correta de se apresentar objetos, provoca o desejo de consumir em um público alvo. Depois de visitar vários estúdios especializados em fotos para publicidade de alimentos, o documentarista desvela o que está oculto por trás da simples arrumação de uma mesa: aqui os objetos são convertidos em objetos de desejo - consumo, logo existo. Este é apenas um exemplo de toda uma obra voltada para a descontrução do discurso estabelecido pela imagem, que nunca é, para Farocki, inocente. E seu trabalho consiste em usar o cinema para expor o mundo das imagens ao avesso, mostrando o quanto a organização “natural” da realidade promovida pelo cinema convencional, pela televisão e publicidade, são mecanismos perversos de ocultar o que não se quer que se veja. E ele busca exatamente tornar visível o que se quer ocultar.



É necessário que se compreenda o papel que os artistas podem ter no processo de apreensão/criação de imagens. Não há imagens inocentes e muito menos há inocência no discurso por elas construído. E na era da imagem digital há já um discurso que subjaz todo e qualquer texto artístico: aquele que promove o fascínio pelo desconhecido. A máquina seduz pelo seu poder de criação, pela sua imensa capacidade de ultrapassar a pré-existência do real e torná-lo também imagem. Assim sendo, a tentação de deixá-la atuar, exibir suas possibilidades e transformarmo-nos em meros utilizadores é muito grande.

O cinema de Farocki vem de encontro àquilo que buscamos defender: o cinema é muito mais que o suporte, ou canal transmissor. Nele importa tanto quanto o seu conteúdo – a expressão deste conteúdo. Um cineasta como Sembene opta, por questões ideológicas, pelo caminho da compreensão. Porque é este o seu cinema, um cinema que fala para um público analfabeto, em sua maioria, e que de outra maneira não chegaria a conhecer o discurso de seu realizador. Aqui nós temos um caso claro de opção. Opta-se pela clareza,  orque ela é necessária para a realização do discurso. Mas, nem sempre esta opção está ligada a um projecto social. Busca-se a compreensão porque o que interessa é o público. A recepção não deve sofrer com ruídos. O problema da compreensão é que a confundimos, às vezes, com facilidade. Compreendemos aquilo a que estamos habituados. E já dizia Shklovsky: “O hábito devora trabalhos, roupas, móveis, a esposa e o medo da guerra...” E o hábito devorou a nossa capacidade de compreender efectivamente as coisas, o mundo e as coisas do mundo.



O mundo das imagens: a distância entre a intenção e o gesto

Quando a fotografia aparece, a pintura sente-se finalmente liberta para seu grande vôo formal. E quando o cinema surge, a literatura sente que a sua hora chegou. Não mais narrar simplesmente. A grande máquina narrativa acabara de nascer. Agora era o instante mesmo da criação, dos desvios, do gozo provocado pelas palavras que ultrapassam o contar, tornando-se, elas mesmas, potenciais poemas. Deixam de ser habituais, e ao ser retiradas desta obrigação do contar, tornam-se plásticas, imagéticas. Os longos parágrafos  proustianos, que tal qual imensos “travellings”, criam imagens que vagueiam nanossa cabeça; as palavras de Joyce, recriadas, renovadas, causando um prazer inusitado aos sentidos. Um choque na língua e um choque para a língua, para linguagem, para a arte. Heidegger afirmava que “o homem sabe pensar na medida em que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar.” A arte deve, ou deveria fazer pensar.

O cinema foi visto, desde os primeiros ensaios de Munsterberg, no início do século XX, como algo que se assemelhava em tudo ao processo de funcionamento da mente humana. Ir ao cinema era ver uma demonstração dos mecanismos que nossa mente utiliza para darnos a conhecer o mundo que nos circunda. Assim, imaginem os desvios possíveis neste meio tão potente. Seria uma autêntica máquina subversiva nas mãos certas, provocando-nos a desenvolver a potencialidade de pensar. De efectivamente compreender. As
vanguardas tentaram usá-lo assim, uma arma a mais em sua luta pela desabituação do homem em relação às coisas do mundo.

