I Concurso Literário Benfazeja

O Verdadeiro e o Verossímil


Teoria literária, Por Rosane Tesch.



“O campo da mimese não se circunscreve ao da verdade, mas ao do possível”. (Lígia M. Costa, A Poética de Aristóteles)



A falta de um conceito único, ou absoluto, em sua origem grega, faz da mímesis um enigma que pode, inclusive, ser avaliado sob dois pólos opostos.
            Em sua dialética, Platão distingue a essência da aparência e se concentra no fato de que o caminho para a perfeição está na direção do eidos (mundo das ideias), onde o original de todas as coisas se encontra e de onde só é possível reproduzir o que já existe, sendo esta reprodução uma simples imitação, portanto, inferior ao original. E quanto mais afastado do modelo original for o imitador, menor sua capacidade de reproduzir a essência, boa e bela, presente em todos os seres. Assim, a arte, então imitação, afastaria o espírito da verdade, tornando-se imoral. O imitador, haja vista não ter conhecimento real do objeto imitado, atuaria no campo das aparências. (Platão, Livro X)
            Verdade não é o ponto de partida para o estudo de Aristóteles sobre a mímesis. Ao contrário de seu mestre Platão, ele rejeita a dialética da essência e da aparência e, separando arte da moral, deixa evidenciado seu fascínio pela primeira. Arte que é arte por si, simplesmente. (Junito Brandão, Teatro Grego)
            Para Aristóteles a imitação não só é plausível como natural do homem, faz parte do universo biosocial ao qual os indivíduos pertencem. É dentro do contexto “Arte” que, na Poética, são classificadas diversas formas de imitação sem, contudo, associá-las à interferência da polis, tendo em vista seu caráter puramente artístico. Já não se busca associar a imitação à reprodução impossível do real e sim estabelecer a verossimilhança, ou seja, reproduzir de forma a se manter próximo do real, mesmo que seja uma realidade artificial. “(...) não é ofício do poeta narrar o que aconteceu, mas o que poderia acontecer (...)”. (Aristóteles, Poética)
           
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali. (Fernando Pessoa/Alvaro de Campos)




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2 comentários:

  1. É até difícil comentar uma beleza dessa magnitude. A gente imita porque ajunta, acresce pela admiração e pela lembrança que é sempre complemento daquilo que a gerou (isso para quem gosta de criar). Não falo de cópia pura e simples, pobre. Delícia de texto, reflexão e poema. Abraços. Paz e bem.

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  2. Talvez depois dos grandes pensadores gregos, Fernando Pessoa tenha sido, de fato, quem mais perto chegou do domínio do conceito de mimesis e, por que não dizer, de suas implicações e aplicações na Teoria Literária.
    Gostei muito do enforque, principalmene por se tratar do nicho "arte", onde Benjamin também exerceu com maestria suas considerações miméticas sobre a Arte.
    Mais uma vez texto refinado e atrativo.
    parabéns Rosane!

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