I Concurso Literário Benfazeja

As Flores



Conto, por Jota Marques. 

"...A beleza de cores o hipnotizavam. Deixava seus dedos tocarem levemente as pequenas pétalas, sentindo a textura do azul e do rosa acalmando suas aflições infantis..." 




A empregada carregava o cesto de roupas limpas com dificuldade. Os gestos lentos combinavam com sua palidez. As sandálias mal se mantinham sob seus pés, enquanto se arrastavam para sustentar seu peso. Um garoto quase a atropela ao abrir a porta do quintal. A mulher se desequilibra por um instante; recupera o ânimo colocando o cesto no chão. Suas mãos tremiam e o suor frio escorria em seu rosto, mas ainda tinha trabalho a fazer. Estender a roupa, passar roupa, mais tarde poderia buscar conforto nos braços de seu amado. A criança ignorava sua presença, com seu rosto sem demonstrar nenhum sentimento. Com cuidado, retirava uma pequena caixa de madeira com instrumentos de jardinagem, do fundo do armário ao lado da máquina de lavar.

Trazendo em seu braços suas ferramentas , correu sob o sol em direção ao canteiro de flores próximo a cerca viva de unhas de gato. À primeira vista, Paulinho era como qualquer outra criança de seu bairro: tinha boa saúde, uma boa casa e bons brinquedos. Vestia o uniforme escolar, sem preocupar-se com a sujeira de terra em seus joelhos. Os pequenos olhos castanhos estavam concentrados para suas queridas hortênsias. Dona Inês era pouco afeiçoada pelo pequeno, com o tempo, aprenderam a conviver em silêncio. Agora até desejava conhecer melhor o rapaz, mas pouco importava afinal. Tentou chamar a atenção dele para que não sujasse o uniforme da escola, mas foi impedida por uma convulsão de tosses.

- Paulinho – engasgou.

Com o que se parecia com uma pequena tesoura, Paulinho acertava algumas folhas secas. As palavras embaralhadas pela tosse que saiam de dona Inês, não eram suficientes para quebrarem sua concentração. A beleza de cores das o hipnotizavam. Deixava seus dedos tocarem levemente as pequenas pétalas, sentindo a textura do azul e do rosa acalmando suas aflições infantis. Com uma pequena pá, revolvia o solo, preparando onde colocaria uma nova irmã em seu jardim. Gostava de trabalhar com as plantas, cuidar do solo, regar nos momentos e nas quantidades certas. A posição de seu jardim deixava-o iluminado, mas sem sofrer os castigos do sol por muito tempo.

Nem sempre foi assim. Suas tardes antes eram preenchidas por brincadeiras aleatórias com sua mãe. Seu pai sempre chegava no fim da tarde e jantavam juntos, terminando o dia em seus colos, recebendo todo o carinho e amor que pudesse desejar enquanto assistiam televisão. Alguns sinais já existiam nessa época mas era incapaz de reconhece-los. Os olhares silenciosos na mesa de jantar, as longas horas de espera enquanto seu pai não voltava do serviço, o abraço apertado e aflito que sua mãe lhe dava antes de dormir.

- Preciso me reencontrar. Dar valor a mim mesma. - ouvia sua mãe conversando com dona Inês.

- O Tiago precisa saber que não preciso dele. Sou uma mulher independente, cheia de vida.

- Verdade dona Flávia. - dizia a empregada automaticamente, mau prestando atenção na conversa enquanto enxugava os pratos.

- O Paulinho já esta maiorzinho, não precisa que eu fique tanto com ele. - justificava para si mesma.

Sua mãe agora chegava mais tarde, antes de seu pai, mas só quando o sol já se deitava no horizonte. Quando davam de todos se encontrarem na mesa do jantar, palavras duras e xingamentos eram servidos a sua frente. Ele apenas queria que voltassem ao que eram antes. Não gostava de brincar com as outras crianças e não gostava de dona Inês. Enquanto chorava escondido no quintal, seus olhos se deitaram nas mudas secas em alguns vasos . Lembrava-se deles: algum presente esquecido de alguns anos atrás, flores de dia das mães, ou aniversário, ou aniversário de casamento. Era difícil para uma criança se lembrar de datas comemorativas que não fossem natais, páscoas ou seus próprios aniversários.

Sentia seu corpo tão machucado e enfraquecido quanto aos daquelas plantas. Com cuidado esticou seus braços segurando os vasos entre eles, em uma tentativa de abraça-los. Não soube dizer por quanto tempo ficou ali sozinho, apenas ele e os plantas, mas dentro de si estava convicto de sua missão para com elas. Cuidar dessas plantas era uma forma de tentar cuidar de si mesmo.

Com a distância de um clique em sites de pesquisas e de videos, aprendeu o suficiente para cuidar de suas novas amigas. Escolheu com carinho o lugar ideal para plantá-las, seguindo as instruções de algum manual on-line. Pediu ao pai, que agora tentava comprar seu afeto com qualquer coisa que quisesse, e conseguiu as ferramentas necessárias para manusear com suas mãos pequenas de criança. O trabalho o acalmava enquanto se fechava em uma concha de angústias e frustrações.