Durante a sua já não tão curta vida, vários realizadores, experimentaram, ousaram, desobedeceram as regras fixas do cinema e recriaram a capacidade de choque que este meio sempre possuiu (e sua força não está no discurso, mas na maneira como as imagens se atropelam, ou podem vir a se atropelar na tela). Mas foram experimentos que não chegaram a todos. Tal como a literatura e a arte modernas, o cinema experimental ficou circunscrito ao espaço dos conhecedores. As artes plásticas produzidas pelas vanguardas históricas hoje já são peças de museu, para o melhor e para o pior, fazem parte de um repertório que, em maior ou menor grau, é pertença de todos. Quando Bigas Lunas, em seu filme “Huevos de Oro”, mostra-nos quadros de Dalí num espaço eminentemente “kitsch” dessacraliza o conceito da arte surrealista, torna-a objecto de decoração. O cinema experimental, entretanto, continuou restrito ao um circuito que podemos chamar de acadêmico. Mas experimentar não é patente apenas dos cineastas “underground”, alguns como Hitchcock e Kubrick, aliaram inventividade e espetáculo, criação e sedução. Há na indústria cinematográfica muita criatividade e uso, às vezes inovadores, das possibilidades do cinema. Mas são raros. No festival de Cannes de 2003, Peter Greenaway disse, em uma entrevista que “a maior parte do cinema feito hoje é uma ilustração de romances do século 19. Muito do que é feito é desastroso, previsível, e segue fórmulas batidas. O senso de pluralismo foi podado.” Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que deixou de lado o romance do século XX? E mais ainda, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?

No campo da narrativa, em sua já não tão breve história, o cinema não sofreu muitas variações. Nos anos 50, período fértil em novas cinematografias, vimos surgir a “Nouvelle Vague”: um movimento criado por amadores. E aqui posso usar o termo nos dois sentidos: de “dilettante” e de apaixonados pelo cinema. O cinema era uma profissão de fé, e a base da escritura fílmica de então será a literatura, não aquela que inspirou o Modo de Representação Institucional, mas uma outra, que rompia completamente com a lógica linearizante daquele modelo: o “nouveau roman”.

Assim temos um cinema que ultrapassa as limitações formais e não procura ordenar o caos. Ao contrário, o caos torna-se o princípio da criação. O romancista norte americano Kurt Wonnegut disse certa vez
que a sua escrita trazia o caos à ordem. Para ele não há ordem ao nosso redor. Somos nós que a buscamos para melhor nos adaptarmos. Para melhor compreendermos o mundo. Já os teóricos da percepção
afirmavam que percebemos o mundo de uma maneira ordenada.Traduzimos o caos para que possamos perceber aquilo que está à nossa volta. Em meio à confusão de sensações, o olhar busca um porto qualquer onde repousar – assim o nosso mecanismo de atenção tornou-se o centro mesmo dos estudos da psicofísica e da psicologia experimental ainda no século XIX. Fechner e Wundt concluíram que este mecanismo era uma peça fundamental no nosso aparato perceptivo. A atenção organiza o espaço, hierarquiza os elementos que nos circundam e ordena-os numa narrativa inteligível. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, tal como Wonnegut, queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos. Ferindo as normas que definem o relato como algo que tem princípio e fim, os seus filmes praticavam a errância narrativa – não davam respostas, estavam à procura; não indicavam caminhos, perdiam-se nos desvios. A questão é que rapidamente os desvios tornaram-se a norma. Se a “Nouvelle Vague” se perdeu em seus descaminhos, deixou uma lição que não tem sido devidamente aproveitada. Godard, um dos “enfant terribles” do movimento, foi dos primeiros a aceitar e a trabalhar com o universo das imagens eletrônicas. Quando, há uns anos, foi entrevistado por Wenders em seu curta “Chambre 666”, ele dizia que o futuro era aquele instante, a realidade do vídeo era incontornável e era preciso trabalhar com ela. Em relação ao seu filme “Passion”, Godard afirmava que o argumento era completamente “visível”. Uma fita de video, quadros… imagens que depois dariam origem ao filme. O que interessava aqui era a possibilidade de fazer algo novo com um novo meio técnico que dava suporte ao cinema, fazendo com que o mesmo ultrapassasse a sua mera condição de suporte.

O grande problema das imagens é que elas são, aparentemente, fáceis. Estão ali a espera que alguém as recolha. Mas é uma falsa aparência, porque como já dissemos, elas escondem antes de mais um discurso tão bem construído que nem anos de vanguardas históricas, transvanguardas, neo-vanguardas ou não-vanguardas, conseguiu destruir. O discurso da ordem que pode, e em muitos casos, deve ser desconstruído. E para desconstruí-lo é preciso um longo trabalho de investigação, como por exemplo, o de Godard e Antonioni. Para o italiano que realizou seu primeiro filme com telecâmaras ainda em 1980, “O Mistério de Oberwald”, o sistema eletrônico, a partida, parece uma brincadeira.



