Um apagão
Conto, por José Cláudio (Cacá)
"A leitura dos olhos é que guiaram desde sempre os anseios. Então, todo mundo novamente teve que reaprender, assim como as crianças antigamente iam vendo o mundo e perguntando os porquês."
O desastre foi como um terremoto vindo de fora para dentro. A terra não tremeu em seu interior, foi uma espécie de desalinhamento orbital que gerou uma sacudidela muito leve. Mas o suficiente para desorganizar toda a vida da superfície. E o primeiro efeito e o mais visível, paradoxalmente foi a falta de energia. Apagam-se todas as luzes, as transmissões de televisão, rádio e internet. Não há noticias as não ser pelos velhos radinhos de pilha, mesmo assim daquelas emissoras cujos geradores movidos a combustível funcionam. Dá para se ter algumas noticias do mundo. Um apagão geral.
As imagens voltaram a ser mentais norteando os desejos e vontades de todos. O que é visto é cobiçado mais do que qualquer outra sensação humana. As pessoas não estão acostumadas a formar, a idealizar a partir de imagens mentais. A leitura dos olhos é que guiaram desde sempre os anseios. Então, todo mundo novamente teve que reaprender, assim como as crianças antigamente iam vendo o mundo e perguntando os porquês. A visão é dos nossos sentidos, o que mais imediatamente nos privilegiou para a contemplação das coisas. O bombardeio de imagens feitas pelo homem fora do mundo da arte nos turva, nos agride, nos ceifa a capacidade contemplativa. Provoca uma espécie de dormência fazendo o tato e a audição suplantarem o nosso estro criativo. Tudo o que se nos mostra é para aguçar o desejo de possuir a coisa mostrada, ou o que estiver por trás dessa coisa mostrada.
Um cenário de apaziguamento é o que se vê por todos os lados por causa da necessidade que uns passam a ter dos outros. E então os olhares se voltam de pessoa para pessoa. Quantos diálogos olho no olho! Quanta gente reunida em esquinas a ajudando-se mutuamente. Diminuem-se as desavenças, diminui a indiferença, aumenta o potencial humano de todos, pelo menos até voltarem as luzes que devolveriam a artificialidade ao mundo encantado de sons, imagens, anúncios luminosos, dos comerciais, dos vídeos, do sonho dos computadores. Com ela, a costumeira indiferença, o sonho de cada um só, no máximo de algum grupo de afinidades, poucas, é bom salientar. Downloads mentais eram tudo o que estava ao alcance da criação humana. A cópia, por outro lado, não estava ao alcance, que bom! Se nada se criava, nada também se copiava. Mas tudo se transformava diante dos novos olhares. A propaganda toda voltava a ser cinza e com voz chamativa por detrás. Quem queria vender tinha que escrever em papel e usar a fala direta no convencimento. Quem queria se mostrar, tinha que desfilar aos olhos individuais para ser submetido ao crivo dos gostos agora não tão uniformes, não tão manipulados para a formação de um senso comum.
Então, embora as coisas não pudessem voltar a um primitivismo de ralações, adquiriram um caráter de não-sujeição, uma relativa horizontalidade. Pelo menos até voltar a energia que nos conduz ao que nos coloca limites. É como se voltassem todos a ser crianças, porém sem adultos que desvirtuassem sua imaginação e fantasia e portanto, de criadora de sua própria realidade. Os sentimentos demonstrados pelos gestos pareciam tão espontâneos! É incrível com somos guiados pela sistemática das recompensas. Como passou todo mundo a depender de todo mundo, deu para sentir uma demasiada mostra de humanidade virtuosa em cada um. A luz do dia e a penumbra mal iluminada pelas velas, lanternas e faróis devolveram ao homem a capacidade contemplativa. Com ela veio de volta a tolerância, os significados passaram de objeto para não-coisa, gente.
Uma pena que a luz foi restabelecida às vésperas do Natal
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