Seus pais já não dormiam na mesma cama, mas ainda viviam sob o mesmo teto. Mergulhados em suas diferenças, não se preocupavam, ou não se davam conta de como suas ações e reações refletiam no filho. Na mesa da janta, apenas sua mãe, dona Inês e ele. Seu pai chegava apenas de madrugada. Ouvia o som do carro. As vezes pensava que dormira na garagem, pois não ouvia seus passos pelos corredores em direção a sala.

As pequenas mudas começavam a dar sinais de seus primeiros botões. Vigilante, se preocupava com o ataque de algum inseto ou pássaro contras as folhas verdes. Toda a tarde ficava por horas admirando o crescimento, tomando providências para sua proteção. As vezes flagrava sua mãe chorando dentro do quarto, logo que voltava do escritório. Não entendia porque viviam naquela situação. Crianças com pais divorciados não eram raros de se verem em sua escola. Entendia o conceito de separação, mas ainda era novo demais para compreender como alguém não quer desistir de um sentimento forte, mesmo que isso o devore por dentro, e nem como alguém que não quer abrir mão de metade de seus bens, por mesquinharia e avareza.

Certa noite, o garoto permaneceu calado encarando o silêncio escuro de seu quarto, enquanto tentava encontrar uma solução para seu novo inimigo: uma colônia de formigas que perigosamente se alojou em torno de seu canteiro. Temia que as criaturas pudessem danificar a beleza de suas hortênsias. Construía em sua mente o cenário onde as flores perfumadas cresciam por todos os lados, emprestando sua beleza para a feiura de sua tristeza. Não permitiria o avanço das criaturas. Pesquisando na internet encontrou uma solução elegante. Alguém sugerira usar uma mistura de certo tipo de veneno, feito com ingredientes domésticos ao alcance de qualquer supermercado de classe média. Diluído com água, aplica-se na base da colônia durantes alguns dias. Logo as formigas morreriam, sem danificar o solo, sem deixar resíduos nocivos.

Abriu a porta do quarto e foi até a cozinha aplacar sua sede. Incluiria os ingredientes na lista de compras. Enquanto se refrescava, percebia através da janela, a luz vindo do quarto da empregada no quintal. Devia ainda estar acordada, assistindo televisão ou algo do tipo, pensava. Viu que seu pai não estava dormindo na sala, mas sabia que o carro estava na garagem. Já que estava levantado decidiu confirmar se o homem dormia dentro do veículo afinal.

Tomando cuidado, abriu a porta para a garagem, aproveitando o silenciador natural que seu tamanho lhe dava, auxiliado pelas meias que calçava. Suas expectativas de encontrar seu pai desajeitado no banco de trás do sedan, foram frustradas quando não encontrou ninguém. A inocência que ainda residia em seu espirito não associou um fato a outro. Guiado pela curiosidade infantil, e o fascínio que o proibido exerce sobre a psiquê humana, seus passos chegaram até a porta do quarto da empregada. Ouvia alguns murmúrios sufocadas em pequenas risadas. Através de uma fresta conseguiu ver dona Inês semi nua sentada no colo de seu pai.

Dirigiu-se rapidamente de volta para sua cama. Mergulhado em pensamentos conflitantes, o sono apenas chegou quando conseguiu desviar sua atenção para suas flores. Dedicar-se a jardinagem era o seu ponto de equilíbrio. Toda tarde quando voltava da escola despejava com um conta gotas, o veneno que livraria seu jardim dos intrusos. Durou mais do que alguns dias, mas era visível a diminuição nas indas e vindas de formigas naquela parte. Poucas gotas todos os dias, por várias semanas até o começo da primavera.

Quando as flores se abriram, já não encontrava nenhuma outra dessas terríveis criaturas. Sorriu como a muito não fazia. Pensava em colocar uma nova planta em seu jardim. Era possível abrigar um grande canteiro naquele muro. Muitas outras flores poderiam se juntar a suas hortênsias rosas e azuis. Seu rosto estava um pouco sujo de terra do trabalho dessa tarde quando ouviu o carro de sua mãe chegando. Viera mais cedo. Mas nem mesmo os gritos de pânico de sua mãe ao encontrar dona Inês caída no quintal, fizeram-no desviar sua atenção das plantas.

- Paulinho! Meu Deus! Vou chamar a emergência! - as palavras da mulher se misturavam tentando formar uma frase, enquanto voltava para dentro em busca do telefone.

Sim, ele faria de tudo para proteger o seu jardim. Cuidar dele era uma maneira de cuidar de si mesmo. Da mesma forma que a primavera trouxe o desabrochar de sua flores, tinha esperanças que o sol voltasse a brilhar em sua casa. O solo estava em ótimas condições. O veneno fora dado na medida exata para o serviço. Hoje em dia esse tipo de informação estava ao alcance de qualquer um que soubesse o que procurar. Paulinho amava suas flores.

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