Era como estar diante de uma consola a jogar com todas as possibilidades de transmutações da imagem apenas sonhadas pelos realizadores mais inventivos. E Antonioni decide usar estas posssibilidades para mostrar que a cor, tão cedo incorporada ao cinema, e tão cedo aceita como parte natural do processo, é também um elemento constitutivo que ao ser usada de maneira disjuntiva e significante acrescenta novos significados ao filme ao mostrar com uma metonímia que o conteúdo também pode ser parte do continente. Utilizando as imagens eletrônicas de uma maneira experimental, Francis Ford Coppola realiza em 1982, “One from the Heart”, que recebe da crítica a gentil alcunha de “Tom Waits no 4 de Julho” (o universo eminentemente “kitsch” do filme, acaba por sufocar aquilo que havia nele de criatividade e invenção). Coppola havia percebido a riqueza da utilização de imagens imateriais, imagens estas que mais facilmente permitem permutas e transmutações. O cinema pode transformar-se em uma poética de passagens, e hoje mais do que nunca, pois ao utilizar suportes numéricos de armazenamento, susceptíveis de toda sorte de manipulação, o cinema vê-se diante do desafio de ultrapassar a fase da técnica pela técnica e efetivamente criar algo diferente. Aquilo que no início do século XX fora proposto pelas vanguardas, fazer explodir a lógica convencional e linear que as narrativas impunham e criar algo definitivamente novo, pode agora ser concretizado.

Mas, para Godard, há um grande problema em “One from the heart”: Coppola ficou no meio do caminho. Não teve ousadia suficiente para levar o seu experimento ao limite, produziu demasiadas imagens e depois não soube exatamente que filme queria fazer com elas. Poderia ter feito mil filmes, mas segundo o realizador francês, escolheu fazer o milésimo primeiro.

Quando Coppola decide parar um pouco e refletir sobre o meio eletrônico, nas possibilidades e impossibilidades do mesmo, na sua potencialidade refreada por um sistema que não procura o novo, mas a manutenção de uma ordem que funciona e dá lucros, começa a escrever um livro tendo como modelo a obra de Joyce e Proust. Queria efectivamente criar um “Ulisses” que se passasse em apenas um dia em Nova Iorque. Os meios já estavam ali à sua disposição, o estúdio onde realizara “One from the heart”. Os temas abordados eram bastante atuais nos anos 80 como o seriam em qualquer época: quem somos, para onde vamos. O filme nunca foi realizado, mas este exemplo serve para nos mostrar que para muitos realizadores as questões da técnica ultrapassam os limites da tecnologia, são essenciais para se perceber o que é cinema e até onde se pode ir com ele. Mesmo para aqueles, que como Coppola, ficaram a meio do caminho.

Entre a performance e a insubmissão
A questão da técnica atravessando o texto fílmico sempre se pôs. Antes de mais nada pelo óbvio: cinema é tecnologia. O surgimento do cinema sonoro causou algumas controvérsias, muitos foram os que contestaram o uso naturalista do som, Eisenstein e Pudovkin, entre eles, e alguns até o seu uso “tout court”, caso de Chaplin, quando em um artigo publicado em 1928 na Motion Picture Herald Magazine, explicava porque detestava os “talkies”. Para Chaplin, o cinema sonoro aniquilaria “a beleza do silêncio”. Na indefinição entre arte ou tecnologia o cinema ficou em muitos momentos a meio: sem conseguir satisfazer plenamente os critérios da arte e assumir seu lugar no pódio – como a sétima, e sem conseguir aproveitar ao máximo a sua condição de máquina. Condição esta que seduziu muitas das vanguardas no princípio.

Mas esta condição de máquina foi usada, muitas vezes, de uma maneira que contrariava completamente o desejo das vanguardas: o cinema encontra-se subordinado a um saber tecnocrático que procura a performance, não a insubmissão. É raro encontrarmos a autêntica criação de um novo mundo de imagens regido por outra lógica, que não é de todo nova, mas que foi suplantada pela rigidez canônica na qual as artes começam a ser aprisionadas a partir do Renascimento, no que diz respeito às imagens, e a partir do século XIX, pela cristalização de certos modelos narrativos que respondiam ao gosto burguês da identificação e da psicologia de folhetim.

Para fugir deste determinismo tecnocrático, realizadores como Greenaway utilizam a imagem como parte de um processo de investigação e de experimentação que ora se alarga, nos longametragens, ora se concentra em filmes feitos para TV como “26 Bathrooms”, “M is for Man”, “Music, Mozart ou Darwin”, procurando sempre extrair do suporte digital tudo aquilo que ele pode dar e muito mais. Num certo sentido, o realizador utiliza o meio cinema, seja o tradicional fotoquímico, seja o digital, como um dia foi utilizado pelas vanguardas – não interessa a estrutura pré-fixada mas a possibilidade de ultrapassá-la e de estar sempre a recomeçar, reinventando novos limites e novas formas de criação. Os filmes de Greenaway são, antes de mais nada, inventários das suas obsessões: a ordem, seja ela numérica ou alfabética, a pintura, a dança, o teatro, a música como elemento constitutivo e não apenas acessório, a presença de elementos do chamado cinema primitivo, como a câmera fixa, os “tableaux vivant”, enfim, a aceitação plena do cinema como sétima arte que devora todas as outras, mas que as devora como um antropófago, para delas retirar a sua essência e a sua força, devolvendo-as depois modificadas, reagrupadas e sem a sua significação original.

Finalmente aquilo que Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel. E nesse momento podem sêlo. As imagens digitais, e principalmente, as imagens de síntese – números convertidos em figuras, maleáveis, virtuais e nada sólidos, pertencentes ao reino das anamorfoses, liquefeitas e cambiantes como o próprio pensamento, deveriam pois realizar de maneira plena o sonho das vanguardas. A pluralidade dos pontos de vista, o desafio da imagem-conceito, a possibilidade do cinema realizar metáforas, como se de palavras as imagens fossem constituídas, torna-se praticável. Mas, ainda hoje, para alguns, o cinema é mais narrativa que imagem. A lógica da imagem não é lógica, não se enquadra em teorias que privilegiam a escrita. A compreensão, ou melhor, o hábito, toma o seu lugar de honra e continua no comando.

Quando os videoastas, como Nam Jum Paik, resolvem desmontar a imagem, refazê-la, recriá-la, ainda nos anos 60, estão no fundo a propor que o homem finalmente torne-se demiurgo: a imagem da cinta magnética não é palpável. A imagem torna-se, desde sua gênese, um signo. Aquilo que a literatura moderna propõe, como os labirintos de Borges, as cidades imaginárias e as narrativas entrelaçadas e sem fim de Calvino ou as desmontagens temporais e espaciais de Robbe-Grillet e Saer, onde tudoaomesmotempoagora torna-se possível, pode ser transportado de modo muito mais conseguido para o mundo das imagens em movimento. Já se tentara o mesmo com a película, mas a materialidade do meio não permitia grandes desconstruções.

Pedimos emprestada a reflexão que Lyotard faz acerca da escritura de Proust e Joyce por acreditarmos que se encaixa muito bem naquilo que é e o que poderia ser o cinema na era da imagem digital. Para o pensador francês, «Proust alega o impresentificável mediante uma língua intacta na sua sintaxe e no seu léxico e de uma escrita que, através de muitos dos seus operadores, pertence ainda ao género da narração romanesca». Proust subverte a instituição literária, mas permanece dentro das suas normas. Joyce, ao contrário, «faz adivinhar o impresentificável na sua própria escrita, no significante»(9). Ou seja, subverte a língua literária no momento mesmo da escrita do texto. Forma e conteúdo não se dissociam e são parte integrante e fundamental da criação de algo novo.

Greenaway, ao se queixar do cinema-ilustração, fá-lo com propriedade, pois seus filmes são a demonstração de suas inquietações formais. Ele compreendeu que para além da pirotecnia que a tecnologia permite e que, infelizmente, continua a ser a maneira como frequentemente é utilizada, pode-se voltar ao pré-cinema. Esquecer regras fixas e fórmulas e experimentar. O cinema poderia portanto libertar-se daquele que o ajudou a ser o que ele é hoje, o romance do século XIX, e encontrar-se finalmente com a literatura que ajudou a criar.

Notas
1 Baudelaire em “O pintor da vida moderna”, ao falar da obra de Constantin Guys, desenhista, aguarelista e gravador do século XIX, famoso por suas representações dos dândis e cortesãos da época, acaba por captar e definir o espírito de todo um período. Ao definir o belo como sendo “constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a moral, a paixão”, Baudelaire exibe o carácter de transitoriedade que expressa o sentimento da modernidade. O pintor de costumes, como o homem moderno, é um “observador, um flâneur.” (Charles Baudelaire, Sobre a modernidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 10).

2 Walter Benjamin, ao falar sobre a relação que o espectador tem com o cinema, explicita as características de um medium que, ao contrário das artes contemplativas como a pintura, não permite estar-se diante dele dando vazão ao livre curso dos pensamentos pois: “Diante do filme não pode fazê-lo, mal regista uma imagem com o olhar e já ela se alterou. Não pode ser fixada.” A nossa recepção concretiza-se através do choque causado pela velocidade com que as imagens passam diante de nós. Em uma nota, Benjamin comenta este estatuto do “choque”, que vem responder, de certa forma, a uma necessidade contemporânea. “O cinema é a forma de arte correspondente à vida cada vez mais perigosa que levam os contemporâneos. A necessidade de se submeter a efeitos de choque é uma adaptação das pessoas aos perigos que as ameaçam. O filme corresponde a alterações profundas do aparelho de percepção, alterações como as com que se confronta, na sua existência privada, qualquer transeunte no trânsito de uma grande cidade, ou como as que, numa perspectiva histórica, actualmente, qualquer cidadão experimente.” (“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” in Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 107).

3 Umbro Apollonio (ed.), Futurist manifestos. London, Thames and Hudson, 1973, p. 10.

4 E. Lièvre-Crosson, Du Cubisme au Surréalisme. Toulouse, Éditions Milan, 1995.p. 55.

5 A. Breton, Entrevistas, Entrevistas. Lisboa, Salamandra, 1994, pp. 109-110. Breton continua citando Ferdinand Alquié que “num texto dos mais circunspectos intitulado “Humanismo surrealista e existencialista”, publicado em 1948 nos Cahiers du Collège Philosophique, coloca o problema com a maior das clarezas: “Declarar que a razão é a essência do homem significa já cortá-lo em dois, coisa que a tradição clássica nunca deixou de fazer, ao separar no homem o que é a razão, e por isso mesmo verdadeiramente humano, daquilo que não o é, ou seja, instintos e sentimentos, assim considerados humanamente indignos.””

6 Cf. Y. Duplessis, O Surrealismo. Lisboa, Inquérito, 1983, p. 37. Duplessis ainda afirma que: “O Surrealismo teve, pois, a originalidade de reabilitar o sonho, de lhe atribuir tanta ou mais importância que à vigília, sob o ponto de vista psicológico e mesmo metafísico.” (p. 38).

7 Ferdinand Alquié, Philosophie du Surréalisme. Paris, Flammarion, 1955, op. cit., p. 35. Para Joël Magny também é importante traçar uma linha que separa a retórica da criação surrealista. Falando sobre o surrealismo pur et dur (essencialmente o de Breton), ele reafirma a posição que Breton possui sobre o cinema e a pintura: ambos são considerados purs véhicules de l’esprit surréaliste. Assim, “Ne peut être qualifié de «surréaliste» que le contenu manifeste (ce qui implique le rejet de l’abstraction, qui caractérise pourtant une grande partie de la peinture moderne depuis 1913), qui ressortit aussi bien à une idéologie surréaliste qu’à une rhétorique.” (Joël Magny, “Prémiers écrits, avant-garde français et surréalisme”, CinémAction, nº 20, ago/82,
p. 19).

8 Luis Buñuel, “Cinema: instrumento de poesia” in XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1983, p.334.

9 Jean François Lyotard, O pós-moderno explicado às crianças, 2º Ed., Lisboa, Dom Quixote, 1993, p. 25.

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XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal, 1983. Mirian Estela Nogueira Tavares é Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas – FACOM/UFBA. Professora Auxiliar da Universidade do Cinema e Literatura: desencontros formais Algarve, Portugal, onde coordena o Mestrado em Literatura e Cinema. Investigadora do C.E.L.L. – Centro de Estudos Linguísticos e Literários da FCHS/UALG. Email: mtavares@ualg.pt

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